quarta-feira, 29 de agosto de 2007

O despertar dos mágicos, de Louis Pawels e Jacques Bergier

Prefácio
Tenho uma grande falta de habilidade manual e lamento-o.
Seria mais perfeito se as minhas mãos soubessem trabalhar. Mãos
que fazem qualquer coisa de útil mergulham nas profundidades
do ser e dali extraem uma fonte de bondade e de paz. O meu
padrasto (a quem chamarei aqui pai, pois foi ele que me educou)
era alfaiate. Tinha uma alma profunda, um espírito verdadeiramente
mensageiro. Por vezes dizia, sorrindo, que a traição dos
clérigos, principiara no dia em que um deles representou um
anjo com asas: é com as mãos que se sobe ao céu.
A despeito desta falta de habilidade, consegui no entanto
encadernar um livro. Tinha dezasseis anos. Era aluno do curso
complementar de Juvisy, nuns arrabaldes pobres. Ao sábado à
tarde podíamos escolher entre o trabalhar a madeira, o ferro,
a modelagem ou a encadernação. Nessa época eu lia os poetas,
principalmente Rimbaud. No entanto, impus a mim próprio não
' A palavra "clerc" significa simultaneamente clérigo e letrado, erudito,
sábio. Aliás, há aqui, proventura, alusão ao célebre livro de Julien
Benda, La Trahison des Clercs, que tanta celeuma levantou há cerca de
quarenta anos. (N. da T.)
encadernar Une Saison en Enfer. Meu pai possuía cerca de trinta
livros dispostos no estreito armário da sua oficina, juntamente
com os carros de linhas, o giz, os chumaços e os moldes. Havia
também, nesse armário, milhares de notas tomadas numa caligrafia
miúda e aplicada, a um canto da banca de alfaiate durante
as inumeráveis noites de labor. Entre esses livros eu lera Le
Monde avant la Création de lHomme, de Flammarion, e entregava-me
à descoberta, nessa altura, de Para Onde Vaz o Mundo?
de Walter Rathenau. Foi o livro de Rathenau que resolvi encadernar,
não sem custo. Rathenau fora a primeira vítima dos
nazis, e nós estávamos em 1936. Na pequena oficina do curso
complementar, aos sábados, eu fazia trabalhos manuais por
amor ao meu pai e ao mundo operário. No dia 1 de Maio
ofereci-lhe, juntamente com um ramo de junquilho, o Rathenau
encadernado.
Nesse livro, meu pai sublinhara a lápis vermelho uma longa
frase que nunca mais esqueci:
"Mesmo as épocas de opressão são dignas de respeito, pois
são a obra, não dos homens, mas da humanidade, e portanto da
natureza criadora, que pode ser dura, mas nunca é absurda.
Se a época que vivemos é dura, temos o dever de a amar ainda
mais, de a penetrar com o nosso amor, até que tenhamos afastado
as enormes montanhas que dissimulam a luz que há para
além delas."
*
"Mesmo as épocas de opressão..." Meu pai morreu em 1948
sem jamais deixar de crer na natureza criadora, sem jamais
deixar de amar e de penetrar com o seu amor o mundo sofredor
em que vivia, sem jamais perder a esperança de ver brilhar a
luz para além das enormes montanhas. Ele pertencia à geração
dos socialistas românticos, que tinham como ídolos Vítor Hugo,
Romain Rolland, Jean Jaurès, usavam grandes chapéus e conservavam
a pequena flor azul da sentimentalidade entre as pregas
da bandeira vermelha. Na fronteira da mística pura e da acção
social, o meu pai, preso à sua banca de alfaiate mais de catorze
horas por dia - e nós vivíamos à beira da miséria - conciliava
um ardente sindicalismo e uma busca de libertação interior. Nos
gestos muito limitados e humildes do seu ofício introduzira
um método de concentração e de purificação do espírito a respeito
do qual deixou centenas de páginas. Enquanto fazia casas,
ou passava a ferro as fazendas, tinha uma presença resplandecente.
À quinta-feira e ao domingo, os meus camaradas reuniam-se
à volta da sua banca, para o escutar e sentir aquela presença
vigorosa, e a maior parte deles alteraram as suas vidas devido
à sua influência.
Cheio de confiança no progresso e na ciência, acreditando
na ascensão do proletariado, elaborara uma sólida filosofia. Sentira
uma espécie de inspiração ao ler a obra de Flammarion
sobre a pré-história. Depois, guiado pela paixão, lera livros de
paleontologia, de astronomia, de física. Embora sem preparação,
penetrara no âmago dos assuntos. Falava pouco mais ou menos
como "Teilhard de Chardin, que então desconhecíamos: "O que
o nosso século vai viver é mais importante do que a aparição
do budismo! De futuro já não se trata de dedicar a tal ou tal
divindade as faculdades humanas. É o poder religioso da terra
que sofre em nós uma crise definitiva: a da sua própria descoberta.
Começamos a perceber, e para sempre, que para o
homem a única religião aceitável é a que antes de mais o ensinará
a reconhecer, amar e servir apaixonadamente o Universo
de que ele é o elemento mais importante" ". Ele achava que a
evolução não se confunde com o transformismo, mas que ela
é integral e ascendente, aumentando a densidade psíquica do
nosso planeta, preparando-o para tomar contacto com as inteligências
dos outros mundos, para se aproximar da própria alma
do cosmos. Para ele, a espécie humana não estava concluída.
