domingo, 27 de abril de 2008

Sempre Zen, de Charlotte Joko Beck

Iniciando a prática zen
Minha cadela não se preocupa com o significado da vida. Ela pode se preocupar
em receber ou não a refeição pela manhã, mas não se senta preocupada em
conseguir ou não a realização, a libertação, a iluminação. Desde que receba um pouco
de comida e afeto, a vida lhe corre bem. Porém nós, seres humanos, não somos como
os cães. Temos mentes centradas em si mesmas que nos remetem a muitos
problemas. Se não entendermos o equívoco em nossa forma de pensar, nossa
autopercepção, que é nossa maior bênção, torna-se também nossa perdição.
Todos nós acreditamos que, em certa medida, a vida é difícil, intrigante e opressiva.
Mesmo quando tudo corre bem, como acontece por certo tempo, preocupamo-nos que
ela não se mantenha assim. Dependendo de nossa história pessoal, chegamos à
idade adulta tendo muitos sentimentos desencontrados a respeito da vida. Se eu lhes
dissesse que sua vida já é perfeita, completa e inteira exatamente do jeito que está,
vocês pensariam que estou maluca. Ninguém acredita que sua vida é perfeita. No
entanto, existe no íntimo de cada um uma dimensão que sabe que somos ilimitados,
infinitos. Vemo-nos presos à contradição de encontrar a vida em meio a um quebracabeça
muito desconcertante, capaz de nos causar muitos sofrimentos; ao mesmo
tempo, temos uma vaga consciência da natureza ilimitada, infinita da vida. Desta
maneira, começamos a procurar uma resposta a esse enigma.
A primeira forma de procurar é buscar soluções fora de nós mesmos. No começo,
pode acontecer num nível bastante comum. Existem muitas pessoas no mundo que
acreditam que se tivessem um carro maior, uma casa mais bonita, férias melhores, um
patrão mais compreensivo, ou um parceiro mais interessante, suas vidas seriam muito
melhores. Não há quem não pense assim. Lentamente, vamos descartando os "se ao
menos", essas coisas que nos fariam viver melhor. "Se ao menos eu tivesse isto, isso
ou aquilo, então minha vida seria outra." Na prática, todos estão com alguns desses
"se ao menos", na cabeça em algum momento, contudo aos poucos essas idéias vão
se desgastando. Primeiro, as mais grosseiras. Depois nossa busca dirige-se a níveis
mais sutis. Por fim, na procura pelo elemento externo a nós mesmos que, em nossa
expectativa, irá nos completar, voltamo-nos para uma disciplina espiritual.
Infelizmente, nossa tendência é considerar com a perspectiva anterior essa nova
possibilidade. Muitas das pessoas que buscam o Zen Center não crêem que a
resposta esteja num Cadillac mais novo, mas em alcançar a iluminação. Conseguiram
um novo recurso, um novo "se ao menos". "Se ao menos eu tivesse condição de
entender do que se trata a compreensão, seria feliz." "Se ao menos eu tivesse uma
pequena experiência de iluminação, seria feliz." Ao iniciarmos uma prática como o zen,
trazemos nossas noções habituais de estar chegando em algum lugar, de alcançar
alguma coisa -no caso, a iluminação - podendo a partir de então comer todos os
docinhos que antes nos tinham sido proibidos.
Toda a nossa vida consiste neste pequeno indivíduo, olhando à sua volta em busca
de objetos. No entanto, se você olha algo que é limitado -como o são o corpo e a
mente -e procura alguma coisa fora de si, esta coisa torna-se um objeto e também
deve ser limitado. Assim, existe alguma coisa limitada procurando algo limitado e, no
final, só fica maior aquela velha loucura que o vem tornando uma- pessoa tão infeliz.
