Prefácio
Quantos lerem este volume, crendo encontrar nele o mesmo Ubaldi dos seus livros anteriores, ficarão desiludidos. A cada novo livro ele transforma e renova a sua personalidade. Cada um dos seus volumes é um documentário daquilo que foi, real e espiritualmente, de uma fase de sua vida. Inútil, portanto, procurar-se nestas páginas as mesmas proposições e atitudes dos seus trabalhos precedentes. É necessário desde logo este esclarecimento, para que o leitor não seja enganado e porque os mal-entendidos são detestáveis. Nada existe aqui de mediunidade, biosofia, espiritualismo e semelhantes. A personalidade do autor, que nunca fez parte de nenhum grupo nem se ligou a qualquer escola, permanecendo sempre livre, no seu desenvolvimento, independente, atinge agora, completamente renovada, outras afirmações. É horrível repetir-se, permanecer-se estagnado em determinado campo. Somente quem se renova, vive. A constante especialização no particular poderá ser materialmente útil, mas é paralisia do espírito.
A precedente tetralogia, em que o Autor, partindo da matéria e chegando ao espírito, percorre o caminho que vai da Terra ao Céu, a tetralogia representada pelas Mensagens Espirituais , A Grande Síntese, As Noúres, Ascese Mística, é um edifício completo, uma fase superada, um período encerrado. Ocorreu, depois, no espírito do Autor uma crise terrível, necessária para uma renovação, um completamento e uma continuação, coisas que, sem tormentas e crises, não podem acontecer. Aqui Ubaldi reaparece, depois de um silêncio em que passou pelos dolorosos sofrimentos que esperam os que seguem os caminhos do ideal. Antes, ele era um teórico e sonhador, podia dizer-se. Mas agora, ele já bateu a cabeça na realidade da vida humana, e não o é mais. O golpe foi duro para ele, e destruiu aquela fé ingênua e simples que lhe fazia dizer tudo com franqueza, sem a astúcia das prevenções humanas. Avalie-se, pois, este livro, também por aquilo que o Autor teria podido dizer, mas que preferiu calar. Desencadeou-se naquela alma, partindo do homem, uma grande tempestade, que terminou ante a face de Deus. Ele não se lamenta de tudo isso, pois sabe ter vislumbrado uma novidade importante, embora através da amarga experiência, sabe que aprendeu a conhecer o homem, e porque fez uma nova e grande descoberta: ou seja, que as conquistas espirituais, como a matéria e a vida, os sofrimentos, refinam e purificam o espírito, não o abatem. Está satisfeito porque, com o seu ideal, atravessou um período de morte, ressurgindo mais forte do que antes, e a sua fé renasceu ainda mais profunda, mais consciente, mais sólida. Ele oferece as páginas escritas com o sangue do seu tormento ao mundo cético e sábio, que sabe o que faz porque conhece a vida e não se importa, rindo dessas paixões e afirmações ideais. Mas ele conhece, por sua vez, as leis que regem esses fenômenos, e sabe que o riso, a incompreensão que lhe volta as costas, a indiferença e a desaprovação, que não é de uma classe social, mas a expressão do homem comum de hoje, devem naturalmente estar na vida de quantos segue o caminho da redenção humana, indicado por Cristo. Sonhos de grandeza, vitalidade expansiva, conquista vitoriosa, e ainda potência de gênio e de domínio sobre a natureza, todas estas grandes a admiráveis coisas não podem suprimir aquela lei do sacrifício individual, que pertence, ela também, à vida, e que o homem de hoje, perseguindo os ideais abraçados, teria de fato muita vontade de esquecer. É crime, porém, trair o ideal, qualquer que ele seja, quando por ele tantos mártires se sacrificaram. Chamado trágico e desesperado, mas quem sabe compreenderá; chamado feito numa hora histórica e solene, pleno de sua força e do seu desejo de dar, a quem sofre, fé e esperança em coisas sempre mais altas.
