domingo, 6 de julho de 2008

Pombagira e as faces inconfessas do Brasil, de Reginaldo Prandi

TRECHO:
Do livro de Reginaldo Prandi, Herdeiras do Axé.
São Paulo, Hucitec, 1996, Capítulo IV, pp. 139-164.

I: Personagens de duvidosa moralidade:
O Brasil tem uma larga tradição católica de devoção aos santos, com os quais os fiéis estabelecem relações de favor e de troca que presumem sempre uma certa intimidade com as coisas do mundo sagrado (Camargo et alii, 1973). Com o espraiamento das tradições afro-brasileiras no curso deste século, parece que esta intimidade com personagens do mundo sagrado — agora sobretudo com divindades afro-brasileiras, com as quais os santos se sincretizam, mais os espíritos dos mortos — teria se intensificado. De fato, há uma infindável lista de famílias ou classes de entidades sobrenaturais com que fiéis brasileiros podem estabelecer relações religiosas e mágicas e contatos personalizados, especialmente através de cerimônias em que essas entidades se apresentam através do transe de incorporação: os caboclos, pretos-velhos, ciganos, príncipes, marinheiros, guias de luz, espíritos das trevas, encantados, além dos orixás e voduns.
Pombagira, cultuada nos candomblés e umbandas, é um desses personagens muito populares no Brasil. Sua origem está nos candomblés, em que seu culto se constituiu a partir de entrecruzamentos de tradições africanas e européias. Pombagira é considerada um Exu feminino. Exu, na tradição dos candomblés de origem predominantemente iorubá (ritos Ketu, Efan, Nagô pernambucano) é o orixá mensageiro entre os homens e o mundo de todos os orixás. Os orixás são divindades identificadas com elementos da natureza (o mar, a água dos rios, o trovão, o arco-íris, o fogo, as tempestades, as folhas etc.) e sincretizados com santos católicos, Nossa Senhora e o próprio Jesus Cristo. Assim, Oxalá, o maior dos orixás, divindade da criação, é sincretizado com Jesus, Iemanjá, a Grande Mãe dos orixás e dos brasileiros, com Nossa Senhora da Conceição. Exu, o orixá trickster, o que deve ser sempre homenageado em primeiro lugar, o orixá fálico, que gosta de confundir os homens, que só trabalha por dinheiro, é aquele sincretizado com o Diabo.
Na língua ritual dos candomblés angola (de tradição banto), o nome de Exu é Bongbogirá. Certamente Pombagira (Pomba Gira) é uma corruptela de Bongbogirá, e esse nome acabou por se restringir à qualidade feminina de Exu (Augras, 1989). Na umbanda, formada nos anos 30 deste século do encontro de tradições religiosas afro-brasileiras com o espiritismo Kardecista francês, Pombagira faz parte do panteão de entidades que trabalham na "esquerda", isto é, que podem ser invocadas para "trabalhar para o mal", em contraste com aquelas entidades da "direita", que só seriam invocadas em nome do "bem" (Camargo, 1961: Prandi, 1991a).
Dona Pombagira, que tem um lugar muito especial nas religiões afro-brasileiras, pode também ser encontrada nos espaços não religiosos da cultura brasileira: nas novelas de televisão, no cinema, na música popular, nas conversas do dia-a-dia. Por influência kardecista na umbanda, Pombagira é o espírito de uma mulher (e não o orixá) que em vida teria sido uma prostituta ou cortesã, mulher de baixos princípios morais, capaz de dominar os homens por suas proezas sexuais, amante do luxo, do dinheiro, e de toda sorte de prazeres.
No Brasil, sobretudo entre as populações pobres urbanas, é comum apelar a Pombagira para a solução de problemas relacionados a fracassos e desejos da vida amorosa e da sexualidade, além de inúmeros outros que envolvem situações de aflição. Estudar os cultos da Pombagira permite-nos entender algo das aspirações e frustrações de largas parcelas da população que estão muito distantes de um código de ética e moralidade embasado em valores da tradição ocidental cristã. Pois para Dona Pombagira qualquer desejo pode ser atendido: não há limites para a fantasia humana.