Ela progredia em direcção a um estado de superconsciência,
através da ascensão da vida colectiva e da lenta criação de um
psiquismo unânime. Dizia que o homem ainda não estava perfeito
e salvo, mas que as leis de condensação da energia
criadora permitem-nos alimentar, à escala do cosmos, uma formidável
esperança. E não perdia de vista essa esperança. Era por
isso que julgava com uma serenidade e um dinamismo religiosos
os problemas deste mundo, indo procurar muito longe, muito
alto, um optimismo e uma coragem imediatamente e realmente
utilizáveis. Em 1948 a guerra terminara, e ressurgiam ameaças
de batalhas, desta vez atómicas. No entanto ele considerava as
inquietações e os sofrimentos actuais como negativos de uma
imagem magnífica. Havia nisso um fio que o unia ao destino
espiritual da Terra e espalhava sobre a época de opressão em
que terminava a sua vida de trabalhador, apesar de imensos desgostos
íntimos, muita confiança e muito amor.
Morreu nos meus braços, na noite de 31 de Dezembro
e disse-me, antes de fechar os olhos:
"É preciso não contar demasiadamente com Deus, mas tal
vez Deus conte connosco..."
*
Em que ponto da minha evolução estava eu nesse momento?
Tinha vinte e oito anos. Fizera vinte anos em 1940, em plena
derrocada. Pertencia a uma geração de transição que assistira
ao desmoronar de um mundo, estava separada do passado e
desconfiava do futuro. Eu estava longe de acreditar que a época
de opressão fosse digna de respeito e que era necessário penetrá-la
com o nosso amor. Antes me parecia que a lucidez nos
levava a recusar um jogo em que todos fazem batota.
Durante a guerra refugiara-me no induísmo. Era o meu
"m"uis". Nele vivia em resistência absoluta. Não procuremos o
ponto de apoio na história e entre os homens: escapa-se-nos sem
cessar. Procuremo-lo em nós próprios. Sejamos deste mundo
como se o não fôssemos. Coisa alguma me parecia tão bela como
o pássaro mergulhador da Bhagavad Gita, "que mergulha e volta
à superfície sem ter molhado as penas". Perante os acontecimentos
contra os quais nada podemos, pensava eu, procedamos de
forma que eles nada possam contra nós. Permanecia nas alturas,
sentado em lódão sobre uma nuvem vinda do Oriente. À noite,
meu pai lia às escondidas os meus livros de cabeceira tentando
compreender a estranha doença que tanto me afastava dele.
Mais tarde, após a Libertação, ofereci a mim próprio um
mestre para viver e pensar. Tornei-me discípulo de Gurdjieff.
Esforçava-me por me separar das minhas emoções, dos meus
sentimentos, dos meus impulsos, a fim de encontrar, para além,
qualquer coisa de imóvel e permanente, uma presença muda,
anónima, transcendente, que me consolaria da minha pequena
realidade e da incongruência do mundo. Julgava meu pai com
certa comiseração. Supunha possuir os segredos do governo do
espírito e de todo o conhecimento. Na verdade, eu não possuía
mais que a ilusão de possuir um enorme desprezo por aqueles
que não partilhavam essa ilusão.
Meu pai desesperava-se por minha causa. Eu próprio me desesperava.
Mantinha-me obstinadamente numa posição de recusa.
Lia René Guénon. Pensava que tínhamos a pouca sorte de viver
num mundo radicalmente pervertido e justamente votado ao apocalipse.
Fazia meu o discurso de Cortes à Câmara dos Deputados de
Madrid em 1849: "Meus senhores, a causa de todos os vossos erros
é ignorardes o caminho da civilização e do mundo. Julgais que a
civilização e o mundo progridem, e eles retrocedem!" Para mim,
a idade actual era a idade negra. Entretinha-me a enumerar os crimes
do espírito moderno contra o espírito. Desde o século &I que o
Ocidente, separado dos Princípios, corria para a própria destruição.
Alimentar qualquer esperança era aliar-se ao mal. Denunciava a
mais pequena confiança como uma cumplicidade. Só me restava
entusiasmo para a recusa, para a ruptura. Neste mundo cujas três
quartas partes já se perdiam no abismo, onde os padres, os sábios,
os políticos, os sociólogos e os organizadores de toda a espécie
me apareciam como coprófagos, apenas os estudos tradicionais
e uma resistência incondicional ao século eram dignos de respeito.
Neste estado de espírito chegava a considerar meu pai um
ingénuo primário. O seu poder de adesão, de amor, de visão
remota irritava-me como coisa ridícula. Acusava-o de ter permanecido
nos entusiasmos da Exposição de 1900. A esperança que
ele punha numa colectivização crescente (e colocava-a infinitamente
mais acima que o plano político) provocava-me desprezo.
Eu só acreditava nas antigas teocracias.
Einstein fundava um núcleo desesperado dos sábios do
átomo, a ameaça de uma guerra total pairava sobre a humanidade
dividida em dois blocos. Meu pai morria sem nada ter perdido
da sua fé no futuro, e eu já não o compreendia. Não evocarei,
nesta obra, os problemas de classe. Não é o lugar adequado.
Mas sei muito bem que esses problemas existem, pois crucificaram
o homem que me amava. Não conheci o meu verdadeiro
pai. Ele pertencia à velha burguesia de Gante. Tanto minha mãe
como o meu segundo pai eram operários, descendiam de operários.