Este volume não é autobiográfico. Traduz, entretanto, as experiências do Autor, e reflete estado do espírito reais, por ele realmente sentidos, ou, pelo menos, idealmente vividos. Como sempre, atrás de cada palavras há uma real vibração de vida espiritual, um verdadeiro tormento de paixões, há freqüentemente uma experiência vivida, uma prova enfrentada e superada, uma dor suportada talvez ainda um caminho percorrido, um pouco do trágico e doloroso caminho da vida seriamente vivida.
Não obstante esta renovação, os princípios dos volumes precedentes não são aqui negados. Ao contrário, eles são revigorados, porque, desenvolvendo-se agora sob outra visão e com diferente estado de espírito, ou seja, com ceticismo demolidor, ressurgem mais belos e mais fortes, com uma fé menos ingênua, com menor simplismo, com um senso mais trágico, de angustiada humanidade. Dessa maneira, o leitor reencontrar nestas páginas a personalidade de Ubaldi, mais completa, amadurecida através de novas experiências, levada a uma nova fase que, se é a continuação lógica das precedentes, assemelha-se às vezes ao reverso, tão violentos foram os golpes e a desordenada tormenta que a envolveu. Aqui o autor se debruça sobre o abismo infernal da vida estúpida do mundo que ele descobre. Por um momento as náuseas o sufocam e o terror o paralisa, mas as forças do espírito são poderosas, e o equilíbrio, por fim, se restabelece. A concepção evangélica, que parecia vacilar, resplandece de novo, mais luminosa do que antes, consolidando-se nas provas superadas e já agora definitivamente triunfante.
O tipo de leitor a que estas páginas se dirigem é diferente, e os mesmos princípios são apreciados aqui de outro ponto de vista, de maneira a desconcertar, talvez, o observador superficial, ainda apegado às perspectivas anteriores. Este pretende ser um livro forte, de colorido humano, marcado por violentos contrastes, um livro real e atual, não mais olimpicamente pensado na paz do Céu, como A Grande Síntese, mas tragicamente vivido nas lutas da terra. A mesma verdade é aqui diversamente observada. Aquele é um livro de clara visão da verdade, contemplada na paz serena de um ser tranqüilamente situado fora das competições terrenas . Este é, pelo contrário, um livro escrito por quem vive na terra, imerso na sua psicologia, fazendo própria a alma infernal do mundo, por quem viveu as suas dores, e lutando e sangrando, as descreve. É natural que a mesma realidade da vida, não observada na paz das alturas, mas na luta e no tormento da terra e expressa às vezes com a psicologia do mundo, vista assim de um ângulo diverso, ofereça-nos diferente quadro. Mas desta vez era necessário descer ao mundo das realidades humanas e falar também a outra categoria de pessoas, àquelas que vivem planamente a vida; era necessário falar com a sua própria linguagem e segundo a sua maneira de pensar, mesmo a quantos haviam até agora sorrido e dado de ombros, como se faz ante a ingênua e impraticável utopia de um idealista sonhador. Era necessário falar, desta vez, não somente aos eleitos, capazes de intuir e de crer, já amadurecidos, videntes, sensíveis às provas da razão, às explosões do sentimento, ao fascínio do belo e do bem, já encaminhados e ávidos de maiores ascensões espirituais. Era necessário, agora, falar também aos cegos e surdos, colocando-se no seu próprio nível, para fazer-se compreender, falar aos insensíveis, ligados à matéria como a sua única forma de vida, aos involuídos, aos inertes, aos rebeldes, aos negadores sem fé e sem esperança. E para fazer compreender-se era necessário tornar-se um deles, fazer própria a sua cegueira, a sua revolta, a sua cruz. Esta nova voz não podia mais descer do Céu, límpida e melodiosa, mas devia, penosamente, sair do inferno, áspera e fatigada, não mais de anjo e sim de condenado. Quando o homem do mundo ouvir esta linguagem mais facilmente abrirá ouvidos e compreenderá. Quando, desta vez, ouvir falar alguém que mostra conhecer a realidade da vida, com todas as suas mentiras, maldades e traições, ele mais facilmente se persuadirá, e não lhe será mais tão fácil sorrir com ceticismo, acusando de ingênua e incongruente utopia o idealista sonhador. De resto, é natural que assim apareçam, na terra, as coisas vistas do Céu. É necessário, então, vê-las na própria terra. Questão de perspectiva. E, por fim, tudo se mostra mais real do que antes. Os mesmos princípios, antes só teórica e racionalmente afirmados, atingem aqui diferente potência, quando ao invés de descer do Céu, emergem ensangüentados do inferno terrestre. E uma verdade que resiste a esta prova humana de lama e de sangue, adquire a força que antes não tinha, ao menos sobre a Terra, e pode então proclamar-se mais alta, pois também aqui, experimentalmente, provou a sua realidade.