Embora conserve do candomblé a veneração dos orixás, a umbanda, religião que desenvolveu e sistematizou o culto a Pombagira como entidade dotada de identidade própria, é uma religião centrada no culto dos caboclos e pretos-velhos, além de outras entidades. Embora o candomblé não faça distinção entre o bem e o mal, no sentido judaico-cristão, uma vez que o seu sistema de moralidade baseia-se na relação estrita entre homem e orixá, relação esta de caráter propiciatório e sacrificial, e não entre os homens como uma comunidade em que o bem do indivíduo está inscrito no bem coletivo (Prandi, 1991a), a umbanda, por sua herança kardecista, preservou o bem e o mal como dois campos legítimos de atuação, mas tratou logo de os separar em departamentos estanques. A umbanda se divide numa linha da direita, voltada para a prática do bem e que trata com entidades "desenvolvidas", e numa linha da "esquerda", a parte que pode trabalhar para o "mal", também chamada quimbanda, e cujas divindades, "atrasadas" ou demoníacas, sincretizam-se com aquelas do inferno católico ou delas são tributárias. Esta divisão, contudo, pode ser meramente formal, como uma orientação classificatória estritamente ritual e com frouxa importância ética. Na prática, não há quimbanda sem umbanda nem quimbandeiro sem umbandista, pois são duas faces de uma mesma concepção religiosa.
Assim, estão do lado "direito" os orixás, sincretizados com os santos católicos, e que ocupam no panteão o posto de chefes de linhas e de falanges, que são reverenciados, mas que pouco ou nada participam do "trabalho" da umbanda, isto é, da intervenção mágica no mundo dos homens para a solução de todos os seus problemas, que é o objetivo primeiro da umbanda enquanto religião ritual. Ainda do lado do "bem" estão o caboclo (que representa a origem brasileira autêntica, o antepassado indígena) e o preto-velho (símbolo da raiz africana e marca do passado escravista e de uma vida de sofrimentos e purgação de pecados). Embora religião surgida neste século, durante e em função do processo intenso de urbanização e industrialização, o panteão da umbanda é constituído sobretudo de entidades extraídas de um passado histórico que remonta pelo menos ao século XIX. Ela nunca incorporou, sistematicamente, os espíritos de homens e mulheres ilustres contemporâneos que marcam o universo das entidades do espiritismo kardecista.
De todas as classes de entidades da umbanda, que são muitas, certamente o preto-velho é o de maior reconhecimento público: impossível não gostar de um preto-velho, mesmo quando se trata de um não-umbandista. Ele é sábio, paciente, tolerante, carinhoso. Já o caboclo é o valente, o selvagem (o índio) antes de tudo, destemido, intrépido, ameaçador, sério, e muito competente nas artes das curas. O preto velho consola e sugere, o caboclo ordena e determina. O preto-velho acalma, o caboclo arrebata. O preto-velho contempla, reflete, assente, recolhe-se na imobilidade de sua velhice e de seu passado de trabalho escravo; o caboclo mexe-se, intriga, canta e dança, e dança e dança como o guerreiro livre que um dia foi. Os caboclos fumam charuto e os preto-velhos, cachimbo; todas as entidades da umbanda fumam — a fumaça e seu uso ritual marcando a herança indígena da umbanda, aliança constitutiva com o passado do solo brasileiro.
Do panteão da direita também fazem parte os boiadeiros, os ciganos, as princesas. O boiadeiro é um caboclo que em vida foi um valente do Sertão. Veste-se como o sertanejo, com roupas e chapéu de couro, e cumpre um papel ritual muito semelhante aos caboclos índios, que se cobrem de vistosos cocares. Igualmente são bons curadores. Ciganos dizem o futuro mas não sabem curar; como os príncipes, estão acima das misérias terrenas. Marinheiros sabem ler e contar, e conhecem dinheiro, o que não acontece com nenhuma outra entidade, mas carregam muito dos vícios do homem do mar: gostam muito de mulher da vida, bebem em demasia, são sempre infiéis no amor, e caminham sempre com pouco equilíbrio. Uma sua cantiga, imortalizada nas vozes de Clementina de Jesus e Caetano Veloso, diz:
Oh, marinheiro, marinheiro, marinheiro só
Quem te ensinou a nadar, marinheiro só?
Ou foi o tombo do navio
Ou foi o balanço do mar

