quarta-feira, 2 de julho de 2008

Livros do Plano - Queres ouvir? Eu conto

Queres ouvir? Eu conto, Irene Lisboa, Editorial Presença, livro recomendado para o 4º ano do 1º ciclo, leitura autónoma

Os contos reunidos neste volume afastam-se dos limites geracionais que normalmente acabam por condenar uma obra ao esquecimento. A estrutura literária a que obedecem as narrativas deriva directamente dos contos tradicionais (e não apenas dos clássicos de Perrault ou dos irmãos Grimm). A sua escrita procura revelar a essência humana, recorrendo a ambientes campestres e bucólicos, em que os comportamentos não sofrem nenhum condicionamento conjuntural. Há um idealismo que a autora não faz por esconder em cada conto, há uma moral que preza o direito ao respeito, independentemente da diferença, o direito à atenção, à consideração, à estima. Enquanto direitos universais, tais temáticas não dependem de contextos concretos, e por isso o espaço e o tempo são sempre indeterminados na macro-estrutura textual. Não estamos perante os quadros sociais transmontanos de Miguel Torga, não se escalpelizam misérias individuais, causas sem razão, infelicidades congénitas e destinos inevitavelmente trágicos. À imagem dos contos tradicionais, a economia narrativa respeita a unidade de acção, tempo e espaço, sem derivações (não esqueçamos que também outros autores, como Eça de Queirós, seguiram a mesma estrutura de género). A linearidade centra o leitor no protagonista, que é na maioria dos casos uma pessoa, mas ocasionalmente pode ser um animal, uma entidade ou um objecto animizado de modo a que se produzam os mesmos efeitos morais. O tempo resulta de uma sucessão de acontecimentos, sem intercalamento de acções, sem desvios, servindo os nós narrativos através da ideia de duração. Acontece, por exemplo, algumas acções, tidas como desafios que geralmente implicam o sacrifício e o sofrimento da personagem, serem muito demoradas no tempo: anos que se passam, horas e horas de caminhadas… Em contraponto, o tempo que passa muito depressa, através de uma breve referência, pauta o ritmo narrativo, e dá conta do que é e não é relevante ser dito. Também os símbolos estão presentes, sendo o mais comum o valor do número três, que muitas vezes enuncia o número de vezes que se repete um desafio, uma instrução, um acidente. O três, enquanto número perfeito, presta-se a inúmeras leituras, desde a santíssima trindade à dialéctica hegeliana. Por isso, a sua recuperação dos contos tradicionais (Os três porquinhos, as três adivinhas do Rei, entre tantos outros…), não é de espantar. Mas a simbologia destes contos não se esgotam aqui, recuperando outros elementos do património etnográfico, como a espiga, por exemplo.
O estilo evidencia um grande domínio da palavra, consubstanciado numa leitura escorreita. As marcas oralizantes verificam-se quer pelo discurso directo, o uso de interjeições, exclamações ou hesitações, quer pelo uso de expressões mais populares como “toma o rumo”, “papéis em fanicos”, “poiso”, “vamos em cata dele”. O uso de um tom coloquial integra o insólito dos acontecimentos, muito típico do conto maravilhoso, conferindo-lhes uma certa legitimidade. No entanto, a disposição sintáctica e a integração lexical são cuidadosamente pensadas, integrando assim, sem provocar estranheza, vocábulos próprios de um discurso cuidado. Este equilíbrio permite que o escrito possa ser lido em voz alta, sem nunca se tornar simplista.
Irene Lisboa, na sua condição de pedagoga, foi bastante perspicaz ao não catalogar esta colectânea: «Histórias para maiores e mais pequenos se entreterem» lê-se no subtítulo. Foge à ideia de público-alvo e reforça a origem tradicional desta escrita, já que os contos tradicionais nunca se destinaram a crianças, embora tivessem sido por elas apropriados. Mas a apropriação derivou sobretudo da transmissão oral deste património pelos adultos, o único que conheciam, bem como da partilha social do acto de contar e ouvir histórias. Nesta comunicação imbricada e interdependente, a autora assenta o principal pressuposto do volume: o desejo de ouvir e de contar. É a única condição necessária para a leitura/ recepção da obra, e muito mais exigente do que um critério etário. A ideia de entretenimento é, neste caso, quase irónica, pois acalenta uma ideia de simplicidade do texto associada ao prazer da comunicação e da imaginação. A ironia, mais uma vez, reflecte a agudeza do pensamento da autora, ao recuperar, contra práticas e teses pedagógicas, a simplicidade da origem tradicional como fundadora e fonte de alimentação permanente da imaginação e da ética. Não se podem isolar estes dois aspectos nos contos apresentados porque nenhum se sobrepõe ao outro, nenhum desequilibra a ordem retórica, nenhum denuncia uma intenção exterior ao texto. Todas as narrativas têm uma moral, mas esta nem sempre é óbvia, porque os finais são por vezes inesperados e não seguem a regra do desenlace feliz.
A presente edição conta com um prefácio acurado de Violante Florêncio, que para além da análise que faz do volume, o relaciona com a obra da autora, contextualizando-a no panorama da literatura infantil dos anos cinquenta do século XX.

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