Nesta nova posição, o autor espera ter encontrado outra maneira de fazer o bem. E nisto consiste a continuação, o completamento do seu passado, o seu progresso. Talvez, fosse necessário um livro de verdadeira experiência espiritual, como especial reação a certos romances estrangeiros, livros de inconscientes, feitos para demolir aquilo que de mais elevado o homem possui, conquistado à custa do sacrifício dos mártires e da ruína de tantas vidas, feitos para enfeiar-nos e envenenar-nos a existência, roubando-nos a fé no bem e a esperança no futuro, livros, enfim, desapiedadamente demolidores e sutilmente maléficos, que o povo avidamente devora. Quem, como esses livros, tudo nega, mutila e mata primeiramente a si mesmo. Esta História de um Homem diz, pelo contrário, a cada passo: Sim! E quem afirma, constrói, cria, reencontra a vida que a negação lhe rouba. A criação é uma afirmação. Deus é o Sim. Satanás, o Não.
Desta vez o Autor fala a um mundo de estridores infernais, e deve usar uma linguagem de contrastes e de tormenta, de luta e de revolta. Estamos, agora, não mais no Céu, mas verdadeiramente na Terra, na dura realidade da vida, numa atmosfera baixa e tenebrosa, que a luz custa a rasgar, e onde os seres lutam e sofrem. Uma guerra de todos contra todos impera sem tréguas, impedindo a serenidade de contemplação superior. Toda energia está empenhada nas rivalidades humanas, na necessidade se sobrepor-se. Tentar evadir-se é inútil. Em tal mundo, o céu, lugar de ventura, não pode parecer senão uma utopia. Todos, mais cedo ou mais tarde, fazem esta dura experiência. O Autor, também, devia e quis fazê-la, mas não para se sepultar com ela, e sim para ressuscitar, ao final, e indicando a todos as vias da ressurreição. O mal não é aqui invocado para demolir, mas para construir, com a finalidade do bem. Este livro foi escrito numa pausa arrancada a essa incessante tensão infernal, numa trégua brevíssima, roubada à inquietante necessidade do trabalho e da luta pela vida. O próprio autor sofreu a dura lei de todos, a vida humana imersa na matéria, o espírito invadido pelas suas impiedosas necessidades. A experiência e a superação que ele nos descreve são as que o mundo também, seja embora por mil maneiras diversas, deverá realizar. O relato tem, portanto, significado e interesse, universais, pois no seu caso particular vemos agirem-se as leis universais da vida, que guiam a todos. Trata-se, nestas páginas, de um Céu visto pelos olhos críticos e positivos do homem que conhece a luta da vida e conhece a dor, vista com a mentalidade objetiva da ciência e do bom senso, através do critério prático e realista como realidade do amanhã, em que se acordam o conceito científico da evolução biológica e o conceito religiosos da redenção cristã, um céu, enfim, que a própria razão nos indica como o lógico e necessário porvir da humanidade.