Foram os meus antepassados flamengos, folgazões, artistas,
ociosos e orgulhosos, que me afastaram do pensamento generoso,
dinâmico, que me fizeram desprezar e ignorar a virtude da participação.
Há muito tempo já que existia uma barreira entre meu
pai e eu. Ele que não quisera outro filho além deste que não
era do seu sangue, com receio de me prejudicar, sacrificara-se
para que eu me tornasse um intelectual. Tendo-me dado
tudo, idealizara a minha alma semelhante à dele. A seus olhos
eu devia tornar-me um farol, um homem capaz de esclarecer os
outros homens, de lhes dar coragem e esperança, de lhes mostrar,
como ele dizia, a luz que brilha no fundo de nós. Mas eu
não via qualquer espécie de luz, senão a luz negra, em mim
e no fundo da humanidade. Não passava de um letrado semelhante
a tantos outros. Levava até às suas consequências extremas
esse sentimento de exílio, essa necessidade de revolta radical
que se exprimia nas revistas literárias por volta de 1947, ao falar
de "inquietação metafísica", e que constituíram a complicada
herança da minha geração. Nestas condições, de que maneira
ser um farol? Esta ideia, expressão à Vítor Hugo faziam-me sorrir
maldosamente. Meu pai censurava-me por me deixar corromper,
por ter passado, como ele dizia, para o lado dos privilegiados
da cultura, dos mandarins dos orgulhosos da sua impotência.
A bomba atómica, ao passo que para mim marcava o princípio
do fim dos tempos, era para ele o sinal de um novo despertar.
A matéria ia-se espiritualizando e o homem descobriria
à sua volta e em si próprio forças até ali insuspeitadas. O espírito
burguês, para o qual a Terra é um local de descanso confortável
de que é necessário extrair o máximo, ia ser sacudido pelo
espírito novo, o espírito dos obreiros da Terra, para quem o
mundo é uma máquina em marcha, um organismo em evolução,
uma unidade a construir, uma Verdade a fazer desabrochar.
A humanidade estava apenas no início da sua evolução. Ela recebia
as primeiras informações a respeito da missão que lhe era
destinada pela Inteligência do Universo. Mal começávamos a
perceber o que é o amor do mundo.
Para meu pai, a aventura humana tinha uma direcção. Ele
julgava os acontecimentos conforme se situavam ou não nessa
direcção. A história tinha um sentido: ela evoluía para qualquer
forma de ultra-humano, trazia em si a promessa de uma superconsciência.
A sua filosofia cósmica não o separava do século.
No presente, as suas adesões eram "progressistas". Eu irritava-me,
sem perceber que ele punha uma espiritualidade infinitamente
maior no seu progressismo do que os progressos que
eu fazia na minha espiritualidade.
No entanto, eu sufocava no meu pensamento limitado. Diante
daquele homem sentia-me por vezes um pequeno intelectual árido
e transido, e acontecia-me desejar pensar como ele, respirar tão
amplamente como ele. Ao canto da sua banca de alfaiate, à noite,
eu levava a contradição ao extremo, provocava-o, desejando secretamente
sentir-me perturbado e modificado. Mas, com a ajuda do
cansaço, ele exaltava-se contra mim, contra o destino que lhe dera
um grande pensamento sem lhe conceder os meios de o transferir
para esse filho de sangue rebelde, e separávamo-nos encolerizados
e indispostos. Eu buscava de novo as minhas meditações
e os meus livros desesperados. Ele inclinava-se sobre os tecidos e
pegava novamente na agulha, sob a luz forte que lhe amarelecia
os cabelos. Da minha cama ouvia-o durante muito tempo resfolgar,
resmungar. Depois, de súbito, começava a assobiar entre
dentes, suavemente os primeiros compassos do "Hino à Alegria"
de Beethoven, para me dizer de longe que o amor encontra sempre
os seus. Penso nele quase todas as noites, à hora das nossas
antigas discussões. Oiço essa respiração, esse resmungar que terminava
em canto, esse sublime vento desaparecido.
*
Há doze anos que morreu! E eu vou fazer quarenta. Se o
tivesse compreendido em vida teria encaminhado mais habilmente
a minha inteligência e o meu coração. Não parei de procurar.
Agora, alio-me de novo a ele, mas após quantas pesquisas, muitas
vezes inúteis, e perigosas divagações! Podia ter conciliado, muito
mais cedo, o gosto pela vida interior e o amor pelo mundo em
movimento. Podia ter construído mais cedo, e talvez com maior
eficácia, quando as minhas forças estavam intactas, uma ponte
entre a mística e o espírito moderno. Ter-me-ia sentido simultaneamente
religioso e solidário com o grande impulso da história.
Podia ter sentido mais cedo a fé, a caridade e a esperança.