Lá vem lá vem marinheiro só
Como ele vem faceiro
Todo de branco, marinheiro só
Com seu bonézinho
O lado da esquerda é povoado pelos Exus e Pombagiras, basicamente (Arcela, 1980). Ambos são mal-educados, despudorados, agressivos. Falam palavrão e dão estrepitosas gargalhadas. Chegam pela meia-noite, os Exus com suas mãos em garras e seus pés feito cascos de animais satânicos, as Pombagiras com seus trajes escandalosos nas cores vermelho e preto, sua rosa vermelha nos longos cabelos negros, seu jeito de prostituta, ora do bordel mais miserável ora de elegantes salões de meretrício, jogo e perdição; vez por outra é a grande dama, fina e requintada, mas sempre dama da noite. Nas religiões afro-brasileiras, todo o cerimonial é cantado ao som dos atabaques, e quase todo também dançando. As cantigas dos candomblés e os pontos-cantados da umbanda são instrumentos de identidade das entidades. Assim, canta-se para Pombagira quando ela chega incorporada:
De vermelho e negro
Vestida na noite o mistério traz
Ela é moça bonita
Oi, girando, girando, girando lá

Se, por vezes, tanto Exus como Pombagiras podem vir muito elegantes e amigáveis, jamais serão, entretanto, confiáveis e desinteressados. Todo o mundo tem medo de Exu e Pombagira, ou pelo menos diz que tem. Desconfia-se deles, pois, se de fato são entidades diabólicas, não merecem confiança, mesmo quando deles nos valemos. Eles fazem questão de demonstrar animosidade. Conheci muito Exu que chama todas as pessoas de "filho-da-puta", que é a maior ofensa que se pode fazer a um brasileiro. Exus e Pombagiras fazem questão de demonstrar o quanto eles desprezam aqueles que os procuram.
Há ainda um certo território de difícil demarcação, que, embora formalmente situado na "direita", dá passagem para muitas entidades que se comportam como da "esquerda". Ora são Exus metamorfoseados de caboclos, ora são marinheiros e baianos.
Se com os marinheiros já estamos em território muito próximo da linha da "esquerda", com os baianos é quase impossível se saber ao certo. Baianos e baianas têm a aparência de caboclos e pretos-velhos, mas se comportam como Exus e Pombagiras. Lembrando que as giras (sessões rituais de transe com canto e dança) são organizadas separadamente para entidades da "direita" e da "esquerda", pode-se imaginar que os baianos — de criação muito recente, mas com uma popularidade que já quase alcança a dos caboclos e pretos-velhos — são uma espécie de disfarce pelo qual Exu e Pombagira podem participar das giras da "direita" sem serem molestados. Se um dia a umbanda separou o bem do mal, com a intenção inescondível de cultuar a ambos, parece que, com o tempo, ela vem procurando apagar essa diferença. Os baianos representariam esta disposição. De fato, os baianos são as entidades da "direita" mais próximas da "esquerda" em termos do comportamento estereotipado: eles são zombeteiros, relacionam-se com seus fiéis e clientes não escondendo o seu escárnio por eles, falam com despudor em relação às questões de caráter sexual, revelando com destemperança, para quem quiser ouvir, pormenores da intimidade das pessoas. Um dia, numa gira, uma baiana de nome Chica me disse que a confundiam com Pombagira, coisa que ela não era, só porque preferia os homens sexualmente bem dotados. Ela dizia falar muita besteira porque as pessoas gostavam de ouvir besteiras, bebia muito porque as pessoas gostavam de beber, e falava das intimidades porque as pessoas gostavam de se exibir mas não tinham coragem para isto. "E o Senhor não acha que isto é muito bom?", me perguntava. "Então, porque eu gosto mesmo é de ajudar os outros, eu dou o que eles querem."

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