Embora não sendo autobiográfico, este livro foi, entretanto, realmente lutado e sofrido. Foi escrito, de fato, em quarenta dias, como uma explosão. Quiçá a vida real se apresente, às vezes, mais trágica e desapiedada do que esta, imaginada pelo autor, e a certos indivíduos negue também a consolação dos últimos anos, que, na sua grande fé na vitória final de quem luta por uma idéia, o autor não pode deixar de concedê-la ao seu protagonista. Mas o princípio não é abalado e a tese não resulta menos válida por isso. Talvez não haja tempo no presente volume, para se demonstrar tudo aos céticos. Há neste livro muitas teorias. Sua principal demonstração será dada pelo fato de que elas foram vividas e aplicadas, concluindo na própria vida. Essa demonstração saltará sempre, igualmente evidente, da logicidade do desenvolvimento do conjunto, da ardente fé revelada pelo autor, da objetividade com que a experimentação é conduzida na história aqui narrada e, por fim, da excelência das conclusões. Este é um livro escrito numa hora de espasmo mundial. É verdade que são excelentes e santas as teorias pregadas, talvez mesmo com fé e convicção, no campo religioso e civil. Mas este livro não se firma em teorias. Quer, pelo contrário, ter a coragem de olhar no seu íntimo a realidade biológica, aquilo que de fato o homem é, e não aquilo que acredita ser ou desejaria ser, ou só excepcionalmente o é. Não é verdade, porventura, que estamos numa época construtiva e de grandes audácias? Pois bem, então é necessário termos esta grande coragem de olhar tudo face a face, sem nos iludirmos e sem mentir.
A hora presente, mesmo a despeito de todos os míopes e de todos os fracos que a maldizem, é ampla e vigorosa, exigindo-nos largueza de visão e a coragem dos fortes. Esta não é a hora da tranqüila e prazenteira psicologia mozartiana, do anjo que fala aos felizes, que são pouquíssimos; não é a hora dos doces equilíbrios da beleza, mas é a hora da humana, trágica e potente psicologia beethoveniana, feita de luta e de tormenta, de fadiga e de dor, que fala aos sedentos de felicidade, que são em maior número. É a hora dos impetuosos e fortes sentimentos da criação. Este é o estilo do presente livro, dado pelo espírito de nosso tempo, que é essencialmente beethoveniano; não rossiniano, mas wagneriano; não rafaélico, mas miguelangesco; não ariôstico, mas dantesco; não barroco, mas revolucionário, napoleônico, ferreamente retilíneo, novecentista. Tantos, como formiguinhas presas à terra, não vêem senão as pequenas coisas vizinhas, e assim se perdem em considerações de somenos, sem imaginarem o gigantesco quadro de conjunto, que torna apocalíptica a hora presente. Tantos não sabem, como tantos não sabiam, às vésperas de revolução francesa, o que hoje se prepara, e se lhes explica, eles não compreendem. Mas quem o sabe, treme, exulta, vive de febre, e, também, de esperança. Este livro é um grito, lançado sobretudo aos pósteros e aos que hoje os antecipam, é o grito de fé do homem novo que espera, para poder viver a nova civilização do terceiro milênio, não mais a passada civilização da força, nem a hodierna civilização do dinheiro, mas a do espírito. Desta era e para ela, sobretudo, fala o nosso autor, sabendo que só então poderá ser plenamente compreendido. Fala hoje para preparar por enquanto os espíritos, para apontar problemas e soluções, para dar a sua contribuição à maturação do homem novo da nova civilização. Se o autor fala alto e solene, é porque sente que nos encontramos, realmente, numa grande curva biológica, em que o homem primitivo, ignaro e feroz, está para sair da sua menoridade e se prepara para novas formas de vida, nas quais, cansado de ser uma inconsciente marionete, guiada por uns poucos instintos, viverá na lógica, na potência diretora, na consciência, liberdade, bondade e justiça do espírito.
Este é um livro de reação ao mundo atual, ao homem que se fez inerte, egoísta, falso e bestial, no seio da chamada moderna civilização, e o seu escopo é torná-lo melhor, dando-lhe novamente, em primeiro lugar, luz, fé e esperança, dando-lhe uma direção ao desencadeamento das forças primordiais. Reação que pode ser talvez brutal, mas a linguagem enérgica pode ser um bem, quando o espírito não escuta mais, habituado as fórmulas rotineiras de advertência. Por detrás dessa forma, a substância e evangélica. E o mundo, ao chegar ao fundo da sua atual e trágica experiência, terá certamente fome dessa substância e procurará reencontrar as coisas do espírito, sobrepondo-se à sordície da matéria, venerada hoje em particular, e de fato até à idolatria. Pobreza e dor serão salutares, por despertarem as almas, e este livro os prepara, pois nele, mesmo das profundezas do inferno, é sempre o céu que se olha. Nele é sempre seguida, seja embora por vias diversas das precedentes, o mesmo objetivo evangélico, que é a meta constante, e jamais desmentida, do autor.