Este livro resume cinco anos de pesquisas, em todos os sectores
do conhecimento, nas fronteiras da ciência e da tradição
Lancei-me nesta empresa nitidamente superior às minhas possibilidades,
porque já não podia recusar por mais tempo este mundo
presente e futuro que, no entanto, é o meu. Mas todo o excesso
é esclarecedor. Podia ter descoberto mais cedo um meio de
comunicação com a minha época. Pode ser que não tenha perdido
totalmente o tempo ao ir até ao extremo da minha procura. Não
acontece aos homens aquilo que eles merecem, mas sim o que
se lhes assemelha. Procurei durante muito tempo, como o desejava
o Rimbaud da minha adolescência, "a Verdade numa alma e num
corpo". Não o consegui. Na perseguição dessa Verdade perdi o
contacto com as pequenas verdades que teriam feito de mim, não
decerto o super-homem por que ansiava, mas um homem melhor
e mais unificado do que sou. No entanto, aprendi, a respeito do
comportamento profundo do espírito, dos diversos estados possíveis
da consciência, da memória e da intuição, coisas preciosas
que não teria aprendido de outra forma e que me permitiriam,
mais tarde, compreender o que há de grandioso, de essencialmente
revolucionário na base do espírito moderno: a interrogação sobre
a natureza do acontecimento e a necessidade imperiosa de uma
espécie de transmutação da inteligência.
Quando saí do meu nicho de Yogi para lançar um golpe de
vista sobre este mundo moderno que eu condenava sem o
conhecer, aprendi repentinamente o maravilhoso. O meu estudo
reaccionário, tão cheio de orgulho e de ódio, fora útil na medida
em que me impedira de aderir a este mundo pelo lado mau:
o velho racionalismo do século xIx, o progressismo demagógico.
Impedira-me igualmente de aceitar este mundo como uma coisa
natural e simplesmente porque era o meu, de o aceitar num
estado de consciência sonolenta, como acontece à maior parte
das pessoas. Com os olhos remoçados por essa longa permanência
fora do meu tempo, vi este mundo tão rico em fantástico real
como o mundo da tradição era para mim em fantástico suposto.
Melhor ainda: aquilo que aprendia sobre a época modificava,
aprofundando-o, o meu conhecimento do espírito antigo. Vi as
coisas antigas com um olhar novo, e os meus olhos estavam
igualmente novos para ver as coisas novas.
*
Encontrei Jacques Bergier (mais adiante direi em que circunstâncias)
na altura em que acabava de escrever uma obra a respeito
do grupo de espíritos reunido à volta de Gurdjieff. Esse encontro,
que não atribuo ao acaso, foi determinante. Acabava de consagrar
dois anos a descrever uma escola esotérica e a minha própria
aventura. Mas nesse momento principiava para mim outra aventura.
Foi o que me pareceu necessário dizer ao despedir-me dos meus
leitores. Terão de desculpar-me o facto de me citar a mim próprio,
dado que não tenho a menor preocupação em chamar as atenções
para a minha obra: são outros os meus objectivos. Inventei a
fábula do macaco e da cabaça. Os indígenas, a fim de capturarem
o animal com vida, amarram a um coqueiro uma cabaça contendo
pistaches. O macaco precipita-se, estende a pata, pega nas pistaches,
fecha a mão. E eis que não a pode retirar novamente.
Aquilo que conquistou retém-no prisioneiro. Ao sair da escola
Gurdjieff escrevi:
"É necessário apalpar, examinar os frutos-armadilhas, depois
afastarmo-nos com rapidez. Satisfeita uma certa curiosidade, convém
dirigir imediatamente a nossa atenção para o mundo em que
estamos, recuperar a nossa liberdade e a nossa lucidez, retomar
o caminho sobre a terra dos homens da qual fazemos parte.
O que importa é ver em que medida o movimento essencial do
pensamento dito tradicional encontra o movimento do pensamento
contemporâneo. A física, a biologia, as matemáticas, nos seus
aspectos terminais, contém actualmente certos dados do esoterismo,
reúnem certas visões do cosmos, relações da energia e da matéria
que são visões ancestrais. As ciências de hoje, se as abordamos
sem conformismo científico, mantêm um diálogo com os antigos
mágicos, alquimistas, taumaturgos. Opera-se, sob o nosso olhar
uma revolução, e há de novo um casamento inesperado da
razão, no auge das suas conquistas, com a intuição espiritual.
Para os observadores verdadeiramente atentos, os problemas que
se põem à inteligência contemporânea já não são problemas de
progresso. Há alguns anos que a noção de progresso deixou
de existir. São problemas de mudança de estado, problemas de
transmutação. Neste sentido, os homens atentos às realidades da
experiência interior vão na direcção do futuro e dão solidamente
a mão aos sábios de vanguarda que preparam o surgimento de
um mundo sem nada de comum com o mundo de pesada transição
no qual vivemos ainda por algumas horas."
É exactamente o assunto que será desenvolvido neste
grande volume. É portanto necessário, pensava eu antes de o
iniciar, projectar a inteligência muito longe em direcção ao passado
e muito longe em direcção ao futuro para compreender
o presente. Apercebi-me de que tinha razão para não amar,
outrora, as pessoas que são simplesmente "modernas". Somente
eu condenava-as sem saber porquê. Na verdade, são condenáveis
porque o seu espírito apenas ocupa uma fracção demasiado
pequena do tempo. Mal surgem, tornam-se anacrónicas. O que
é preciso ser, para estar presente, é contemporâneo do futuro.
E o próprio passado remoto pode ser interpretado como uma
ressaca do futuro. Desde então, quando interrogo o presente,
obtenho respostas cheias de estranhezas e de promessas.
*
James Blish, escritor americano, diz em homenagem a Einstein
que este último "engoliu Newton vivo". Admirável fórmula!
