segunda-feira, 26 de maio de 2008

Livros do Plano - Capitães da Areia

Capitães da Areia, Jorge Amado, D. Quixote, livro recomendado para o 9º ano do 3º ciclo, leitura orientada em sala de aula, grau de dificuldade III

Capitães da Areia é hoje um reconhecido clássico da literatura brasileira, sendo um dos romances mais representativos da escrita comprometida de Jorge Amado. O que pode, à primeira vista, parecer uma característica negativa para a qualidade estética da obra, desvanece-se com a leitura.
A descrição do dia a dia do bando de meninos de rua mais temido da Bahia torna-se aliciante a cada novo episódio, à medida que o leitor se embrenha no conhecimento das personagens e das suas actividades. Furtos, rixas, e até violações constam do cardápio que Jorge Amado nos oferece, a par de sentimentos de raiva, angústia, profunda revolta. A solidão dos elementos principais da narrativa (Pedro Bala, Professor, Sem Pernas, João Grande, Pirulito, Volta Seca, Gato…) funde-se com o rigoroso cumprimento de regras de honra e respeito que estabelecem entre si e para com aqueles que os estimam, como o Padre José Pedro ou Don’Aninha. A voz omnisciente do narrador veste, a cada capítulo, a pele de um dos meninos, aclarando os paradoxos interiores que o assola, denunciando sempre a ambiguidade da sua condição natural de criança ou adolescente que se esconde numa imagem exterior de violência, e com a qual muitas vezes não sabe lidar.
Particularmente exemplar é o episódio em que Pedro Bala tenta violar uma rapariga que vê a caminhar na praia, depois de ouvir pela primeira vez a história de seu pai, um herói para os estivadores do cais, grevista que morrera em luta por melhores condições para si e todos os seus companheiros. Ao ver a rapariga, Pedro Bala persegue-a, acabando por violá-la. Toda a descrição da abordagem do rapaz e do acto sexual provocam um profundo mau estar ao leitor, que até aqui preza naturalmente a ponderação e capacidade de liderança do jovem. O desenlace do episódio, no entanto, transforma poder em arrependimento. Pedro Bala acompanha a rapariga até à rua, de forma a protegê-la de outros bandidos e, quando se separam, a rapariga que até aqui apenas chora, insulta-o e cospe para o chão como sinal de repulsa. No final, Pedro Bala fica ainda mais abalado do que quando vê a rapariga, porque agora tudo se mistura: a admiração pelo pai, a revolta por ter sido morto e pelas injustiças que os pobres sempre sofrem, e o seu acto, que agora condena e não o libertou desta mágoa que vinha sentindo.
A densidade das personagens não permite que os seus actos sejam legitimados e que estas apareçam apenas na sua condição de vítimas, que obviamente são. O realismo do discurso, a gíria e o calão, o recurso ao diálogo e às descrições muito visuais conferem à narrativa uma leitura quase cinematográfica. A câmara acompanha os passos de um ou mais meninos numa sequência, surge em seguida um flashback contextual, numa nova sequência, retomando enfim a acção principal. Em todas elas, observam-se sempre grandes planos de pormenores do rosto, das expressões ou dos movimentos de cada um. A atenção dos elementos do bando serve precisamente a tensão diegética, e é a partir dos seus olhos que se vêem as várias condições sociais da Bahia, com as suas preocupações, os seus pecadilhos privados, as suas demonstrações de poder e os seus preconceitos.
É claramente um livro político, no sentido em que se denuncia a desigualdade continuada entre ricos e pobres, e em que os Capitães da Areia são um paradigma irónico de múltiplos sentidos, já que são temidos por todos, mas ninguém os quer conhecer, imaginando que os seus líderes serão adultos e não adolescentes entre os 12 e os 15 anos, cuja necessidade tornou espertos, multifacetados e unidos, numa organização invejada por muitos. Certo é que este bando, que ainda reserva uma dose privilegiada de inocência (como acontece quando Volta Seca e Sem Pernas vão trabalhar no velho carrossel de Nhozinho França), serve como exemplo embrionário do que mais tarde poderá ser a violência gratuita de adultos que se alicerçam sobre a descriminação e parcial julgamento da sociedade dita de bem. A poeticidade da linguagem de Jorge Amado alimenta a sintaxe com ritmos sensuais, despojados e lânguidos, para subitamente os interromper num surto de dor. Neste balancear tecem-se as linhas de um romance cuja principal marca será não evitar os conflitos, nunca dourar um cenário mas sim evidenciar a beleza e a fealdade do mundo. E o leitor cede à tentação de acrescentar… como ele é.

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