Se neste livro se fala com energia e se enfrenta corajosamente a realidade humana tal qual é e não como será ou deverá ser, a franqueza não é usada somente para condenar, mas também para compreender e para ajudar. Por detrás de uma forma áspera está o cumprimento de um missão de bem. Nele está compreendida a trágica paixão do homem que sofre para se libertar, subir, redimir-se da animalidade. O autor a sente e a vive, porque é também seu aquele afadigado anseio pelo ideal e a humana impotência para atingi-lo em cheio. Para convencer e impulsionar em direção à saída, ele se apega às verdades biológicas, que não são questões religiosas, de filosofia, de classes sociais ou de opiniões particulares, e portanto motivos de discórdia, mas verdades aceitas por todos, porque todos as aplicam, não importa se acreditem ou não, se as professem ou não, e no-las atiram ao rosto com a energia da desesperação, pois a crise do mundo é de fato desesperada. Para despertar e convencer, ele se apega também a estas verdades mais compreensíveis, porque tangíveis e próximas, que todos tem ao alcance da mão, encontrando-as a cada passo, na realidade da vida. Nenhuma via despreza, para chegar ao seu escopo, que é o bem. Se por momentos, com áspera linguagem, desnuda a humana baixeza, afronta, logo mais, e racionalmente resolve os problemas. Com o senso do amor e de uma compreensão profundamente humana, aproxima-se fraternalmente do homem, para estender-lhe a mão e ombrear-se com ele, sob a mesma cruz e sobre o mesmo caminho das ascensões humanas.
Aqui se trata do espírito. É bom esclarecermos logo, para evitar mal entendidos. Aqui o espírito não é concebido no sentido materialista, como o é por alguns, em determinada mística moderna. O espírito, para o autor, não é um órgão ou uma função da vida animal, posto a serviço desta, somente para que ela triunfe, nas lutas da existência terrena. O espírito, por ele, é qualquer coisa de muito maior, qualquer coisa que pertence, além dos limites da vida humana, ao absoluto e à eternidade. É verdade que o materialismo hoje se requintou a ponto de alcançar o campo do espírito. Não é mais, a não ser para alguns retardatários, o materialismo grosseiro e negativista de cinqüenta anos atrás. Mas a sua substância e os seus resultados podem ser os mesmos. A colocação materialista dos problemas do espírito não pode ser aceita pelo autor, que sabe muito bem existir, além do mundo terreno, todo um outro mundo. Ele o conhece tão bem, que faz viver nesse mundo o seu protagonista, do princípio ao fim, e no-lo mostra tão vivo e operante, que serve de exemplo e de aviso aos que o conheceram e esqueceram, e de demonstração aos que o ignoram. Entendamo-nos logo. Não é o espírito o servo da vida terrena e humana, mas esta é o meio de que se serve a vida do espírito, que tem outros objetivos e outros limites. Este livro o demonstra bem claramente. O espírito é qualquer coisa que supera todas as humanas afirmações utilitárias, e a moral do autor não admite que ele seja reduzido a simples instrumento de conquistas materiais.
