quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O Tubarão na banheira

O Tubarão na Banheira, David Machado (texto), Paulo Galindro (ilustração), Presença

Se David Machado habituou os seus pequenos leitores a um imaginário onírico, em que as personagens falam a língua dos sonhos, espantem-se agora todos com esta nova narrativa. Espantem-se mas não se enfadem.
O Tubarão na Banheira narra uma aventura cómica de um rapaz, auxiliado pelo avô, em busca da felicidade do seu peixinho de aquário.
No início, o protagonista relata o que desencadeou toda a peripécia: «Ao contrário do que poderia pensar-se, a história do tubarão não começou na manhã em que o pescámos.» Não há mistério: esta é mesmo uma história sobre um tubarão que foi pescado e colocado numa banheira. Mas como?
Ora, como todas as boas histórias, esta também aconteceu um pouco por acaso. Um acidente inesperado proporciona uma descoberta que desencadeará uma aventura inverosímil e exagerada, e por isso divertida. O avô é a personagem inusitada que personifica ao extremo o comportamento da maioria dos avós: compreensivos e permissivos, são eles quem muitas vezes acompanha os netos em tropelias, confiando neles e distorcendo as fronteiras entre o que lhes é e não é permitido fazer.
Este avô começa por sentar-se em cima dos seus óculos, partindo-os de imediato. A certeza de ter um par suplementar algures leva-o ao sótão na companhia do neto, que alegremente se disponibiliza para o guiar, na sua quase cegueira temporária. As limitações físicas do mais velho não são um entrave para a criança que pelo contrário assume a sua nova condição como um agradável desafio. No sótão não encontram os óculos mas em contrapartida descobrem um aquário vazio que o rapaz deseja ver cheio de água com um peixinho dentro. Deparam-se então com o primeiro problema: encontrar um peixe para o aquário. O avô sugere que o vão pescar, no dia seguinte. E a partir daqui os momentos sucedem-se numa lógica causal que demonstra ao protagonista que as suas melhores intenções não se concretizarão. Em primeiro lugar a criança assume, pelo semblante do peixe, que este se sente sozinho. Depois convence o avô a pescar um amigo, que lhe faça companhia. É então que pescam o tubarão. A coexistência com o tubarão torna-se cada vez menos pacífica, até ao clímax narrativo: o menino acede ao conselho do avô e decide devolver o tubarão ao mar. Mas a história não acaba aqui. Uma surpresa inviesa definitivamente todos os planos da criança que, no auge da sua determinação, decide, com a cumplicidade do avô, recomeçar tudo de novo. O desenlace acontece quando o avô encontra finalmente o par de óculos. Aqui o leitor confirma que tudo foi possível devido à distorção óptica de que o idoso sofrera, e que não lhe permitira ter noção da realidade: «Bom, resta contar que, alguns dias mais tarde, o meu avô encontrou o par de óculos suplentes dentro de uma lata de bolachas na cozinha. Colocou-os na cara e de repente voltou a ver o mundo como o mundo é.(…)» O avô nunca se apercebera de que tinha ajudado a transportar e a cuidar de um tubarão, que para si se apresentava apenas como um peixe grande.
A narrativa está muito bem tecida, conjugando um discurso essencialmente prático, por parte do protagonista narrador, com uma ideia impraticável, só possível devido a uma particular relação com a realidade, quer por parte do neto, quer por parte do avô. Elogia-se o encontro de gerações, com a restante família a figurar passivamente, não se atrevendo a contrariar tal relação. A criança descreve cada momento com o máximo detalhe, tentando uma objectividade quase científica sustentada no seu caderno de palavras difíceis, que assim o protege da inevitável subjectividade dos juízos afectivos.
O grafismo e as ilustrações de Paulo Galindro captam e transmitem a mesma mensagem do texto com subtileza. O jogo entre a capa e a contracapa deixa antever, mesmo antes da leitura, que a passagem do tubarão pela banheira deixará marcas, que não serão sérias, a atentar na grande mancha branca onde se distingue a banheira azul clara e o cortinado semi-transparente com corações vermelhos, ou a resistência sem mácula do pato de borracha amarelo, de cuja função essencial nos apercebemos através das ilustrações. Também as guardas, com o padrão da toalha de piquenique e o caderno das palavras difíceis, inicialmente fechado e depois aberto, encaminham-nos para um universo familiar, doméstico, e confortável.
No interior do livro, as ilustrações são comedidas, destacando episódios ou apontamentos significativos. A cara do avô nunca aparece, apenas os óculos partidos ou as suas pernas, na praia, enquanto dorme. Esta presença ausente reforça a relação de confiança entre ambos.
As expressões dos peixes acentuam o sentido cómico, expondo o quão desconfortável estava a ser, para ambos tal experiência de amizade forçada. Já o menino, descontraído com os seus phones e os seus ténis, nem sempre percebe as reacções de quem o rodeia, seja o peixe Osvaldo, o tubarão ou mesmo os amigos da escola.
Nada asfixia a leitura, ao longo das páginas, nem a mancha de texto, nem a ilustração, mesmo quando ocupa uma parte mais significativa do corpo da folha. Não há sobrecarga de informação. Por isso não constam as escadas na página dupla em que os corpos dos vizinhos fogem do tubarão, já que tal efeito é-nos dado com a mancha do texto. Por isso também apenas aparecem os corpos dos amigos do menino no ar, entre algumas folhas, quando caem da árvore por causa da força do embate da cauda do tubarão. Linhas e tracejados acompanham o texto, e desse minimalismo nascem padrões que conferem densidade às figuras e as aproximam de um contexto real (como no caso das roupas ou do táxi). A última página dupla que corresponde ao final da história surpreende pela volumetria da imagem, enfatizando assim o desenlace.
Uma última nota para a referência ao homem verde e ao homem vermelho: «(…) O semáforo tombou no alcatrão e o homem vermelho e o homem verde caíram das suas casas às cambalhotas.(…)» que são personagens do livro anterior de David Machado, Um homem verde num buraco muito fundo (com ilustrações de Carla Pott, Presença). Os imaginários podem sempre cruzar-se e este pequeno apontamento traz consigo, para quem lê, uma questão, uma descoberta, uma recordação. O imaginário, como a memória, vão-se tecendo e enriquecendo juntos.

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