quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Caim levantado do chão

Há quatro ou cinco décadas, ainda em Portugal se catequizava as gentes com princípios e noções abandonadas a custo, por força da actualização do país, embora dificultada por todos os meios – políticos e religiosos, também, que nisto a igreja romana não esteve pelos ajustes. A Concordata dava-lhe corda larga, mas foi sempre uma situação excepcional de conúbio mais ou menos declarado que deu ao Vaticano a margem de influência que se sabe. Em Portugal como noutros países da mesma moldura religiosa.
O Inferno era até há poucas décadas aquela ideia que torturava os iletrados – sobretudo os pobres –, mas não só, porque a crença fanática nas chamas da punição reduzia muitos cidadãos alfabetizados ao nível do primário. E sobretudo as crianças.
Quem da terceira idade actual não se recorda das imagens de almas de rosto humano que se retorciam nas vascas do Inferno ou nas agonias do Purgatório? Devidamente patrulhadas por anjos fantasiados com asas, em ilustrações que davam o lustro dos melhores cetins pelos guardas celestiais que faziam umas horas a cuidar dos condenados em espera de melhor sorte. Os querubins, e outros das milícias, de que fala Saramago em outras e diversas circunstâncias.
A imagem, sim, esse instrumento poderoso que a Igreja usou até à usura, mesmo se foi alvo de polémica dentro do próprio sistema, com Constantino a dar-lhe força no embate definitivo da implantação e crescimento do catolicismo. E, na imagem, lá estavam adereços como os santinhos que os meninos aprendiam a venerar, a beijar, a desveladamente encadernar no máximo dos cuidados.
Foi crónico o conflito do povo com o clero, pleiteação típica do exercício do poder – muitas vezes pela palavra (e mão pesada!) do vigário, em claro excesso dos limites do seu ministério, chocando-se por isso na regulação civil ou tão-somente nos direitos intuídos pelos menos cordatos – e menos (ou nada) tocados pela fé ilimitada. Mas não era o padre representante do Criador à face do mundo? Não será então natural a pesada mão divina, em textos bíblicos, de modo a justificar o muita vezes livre arbítrio da decisão paroquial – quando não da própria hierarquia eclesial?
Vale a pena pôr mais na carta? Não, nem José Saramago precisou de levar a discussão para aspectos tão terrenos. Ele, nascido na segunda década do século passado, muito arrastou certamente, como incréu, desse enfrentamento com a Igreja da aldeia ribatejana onde nasceu e cresceu – a não muitos quilómetros dos acontecimentos de Fátima – e em que se muitos acreditavam, alguns contestavam.
Não terá sido abençoado pela fé, supõe-se, logo desde que o nascituro carecia dos sacramentos que o afastassem das chamas, as tais, do Inferno que pairava sobre a vida diária – e culminava nas tão glosadas confissões, com os seus absurdos. Imagine-se, a criança nascia em pecado… mais se a sua era família pouco tocada pela bênção do Deus bíblico.
Para ele, Saramago, que nasceu curioso de saber a vida, desbravá-la e moldá-la, o conflito com os princípios bíblicos seria inevitável, pois apesar dos presumíveis princípios ímpios dele e dos familiares certamente não deixaram as forças vivas de tentar impor-lhes as regras vigentes e apadrinhadas politicamente num país pio, sacristão, venerador e obrigado. Naqueles tempos, havia coisas que eram uma cruzada incontornável – e a igreja estava à frente.
Saramago, sabe-se, é um homem que se fez a si próprio – no sentido autodidacta, mas no que de mais construção temos nós. Certamente essa elipse de crescimento não poderá ter deixado de voltar ao ponto zero da catequese, mesmo que rejeitada. Esse debate que, afinal, o Homem, todo e qualquer, mesmo na recusa de Deus (de deus) não deixará de colocar-se – na proporção, é certo, da sua racionalidade, da sua consciência de ser, da sua dimensão humana, que ou foi criada por deus ou ele a criou. Exacto: na justa proporção em que não encontra(va) explicação para as suas origens, a vida, o universo. E a morte, ah, a morte, esse mistério que aterroriza e poderia culminar na ressurreição – a bênção concedida aos que tinham cumprido as linhas. Lembram-se? Ainda se catequiza essa ideia de um dia os mortos se levantarem das campas alavancados por um toque de clarins, que em algumas estampas eram soprados por rechonchudos e rosados anjos?
O que admira e assusta neste debate que o escritor mais uma vez suscitou? A canelada na Bíblia? As declarações subjacentes, ainda que as tomem por sementeira publicitária? A negação da lógica que subjaz ou preside a parábolas, alegorias e imagética que a prática religiosa dos católicos há muito renegou na prática e até na teoria? A própria, e mais funda, negação/contestação de Deus?
Caim foi o modelo escolhido pelo escritor, como poderiam ter sido outras figuras bíblicas. O que aqui está em causa é a dimensão moral do Deus, já nem exactamente o seu reconhecimento, que a Bíblia propõe e a Igreja fez executar durante séculos. Tem a história, as sucessivas negações da rectidão do criador, algo de extraordinário em termos de escrita? Não parece. Está lá o estilo de Saramago, a ironia, a escrita segura, directa, a alegoria quando se adequa, a afirmação directa quando tem de ser. Isto é, tudo o que dele fez o reconhecido autor.
Como quando resume a figura de Josué como “a crudelíssima pessoa que foi” e recorda que “naquela época as maldições eram autênticas obras-primas literárias, tanto pela força da intenção como pela expressão formal em que se condensavam”, pelo que “poderíamos tomá-lo como modelo estilístico, pelo menos no importante capítulo retórico das pragas e maldições tão pouco frequentado pela modernidade”.
Exemplos que poderão ferir susceptibilidades não escasseiam, se quem lê está na fila dos que crêem piamente nas palavras bíblicas e na moral imanente. A rematar o “maior prodígio de todos os tempos”, quando Josué conquistava cidades atrás de cidades e se aprestava a desbaratar os cinco reis amorreus, o autor reflecte: “durante quase um dia inteiro, o sol esteve imóvel, ali no meio do céu, sem nenhuma pressa de desaparecer no horizonte, nunca, nem antes nem depois, houve um dia como aquele, em que o senhor, porque combatia por Israel, deu ouvidos à voz de um homem”.
Injustiça divina, conclui Saramago, essa em que o Senhor apoia homens, os seus, contra homens, que a crer nas páginas bíblicas, foram igualmente sua criação, mas que deixaram o seu rebanho. Injustiças várias, que perpassam, como o arraso de sodoma e gomorra, em que os inocentes pagam pela medida dos perversos.
Essa dualidade não podia ser indiferente ao autor. A terra, a realidade, as gentes que ele conheceu, com quem viveu, testemunham que os textos bíblicos justificaram, apoiaram, consolidaram frequentemente a iniquidade social ao longo da História. Bem pode vir alguém lembrar na televisão que esses mesmos textos tantas revoltas e reparação de injustiças justificaram. Certo. Mas os teólogos da libertação, por exemplo, não passaram no buraco da agulha do Vaticano.
E os levantados do chão de Saramago não são gente que tenha levitado por obra e magias e crenças religiosas. Bem pelo contrário, a sua condição de “amorreus” terminou pela mão do homem, ser racional, político. Os “josués” que então não lograram o milagre do sol tinham merecido o geral apoio da Igreja, do clero, ao longo dos séculos.
Saramago lembra isso. E ele é um escritor comprometido, mais não está do que no seu caminho. Este Caim é que resolveu acompanhá-lo na viagem.
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José Saramago
Caim
Editorial Caminho, 16,91€

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