Tudo isso não impediu o autor de compreender o sentido da atual hora histórica e admirar o seu titânico esforço construtivo, que ele sempre sustentou e secundou. Ele quer somente manter-se no equilíbrio da verdade universal de todos os tempos, não desejando limitar-se a um dado ponto de vista, como é necessário para quem se vê arrastado pela força das circunstâncias, em todo momento ou situação histórica. E a ação das circunstâncias é hoje de tal maneira titânica e urgente, que mobiliza tudo, inclusive o espírito, absorvendo-o em si mesma. Mas o autor não pode olvidar os objetivos distantes, e se dirige também às gerações futuras, que, colocadas em condições diversas, por certo, pensarão diversamente e de outras afirmações necessitarão. Ele não pode senão completar e antecipar, com uma visão que às massas de hoje poderá parecer utopia. E aqui está esboçado um ideal que, hoje, não é atual para a maioria, mas talvez o seja amanhã. Entre a concepção que este livro oferece e os tempos presentes não há antagonismo; trata-se apenas de uma posição diversa, no caminho da evolução. O autor compreende muito bem e admira o esforço dos povos para se organizarem em novas ordens sociais, o esforço da ciência para descobrir os segredos da natureza, o esforço coletivo do trabalho para dominá-la e utilizá-la. Mas roga que se compreenda, também, o esforço do homem isolado, que conquista outro tanto, perigosa e utilmente, pelas vias do espírito. Estas serão hoje, talvez, vias de exceção, muito complexas para que a ciência os compreenda e o homem comum as siga, mas justamente por isso mais interessantes, pois representam determinado tipo, entre os tantos caminhos do porvir. Quase sempre o futuro é utopia somente enquanto não se torna presente, e aqui é antecipada uma fase que, se hoje pode parecer absurda, amanhã poderá ser normal. Devemos bem compreender que o autor não destrói ou condena, mas apenas previne. A sua atitude não é, pois, uma evasão do mundo humano, que no seu plano ele deve aceitar, mas um complemento do mesmo, com visões mais vastas e longínquas.
Ele mostra-se, assim, de pleno acordo com a hora presente. Ninguém mais do que ele respeitas os sacrossantos direitos e trabalhos do homem sobre a terra. Mas ele não pode deixar de olhar mais longe e mais alto, de lembrar que há, antes de tudo, um outro mundo no Céu, que é a meta da caminhada neste. Ele não pode, portanto, limitar-se a conceber o espírito como instrumento exclusivo da luta terrena, escravizando aos fins da matéria, mas tem necessidade de lhe traçar, neste livro, os objetivos maiores, que se encontram além da Terra e da vida terrena. Este complemento é necessário e útil. Acreditamos ainda que as perspectivas de certas audaciosas e inusitadas superações, a narração de certas experiências fora do comum, possam ajudar os espíritos, seja por lhe mostrar a afinidade entre as metas próximas e aquelas mais altas e distantes do porvir, - que o homem, um dia, mais civilizado, deverá chegar a compreender e começar a viver, - seja porque tudo isso dá um senso profundo de orientação à vida e sobre ela projeta um útil e fecundo princípio de ordem, uma confortante esperança, uma luz que satisfaz e guia a razão, rumo a realizações sempre mais nobres e boas. A visão daquilo que é moralmente mais elevado é sempre uma lição de sabedoria, e portanto só pode ser benéfica. Não poderá jamais prejudicar a alguém o relato de uma experiência de vida, em que o motivo feroz e desapiedado da luta brutal se eleva ao motivo do amor evangélico, o sentido da existência é elevado a plano mais alto, e a ascensão nos rumos do bem individual e coletivo é proclamada através do exemplo experimentalmente efetuado.
O autor não renega, neste livro, a realidade humana. Demonstra, antes, tê-la compreendido e vivido, e nem sempre a condena, mas sabe também compreendê-la, compadecer-se dela, e para ela se volta, para a auxiliar, segundo o evangélico "ama o teu próximo". Mas não pode deixar de lhe fazer brilhar à frente as supremas finalidades do espírito, que são a chave da redenção. Ele se mantém em de equilíbrio. De um lado aceita a moderna concepção biológica do espírito ( A Grande Síntese ), e faz deste, não uma unidade abstrata, isolada, estranha à vida, mas fundida na realidade humana e na unidade orgânica do todo, ele sente a fecunda colaboração entre espírito e matéria. De outro, ressalva, entretanto, a finalidade superior daquela fusão e colaboração, finalidade que se encontra no espírito, inteiramente acima das menores e contingentes finalidades relativas, filhas do momento e situadas no plano da matéria. Este seu livro é justamente uma equilibrada chamada das finalidades últimas, no campo das finalidades próximas, compensando assim as concepções unilaterais, que tudo procuram reduzir ao ponto de vista humano, em função da utilidade da vida terrena e transitória, em detrimento e sufocamento do ponto de vista super-humano, divino e eterno.