Se o nosso pensamento se eleva para uma visão mais alta da
vida, é vivas que ele deve ter absorvido as verdades do plano
inferior. Tal é a certeza que adquiri no decorrer das minhas
pesquisas. Isto pode parecer banal, mas quando se viveu no
meio de ideias que pretendiam estar acima de tudo, como seja
a sabedoria de Guénon e o sistema Gurdjieff, e que ignoravam
ou desprezavam a maior parte das realidades sociais e científicas,
esta nova forma de julgar modifica a direcção e os anseios
do espírito. "As coisas inferiores, já Platão dizia, devem encontrar-se
entre as coisas superiores, embora num estado diferente."
Agora tenho a convicção de que qualquer filosofia superior,
na qual não continuem a existir as realidades do plano que ela
pretende ultrapassar, é uma impostura.
Eis a razão que me levou a fazer uma longa digressão pelos
domínios da física, da antropologia, das matemáticas, da biologia,
antes de tentar novamente fazer uma ideia do homem, da sua
natureza, dos seus poderes, do seu destino. Outrora, eu procurava
conhecer e compreender o todo do homem, e desprezava a ciência.
Julgava o espírito capaz de atingir altitudes sublimes. Mas que
sabia eu das suas diligências no domínio científico? Não revelara
ele alguns desses poderes nos quais eu me sentia inclinado
a acreditar? Dizia para mim próprio: é necessário ultrapassar a
contradição aparente entre materialismo e espiritualismo. Mas
o progresso científico não nos conduziria a isso? E, nesse caso,
não seria meu dever informar-me? Não seria, no fim de contas,
uma atitude mais racional, para um ocidental do século xx,
do que agarrar num bordão de peregrino e dirigir-se descalço
para a Índia? Não haveria à minha volta número suficiente de
homens e de livros onde colher informações? Não deveria eu,
antes de mais nada, perscrutar a fundo o meu próprio terreno?
Se a reflexão científica, nos seus aspectos extremos, tendia
para uma revisão das ideias admitidas a respeito do homem
então era necessário que eu o soubesse. E havia ainda outra
necessidade. Depois disso, qualquer ideia que eu fizesse sobre
o destino da inteligência, sobre o sentido da aventura humana,
não poderia ser dada como válida senão na medida em que não
fosse contra o movimento do conhecimento moderno.
Descobri o eco desta meditação nas seguintes palavras de
Oppenheimer:
"Actualmente vivemos num mundo em que poetas, historiadores,
filósofos sentem orgulho em dizer que não quereriam sequer
prever a hipótese de aprender fosse o que fosse relativo as ciências:
vêem a ciência ao fundo de um longo túnel, longo demais
para que um homem precavido lá meta a cabeça. A nossa filosofia
- se é que temos uma - é portanto francamente anacrónica,
e, estou convencido, perfeitamente inadaptada à nossa época."
Ora, para um intelectual bem preparado, não é mais difícil,
se realmente o deseja, compreender o sistema de pensamento
que rege a física nuclear do que penetrar na economia marxista
ou no tomismo. Não é mais difícil aprender a teoria da cibernética
do que analisar as causas da revolução chinesa ou a experiência
poética de Mallarmé. Na verdade, recusamo-nos a esse
esforço, não por recearmos o esforço, mas porque pressentimos
que ele provocaria uma mudança na forma de pensar e de exprimir,
uma revisão dos valores até aqui admitidos.
"E no entanto, prossegue Oppenheimer, há muito tempo já
que uma compreensão mais subtil a respeito da natureza do
conhecimento humano e das relações do homem com o Universo
deveria ter sido prescrita."
Resolvi-me portanto a pesquisar o tesouro das ciências e das
técnicas actuais, seguramente de forma inexperiente, com uma
ingenuidade e uma admiração talvez perigosas, mas propícias ao
desabrochar de comparações, de correspondências, de aproximações
esclarecedoras. Foi então que recuperei um certo número
de convicções que tivera, outrora, em relação ao esoterismo,
à mística, à grandeza infinita do homem. Mas recuperei-as num
estado diferente. Actualmente eram convicções que tinham absorvido
com vida as formas e as obras da inteligência humana
do meu tempo, aplicada ao estudo das realidades. Já não eram
"reaccionárias", reduziam os antagonismos em vez de os excitar.
Conflitos muito pesados, como sejam entre materialismo e espiritualismo,
vida individual e vida colectiva, fundiam-se sob o
efeito de uma alta temperatura. Neste caso, elas já não eram
o resultado de uma opção, e portanto de uma ruptura, mas de
um devir, de uma ultrapassagem, de uma renovação, por assim
dizer, da Existência.
*
As reviravoltas das abelhas, tão rápidas e incoerentes, parecem
desenhar no espaço figuras matemáticas precisas e constituem
uma linguagem. Idealizo escrever um romance no qual
todos os encontros que um homem tem durante a sua existência,
fugazes ou importantes, conduzidos por aquilo a que chamamos
o acaso, ou pela necessidade, desenhassem igualmente figuras,
exprimissem ritmos e fossem o que talvez sejam: um discurso
sabiamente planeado, dedicado a uma alma para que se realize
totalmente, e de que esta não apreende, ao longo da vida, mais
do que algumas palavras sem continuidade.
Por vezes julgo abranger o sentido deste bailado humano
à minha volta, adivinhar que alguém me fala através do movimento
dos seres que se aproximam, se detêm ou se afastam.
Depois perco o fio à meada, como toda a gente, até à próxima
grande e no entanto fragmentária evidência.