Todos passam anos a fio consolidando uma visão condicionada da vida. Existe o
"eu" e existe essa "coisa" aí adiante que ou me fere ou me agrada. Nossa tendência é
levar a vida de modo a tentar evitar tudo o que nos magoe ou nos desagrade,
reparando nos objetos, nas pessoas ou situações que, a nosso ver, parecem nos
proporcionar dor ou prazer; evitaremos uns e perseguiremos outros. Sem exceção,
todos nós fazemos isso. Mantemo-nos distantes de nossa vida, olhando-a, analisandoa,
julgando-a, buscando respostas para perguntas como "O que ganho com isso? Vou
ter prazer ou conforto, ou será preciso que eu fuja?". Fazemos esse questionamento
de manhã à noite. Por trás de nossas fachadas agradáveis e amistosas ferve um
constrangimento considerável. Se eu pudesse raspar o verniz e ir um pouco mais
fundo do que a superfície de qualquer pessoa, encontraria medo, dor e uma ansiedade
desvairada. Todos temos métodos para encobrir tais sentimentos. Comemos demais,
bebemos demais, trabalhamos demais; assistimos à televisão demais. Estamos
sempre fazendo algo para encobrir nossa ansiedade existencial básica. Algumas
pessoas vivem dessa forma até o final de seus dias. Essa situação piora conforme o
tempo vai passando. 0 que talvez não seja tão ruim quando você tem 25 anos
parecerá terrível quando chegar aos cinqüenta. Todos conhecemos aquelas pessoas
que já morreram e se esqueceram de deitar-se; elas têm uma mentalidade tão
contraída em seus pontos de vista limitados, que a convivência é muito penosa tanto
para quem está à sua volta como para elas mesmas. A flexibilidade, a alegria e o fluir
da vida já se foram. Essa possibilidade tão sombria ameaça a todos nós a menos que
acordemos para o fato de ser necessário trabalhar nossa própria vida, praticar. É
preciso que enxerguemos a miragem de que existe um "eu" destacado de um "aquilo".
Nossa prática consiste em anular essa distância. Apenas no momento em que nós e
os objetos nos tornarmos um, é que poderemos enxergar o que é nossa vida.
A iluminação não é algo que se atinge. É a ausência de alguma coisa. A vida
inteira, a pessoa vai atrás de algo, perseguindo suas metas. A iluminação está em
deixar tudo isso de lado. Entretanto, falar sobre ela não adianta muito. A prática
precisa ser executada por cada um. Não há o que a substitua. Podemos ler a seu
respeito durante mil anos e não adiantará de nada para nós. É preciso que todos nós
pratiquemos, e temos de fazer com todo nosso empenho pelo resto da vida.
O que de fato queremos é uma vida natural. Nossas vidas são tão artificiais que
realizar uma prática como a do zen, no começo, é bastante difícil. Porém, assim que
começarmos a vislumbrar que o problema da vida não é algo externo a nós, teremos
começado a percorrer o caminho. Quando o despertar se inicia, quando começamos a
perceber que a vida pode ser mais aberta e alegre do que até então pensáramos ser
possível, queremos praticar.
Entramos numa disciplina como a prática zen para podermos aprender a viver de
modo lúcido. O zen tem quase mil anos e seus defeitos já foram corrigidos; embora
não seja fácil, não é insano. É sensato e muito prático. Diz respeito à vida cotidiana.
Refere-se a trabalhar melhor no escritório, a criar melhor as crianças, e estabelecer
relacionamentos melhores. Levar uma vida mais lúcida e satisfatória deve decorrer de
uma prática equilibrada e lúcida. O que desejamos fazer é encontrar uma maneira de
trabalhar com a insanidade elementar que existe em função de nossa cegueira.
É preciso coragem para se sentar bem. O zen não é uma disciplina para todos.
Precisamos estar dispostos afazer algo que não é fácil. Se o fizermos com paciência e
perseverança, com a orientação de um bom instrutor, então, aos poucos, nossa vida
irá se aquietar, ficar mais equilibrada. Nossas emoções não serão mais tão
dominadoras. Enquanto sentamos, descobrimos que a primeira coisa, a mais
elementar, para trabalhar, é nossa mente caótica, ocupada. Estamos todos enredados
num pensar frenético e o problema da prática está em começar a trazer esse
pensamento para a claridade e o equilíbrio. Quando a mente fica limpa, clara,
equilibrada, e não mais prisioneira dos objetos, então poderá haver uma abertura e,
por um instante, nos , daremos conta de quem somos, na verdade.
Contudo, sentar não é algo que praticamos durante um ou dois anos com a idéia de
dominar a questão. Sentar é algo que praticamos a vida inteira. Não há limites para a
abertura possível ao ser humano. Eventualmente percebemos que somos a base
ilimitada e incontida do universo. Para o resto da vida, nossa incumbência será
abrirmo-nos cada vez mais a essa imensidão e expressá-la. Quanto maior for nosso
contato com essa realidade, mais aumentará nossa compaixão pelos outros, maiores
serão as alterações em nossa vida cotidiana. Viveremos, trabalharemos e nos
relacionaremos de modo diferente com as pessoas. O zen é um estudo para a vida
toda. Não é só sentar-se numa almofada durante trinta ou quarenta minutos diários.