O mundo atual aspira a dominar, e isso é justo no seu plano. Mas, para dominar, precisa tornar-se melhor e, tornar-se melhor, não lhe basta a simples concepção utilitária do espírito. É lhe necessária uma concepção mais vasta e orgânica, que supere os limites deste simples rendimento prático e imediato, sobre o plano humano e terreno. Para vencer na vida, para ter um objetivo, uma razão e o direito de vencer, e dar um sentido à vitória, é necessário que veja também as metas distantes e super-humanas do espírito. Estas não poderão tornar-se suscetíveis de aplicação imediata, porque o mundo está ainda atrasado. Mas somente elas podem dar-lhe uma orientação segura. A concepção puramente utilitária permanece egoisticamente isolada no funcionamento orgânico do universo. E, no caminho da evolução, é como um instrumento quebrado ou um órgão mutilado, ante a visão das grandes linhas e das metas longínquas.
Por isso, no presente trabalho, mesmo que o protagonista nem sempre seja vitorioso, apresenta-nos o modelo ideal de um homem que busca, num trágico esforço, elevar-se, em clara oposição ao tipo normal, com bem diversas qualidades, estaticamente ligado à terra, e que deseja, por si mesmo, somente por força do número, torna-se o modelo da vida. A este tipo biológico, hoje normal, o autor opõe e indica um novo tipo de homem, que luta desesperadamente para se tornar superior e melhor, projetando-se inteiro na direção do futuro. As leis da seleção, já agora atuando no plano psíquico, parecem tender justamente para a formação e a normalização daquele tipo, hoje de exceção. A moderna descoberta científica da energia e o seu domínio, conduzindo o mundo da fase estática da matéria à fase dinâmica do movimento, introduz o homem, desde agora, no limiar daquela nova civilização do espírito, de que o irrequieto dinamismo do tipo "900 é já um primeiro, embora elementar, degrau. Este tipo de homem novo é hoje uma concepção biológica aristocrática e individualista, que entretanto não se encontra em antagonismo com os hodiernas concepções socialistas, niveladoras e coletivas, porque é justamente ao serviço dos demais que o protagonista coloca as suas qualidades e conquistas. Este livro é um desafio ao mundo, mas a favor do mundo, a quem mostra um tipo ideal, ante o qual o melhor que se pode fazer é voltar-se para ele, e que, se pode ser melhor, faz com isso perdoável a sua superioridade. Ele, se é rico em bondade, em tenacidade, em espírito de altruísmo e sacrifício, demonstra e utiliza essas qualidades, não egoisticamente para si, mas no que elas representam de alto valor coletivo, no que elas têm de necessário à formação de mais compactas unidades sociais.
Isso poderá provocar as fáceis acusações de orgulho. Mas o protagonista nos mostra, nestas páginas, o trabalho antes do triunfo, o martírio antes do sucesso. E este se expande no Céu, longe da Terra, da qual, dessa maneira, não prejudica nem perturba os interesses. Nesta obra se demonstra como o primeiro atributo de toda superioridade são os seus correspondentes deveres, como tudo é conquistado e merecido, são severas e justas as leis do progresso, que grandes compensações coroam esses esforços de superação, e que coisa profunda, série e grande é, ainda no caso mais doloroso, a vida. Tudo isso é altamente moral. Este livro quer ser um estímulo a todos, no caminho da superação. Seja para os menos elevados, aos quais se dirige, assumindo quase sempre a sua forma psicológica, seja para os mais avançados, através de sua substância e das suas conclusões evangélicas, e aos quais deseja guiar, como aos primeiros. O livro está, nesse sentido, sobre as linhas da evolução, constituindo uma força que age segundo as mais poderosas correntes da vida. Talvez seja ele uma expressão instintiva e inconsciente, manifestada através da sensibilidade do autor, do impulso biológico criador, que é próprio da natureza, ora ativa, sobretudo, no campo psíquico-espiritual. O livro encontra-se, portanto, entre as boas forças criadoras, que guiam a Deus, e não poderá senão despertar, no íntimo das consciências sadias, uma vibração de aprovação e de sincera adesão. Se a certos momentos as palavras são enérgicas e a advertência poderá ser calorosa, por trás delas, entretanto, não há qualquer interesse a ser defendido. Com toda a franqueza, trata-se tão somente de um ser sincero, que não se permitiu outra riqueza, além da coragem de dizer a verdade. O autor se sentirá, por isso mesmo, satisfeito, e se considerará recompensado do eu trabalho, se puder constatar que, com esse livro, ainda melhor atingiu a finalidade dos precedentes. Se verificar, enfim, que, instigando a subir, rumo a formas mais elevadas de vida, conseguiu fazer um pouco daquele bem que é a sua aspiração mais ardente.