Acabava de abandonar Gurdjieff. Liguei-me a André Breton
por uma intensa amizade. Foi por seu intermédio que conheci
René Alleau, historiador de Alquimia. Um dia em que procurava
um vulgarizador científico para uma colecção de obras da actualidade,
Alleau apresentou-me Bergier. Tratava-se de questões
alimentares, e eu fazia pouco caso da ciência, vulgarizada ou
não. Ora esse encontro absolutamente fortuito viria a influenciar
durante muito tempo a minha vida, a reunir e orientar todas as
grandes influências intelectuais ou espirituais que se tinham exercido
em mim, de Vivekananda a Guénon, de Guénon a Gurdjieff,
de Gurdjieff a Breton, e conduzir-me-ia na idade madura ao
ponto de partida: meu pai.
Em cinco anos de estudos e reflexões, no decorrer dos quais
os nossos dois espíritos, bastante dissemelhantes, se sentiram sempre
felizes em conjunto, parece-me que descobrimos um novo
ponto de vista e rico em possibilidades. Era o que faziam, à sua
maneira, os surrealistas há trinta anos atrás. Mas, ao contrário
deles, não foi no sono e na infraconsciência que procurámos. Foi
na outra extremidade: do lado da ultraconsciência e da vigília
superior. Resolvemos chamar à escola que iniciávamos a escola do
realismo fantástico. Ela não manifesta em coisa alguma preferência
pelo insólito, o exotismo intelectual, o barroco, o pitoresco.
"O viajante caiu morto, ferido pelo pitoresco", disse Max Jacob.
Nós não procuramos a fuga a este mundo. Não exploramos os
arrabaldes longínquos da realidade, tentamos pelo contrário, instalar-nos
no centro. Cremos que é no próprio centro da realidade
que a inteligência, por muito pouco excitada que seja, descobre
o fantástico. Um fantástico que não convida a evasão, mas antes
a uma mais profunda adesão.
É por falta de imaginação que os letrados, os artistas vão
procurar o fantástico fora da realidade, entre as nuvens. Trazem
apenas um subproduto. O fantástico, à semelhança das outras
matérias preciosas, deve ser arrancado às entranhas da terra,
do real. E a verdadeira imaginação é coisa muito diferente de
uma fuga para o irreal. "Nenhuma faculdade do espírito se
afunda e penetra mais que a imaginação: é ela a grande mergulhadora.
"
Geralmente o fantástico é definido como uma violação das
leis naturais, como a aparição do impossível. Para nós não é
nada disso. O fantástico é uma manifestação das leis naturais,
um resultado do contacto com a realidade quando esta nos
chega directamente, e não filtrada pelo véu do sono intelectual,
pelos hábitos, os preconceitos, os conformismos.
A ciência moderna ensina-nos que para além do visível simples
está o invisível complicado. Uma mesa, uma cadeira, o céu
estrelado são na verdade radicalmente diferentes da ideia que
deles fazemos: sistemas em rotação, energias em suspenso, etc.
Era neste sentido que Valéry dizia que, no conhecimento moderno,
"o maravilhoso e o positivo contraíram uma espantosa aliança".
O que sobressai claramente, como se verá, segundo espero, neste
livro, é que esse contrato entre o maravilhoso e o positivo não
é apenas válido no domínio das ciências físicas e matemáticas.
O que é verdadeiro para essas ciências é sem dúvida igualmente
verdadeiro para os outros aspectos da existência: a antropologia,
por exemplo, ou a história contemporânea, ou a psicologia individual,
ou a sociologia. O que tem valor nas ciências físicas, é provável
que também tem valor nas ciências humanas. Mas existem
grandes dificuldades para que disso nos apercebamos. É que, nas
ciências humanas, todos os preconceitos se refugiaram, incluindo
aqueles que as ciências exactas actualmente desprezaram. E que,
num domínio tão perto deles, e tão instável, os investigadores,
para verem enfim claro, constantemente tentaram reduzir tudo
a um sistema: Freud explica tudo, O Capztal explica tudo, etc.
Quando dizemos preconceitos, deveriamos dizer: superstições.
Há as antigas e há as modernas. Para certas pessoas, nenhum
fenómeno de civilização é compreensível se não admitimos, nas
origens, a existência da Atlântida. Para outros, o marxismo chega
para explicar Hitler. Alguns vêem Deus em todo e qualquer
génio, outros vêem apenas o sexo. Toda a história humana é templária,
a menos que seja hegeliana. O nosso problema é portanto
tornar sensível, no estado bruto, a aliança entre o maravilhoso e
o positivo no homem isolado ou no homem em sociedade,
da mesma forma que o é em biologia, em física ou em matemática
modernas, onde se fala muito abertamente e, no fim de contas,
muito simplesmente, de "Algures Absoluto" de "Luz Interdita"
e de "Número Quântico de Estranheza".
"À escala do cósmico (toda a física moderna no-lo ensina), só
o fantástico tem probabilidades de ser verdadeiro", diz Teilhard de
Chardin. Mas, para nós, o fenómeno humano deve igualmente
medir-se pela escala do cósmico. É o que dizem os mais antigos
textos da sabedoria. É igualmente o que diz a nossa civilização,
que principia a lançar foguetões em direcção aos planetas
e procura o contacto com outras inteligências. A nossa posição é
portanto a de homens testemunhas das realidades do seu tempo.
Vista de perto, a nossa atitude, que introduz o realismo fantástico
das ciências superiores nas ciências humanas, nada tem
de original. Aliás, nós não pretendemos ser espíritos originais.
A ideia de aplicar as matemáticas às ciências não era realmente
revolucionária: não obstante, deu resultados novos e importantes.
A ideia de que o Universo talvez não seja aquilo que supomos
não é original: mas reparemos como Einstein altera as coisas
ao aplicá-la.
É evidente que a partir do nosso método, um trabalho como
o nosso, elaborado com o máximo de honestidade e o mínimo
de ingenuidade, deve provocar mais interrogações do que soluções.
Um método de trabalho não é um sistema de pensamento.
Não acreditamos que um sistema, por muito engenhoso que seja,
possa esclarecer por completo a totalidade da vida que nos
ocupa. Podemos remoer indefinidamente o marxismo sem conseguir
que nele caiba o facto de que Hitler teve várias vezes
consciência, com terror, de que o Superior Desconhecido o
visitara. E podia virar-se em todos os sentidos a medicina anterior
a Pasteur sem dela extrair a ideia de que as doenças são
causadas por animais pequenos demais para serem vistos.
No entanto, é possível que haja uma resposta global e definitiva
para todas as perguntas que formulamos, e que não a tenhamos
ouvido. Nada é excluído, nem o sim, nem o não. Nós não descobrimos
nenhuma "panaceia"; não nos transformámos em discípulos
de um novo messias; não propomos doutrina alguma.
Esforçámo-nos simplesmente por abrir para o leitor o maior
número possível de portas, e, como a maior parte delas se
abrem do lado de dentro, afastámo-nos para o deixar passar.
*
Repito: o fantástico, a nossos olhos, não é o imaginário. Mas
uma imaginação poderosamente aplicada ao estudo da realidade
descobre que é muito ténue a fronteira entre o maravilhoso e
o positivo, ou, se preferem, entre o universo visível e o universo
invisível. Existe talvez um ou vários universos paralelos ao
nosso. Creio que não teríamos empreendido esta tarefa se,
no decorrer da nossa vida, não tivesse acontecido sentirmo-nos,
realmente, fisicamente, em contacto com outro mundo. Isto
deu-se, com Bergier, em Mauthausen. Em escala diferente,
comigo deu-se na escola de Gurdjieff. As circunstâncias são
muito diferentes, mas o facto essencial é o mesmo.
O antropólogo americano Loren Eiseley, cuja forma de pensar
se aproxima da nossa, conta uma bela história que exprime
bem o que pretendo dizer.
"Descobrir outro mundo, diz ele, não é apenas um facto
imaginário. Pode acontecer aos homens. Aos animais também.
Por vezes, as fronteiras resvalam ou interpenetram-se: basta estar
presente nesse momento. Vi o facto acontecer a um corvo. Esse
corvo é meu vizinho: nunca lhe fiz mal algum, mas ele tem o
cuidado de se conservar no cimo das árvores, de voar alto e
de evitar a humanidade. O seu mundo principia onde a minha
vista acaba. Ora, uma manhã, os nossos campos estavam mergulhados
num nevoeiro extraordinariamente espesso, e eu dirigia-me
às apalpadelas para a estação. Bruscamente, à altura dos
meus olhos, surgiram duas asas negras, imensas, precedidas
por um bico gigantesco, e tudo isto passou como um raio,
soltando um grito de terror tal que eu faço votos para que nunca
mais oiça coisa semelhante. Esse grito perseguiu-me durante
toda a tarde. Cheguei a consultar o espelho, perguntando a mim
próprio o que teria eu de tão revoltante...
"Acabei por perceber. A fronteira entre os nossos dois mundos
resvalara, devido ao nevoeiro. Aquele corvo, que supunha
voar à altitude habitual, vira de súbito um espectáculo espantoso,
contrário, para ele, às leis da natureza. Vira um homem
caminhar no espaço, mesmo no centro do mundo dos corvos.
Deparara com a manifestação de estranheza mais completa que
um corvo pode conceber: um homem voador. . .
"Agora, quando me vê, lá do alto, solta pequenos gritos,
e reconheço nesses gritos a incerteza de um espírito cujo universo
foi abalado. Já não é, nunca mais será como os outros corvos..."
*
Este livro não é um romance, embora a intenção seja romanesca.
Não faz parte da ficção científica, embora nele se deparem
mitos que sustentam esse género. Não é conjunto de factos
estranhos, embora o Anjo do Bizarro nele se sinta à vontade.
Também não é uma contribuição científica, o veículo de um
ensino desconhecido, um documentário, ou uma efabulação. É a
narrativa, por vezes romanceada e por vezes exacta, de uma primeira
viagem pelos domínios dos conhecimentos ainda quase por
explorar. Como nos diários de bordo dos Navegadores do Renascimento,
o imaginário e o real, a extrapolação audaciosa e a visão
confundem-se. É que não tivemos nem o tempo nem os meios de
aprofundar completamente a exploração. Podemos apenas sugerir
hipóteses e indicar as vias de comunicação entre esses diversos
domínios que ainda são, por agora, terrenos proibidos. Sobre
esses terrenos proibidos apenas fizemos pequenas paragens.
Quando tiverem sido melhor explorados, sem dúvida se verificará
que muitas das nossas suposições eram delirantes, como os relatos
de Marco Polo. É uma eventualidade que aceitamos calmamente.