No seu último volume, que precede a este, Ascese Mística, o autor, no último capítulo, "Paixão" , concluiu com estas palavras: (....) A hora é intensa para todos. Não se pode parar. Preparada pelo tempo, ela se precipita. Tenho medo de olhar. (....) Rasga-se então diante de mim a visão da terra e do céu... a terra treme convulsa, no pressentimento de uma catástrofe sem nome. (....) Vejo um turbilhão de forças que se projetam sobre a terra, e vejo a terra abalada, convulsa, submersa num mar de sangue. Tétrica é a hora da paixão do mundo. E parece, sem esperanças. O círculo se estreita, se estreita, e logo estará fechado, e será tarde para fugir ao seu aperto. A mão do Eterno empunha o destino do mundo, estão prontas a se desencadearem as forças para o choque fatal. Avizinha-se a hora das trevas, do mal triunfante, da prova suprema. Bem-aventurado quem, então, não tiver vivo sobre a terra. ...Já disse há tempos: preparai-vos, preparai-vos, mas não me ouvistes. Breve, será tarde demais. O drama está próximo, eu o percebo... Naquele momento, senti tremer a terra. ... Dentro de mim, está a visão do real. Senti, realmente, a terra tremer". Se esse livro, publicado em 1939, claramente predizia, como iminente, o atual cataclisma mundial, o presente volume, História de um Homem, continuando o caminho seguido em Ascese Mística, conclui, ao invés, da seguinte maneira, no testamento espiritual do protagonista ( cap. XXX ): "Estudai sobre o grande livro da dor; aprendei a sofrer, se desejais subir. É bom que o mundo sofra, para que possa corrigir-se e avançar. (....) sem dor não há salvação. A esta lei fundamental não se foge. Mas depois da paixão e da cruz, há a ressurreição e o triunfo do espírito. Aceitai, portanto, o batismo da dor, a expiação que purifica, porque esta é a única via de redenção. Deixo-vos o aviso de que na necessária paixão do mundo está a aurora da nova civilização do espírito." Este novo volume, publicado em 1942, escrito em meio de já anunciada tormenta, encerra-se, portanto, com o anúncio da aurora de um novo dia. Depois da destruição, a reconstrução: depois da dor, a alegria de uma vida mais alta; depois da necessária paixão da guerra, desponta a nova era do espírito.
É este, portanto, o livro da ressurreição, que se anuncia no final porque não pode chegar, para um, como para todos, senão depois de percorrido o necessário caminho da dor purificadora. Se este é o livro da prova e do sofrimento, do angustioso aperto entre as garras do mal, é também o livro da esperança, do triunfo do espírito e do bem. A trabalhosa elaboração da ascensão é aqui impulsionada, para o indivíduo, na história do protagonista, e para o mundo, na consciência da sua atual e apocalíptica experiência. Ao contrário da cena de terror e de paixão com que se encerra Ascese Mística, o presente volume conclui invocando o chamado, das entranhas das maturações biológicas, o homem novo, consciente no espírito, e anunciando e saudando a alvorada da nova civilização do Terceiro Milênio. Natal, 1941.
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