"Havia uma quantidade de disparates no livro de Pauwels
e Bergier." Eis o que dirão. Mas se tiver sido este livro a provocar
a curiosidade de aprofundar o assunto, o nosso fim terá
sido atingido.
Poderíamos escrever, como Fulcanelli ao tentar esclarecer e
descrever o mistério das catedrais: "Deixamos ao leitor o cuidado
de estabelecer todas as comparações úteis, de coordenar as versões,
de isolar a verdade positiva combinada com a alegoria lendária
nestes fragmentos enigmáticos." Todavia, a nossa documentação
nada deve a sábios ocultos, a livros enterrados ou a arquivos
secretos. É vasta, mas acessível a todos. Para que não se tornasse
excessivamente pesada, evitámos multiplicar as referências,
as notas no final das páginas, as indicações bibliográficas, etc. Por
vezes servimo-nos de imagens e alegorias, preocupados com a
eficácia e não por gosto pelo mistério, tão vivo nos esotéricos que
nos faz pensar neste diálogo dos Irmãos Marx:
"Olha, há um tesouro na casa ao lado.
- Mas não há casa alguma aqui ao lado.
- Então construiremos uma!"
*
Este livro, como já disse, deve muito a Jacques Bergier. Não
apenas na sua teoria geral, que é o fruto de uma comunhão das
nossas ideias, como ainda na documentação. Todos aqueles que
se aproximaram deste homem de memória sobre-humana,
de curiosidade voraz e - o que é ainda mais raro - com uma
permanente presença de espírito, acreditar-me-ão facilmente se
eu disser que num lustro Bergier fez-me ganhar vinte anos de
leitura activa. Nesse cérebro poderoso há uma formidável biblioteca
sempre em serviço; a escolha, a classificação, as conexões
mais complexas estabelecem-se à velocidade electrónica. O espectáculo
dessa inteligência em movimento jamais deixou de provocar
em mim uma exaltação das faculdades sem a qual concepção
e a redacção deste trabalho me teriam sido impossíveis.
Num escritório da Rua de Berri que um grande impressor
pusera generosamente à nossa disposição, reunimos uma quantidade
de livros, revistas, relatos, jornais em todas as línguas, e uma
secretária dactilografou centenas de páginas de notas, de citações,
de traduções de reflexões que nós lhe ditámos. Em minha casa, no
Mesnil-le-Roi, prosseguíamos todos os domingos a nossa conversa,
entrecortada por leituras, e eu anotava por escrito, na própria
noite, o essencial das nossas palavras, as ideias que delas tinham
surgido, as novas direcções sugeridas pelas pesquisas. Todos
os dias, durante cinco anos, me sentei à secretária logo de madrugada,
porque mais tarde esperavam-me longas horas de trabalho
exterior. Sendo as coisas como são neste mundo a que não queremos
fugir, a questão do tempo é uma questão de energia. Mas
ter-nos-iam sido necessários mais dez anos, muito dinheiro e
uma numerosa equipa para podermos iniciar com êxito a nossa
empresa. O que desejaríamos, se um dia pudéssemos dispor de
algum dinheiro, arranjado aqui e além, era criar e dar vida a uma
espécie de instituto onde os estudos, esboçados neste livro
fossem continuados. Desejo que estas páginas nos auxiliem nesse
sentido, se acaso têm algum valor. Como diz Chesterton, "a ideia
que não procura tornar-se palavra é uma ideia inútil, e a palavra
que não procura tornar-se acção é uma palavra inútil".
Por diversas razões, as actividades exteriores de Bergier são
numerosas; As minhas também, e de certa amplidão. Mas na
minha infância vi pessoas morrerem de trabalho. "Como consegue
fazer tudo o que faz?" Não sei, mas poderia responder pelas
palavras do Zen: "Caminho a pé e no entanto estou sentado
sobre o dorso de um boi."
Inúmeras dificuldades, solicitações e incómodos de toda a
espécie surgiram inopinadamente, chegando a fazer-me desesperar.
Detesto a figura do criador grotescamente indiferente a
tudo o que não seja a sua obra. Anima-me um amor mais vasto
e a pequenez em,amor, mesmo que o preço seja uma bela obra
parece-me uma contorção indigna. Mas devem compreender que
nestas disposições, na confusão de uma vida largamente participante,
corremos o risco do afogamento. Ajudou-me um pensamento
de Vicente de Paula: "Os grandes propósitos são sempre
atravessados por diversos obstáculos e dificuldades. A carne e
o sangue dirão que é necessário abandonar a missão, evitemos
portanto dar-lhes ouvidos. Deus jamais altera aquilo que uma
vez decidiu, seja o que for que de contrário nos aconteça."
*
Naquele curso complementar de Juvisy, que evoquei no início
deste prefácio, deram-nos um dia para comentar a frase de
!V'tgny: "Uma vida plena é um sonho de adolescente realizado
na idade madura." Então eu sonhava aprofundar e honrar a
filosofia de meu pai, que era uma filosofia do progresso. É, após
bastantes fugas, oposições e desvios, o que tento fazer. Que a
minha luta conceda paz às suas cinzas! Às suas cinzas hoje dispersas,
como ele desejava, pensando, como eu penso também,
que "a matéria talvez não seja mais do que uma das máscaras
entre todas as máscaras usadas pelo Grande Rosto".

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