Toda nossa vida torna-se uma prática, vinte e quatro horas por dia.
Gostaria agora de responder a algumas perguntas sobre a prática do zen e sua
relação com a vida pessoal.
ALUNO: Você poderia falar mais a respeito de nos desapegarmos dos pensamentos
que nos ocorrem durante a meditação?
JOKO: Não acho que nos desapeguemos das coisas; creio que o que mais fazemos é
desgastá-las. Se começamos a forçar nossas mentes para fazerem as coisas,
estaremos exatamente de volta ao dualismo do qual tentamos nos livrar. O melhor
meio de nos desapegar é notar os pensamentos quando aparecerem e reconhecê-los.
"Ah, é, estou de novo pensando", sem julgá-los, e então retornar à nítida experiência
do momento presente. Sejam apenas pacientes. Teríamos de fazer isso dez mil vezes,
mas o valor de nossa prática é o retorno constante da mente para o presente,
inúmeras vezes seguidas. Não procurem aqueles lugares maravilhosos, onde os
pensamentos não ocorrerão. Uma vez que os pensamentos basicamente não são
reais, em algum momento começarão a ficar obscuros e menos imperativos, e
acabaremos percebendo que existem momentos em que desaparecem, porque vemos
que não são reais. Já irão sumir com o tempo, sem que saibamos de maneira exata
como aconteceu. Aqueles pensamentos são nossas tentativas de nos proteger.
Ninguém quer, de fato, deixá-los de lado; são aquilo a que estamos apegados. Com o
tempo, o meio de acabarmos enxergando sua irrealidade está em apenas deixar correr
o filme. Depois de o assistirmos umas quinhentas vezes, sem dúvida, ele acaba se
tornando monótono!
Há duas espécies de pensamento. Não há nada de errado em pensar no sentido que
denomino "pensamento técnico". Precisamos pensar afim de andar daqui até o canto,
para assar um bolo ou resolver um problema de Física. Esse uso da mente é correto.
Não é nem real, tampouco irreal; é só o que é. Porém, opiniões, julgamentos,
lembranças, devaneios a respeito do futuro, 90% dos pensamentos que giram em
nossa mente não têm qualquer realidade essencial. Do nascimento até a morte, a
menos que despertemos, desperdiçamos quase toda a nossa vida em função deles. A
parte horrível do sentar (e, acreditem, é horrível) está em começarmos a ver o que de
fato se passa em nossa mente. É chocante para todo mundo. Vemos que somos
violentos, preconceituosos e egoístas. Somos tudo isso porque uma vida
condicionada, com base em falsos pensamentos, levou-nos a esse estado. Os seres
humanos são essencialmente bons, gentis e compadecidos, mas é preciso um grande
esforço de escavação para extrair essa jóia das entranhas de nosso ser.
ALUNO: Você disse que conforme o tempo passa, os reveses, os transtornos
começam a se reduzir, até que por fim se esgotam?
JOKO: Não estou querendo dizer que não haverá transtornos. O que desejo falar é
que, quando ficamos aborrecidos, não permanecemos apegados a esse estado. Se
sentimos raiva, só ficamos com raiva por um instante. Pode ser que os outros nem se
dêem conta disso. É tudo. Não há o apego à raiva, à sedução mental de manter-se
nesse estado. Não estou também afirmando que os anos de prática terminarão
fazendo de nós zumbis. Pelo contrário, teremos emoções realmente mais genuínas,
sentiremos mais as pessoas. Só não ficaremos mais tão enredados nas malhas de
nossos estados interiores.
ALUNO: Você poderia comentar a respeito de nosso trabalho cotidiano como parte da
prática?
JOKO: O trabalho é a melhor parte da prática e do treino zen. Independente de qual
seja o trabalho, deverá ser feito com esforço e total atenção àquilo que tivermos bem à
nossa frente. Se estamos limpando o fogão, deveríamos estar totalmente envolvidos
nesse mister, e ao mesmo tempo ter consciência de pensamentos que o interrompem.
"Odeio limpar fogões. Amoníaco fede! Aliás, quem gosta de limpar fogão? Depois de
tudo que estudei, não deveria estar fazendo isso!" Todos esses são pensamentos
extras que nada têm que ver com a limpeza do fogão. Se a mente divaga para algum
lugar, traga-a de volta ao trabalho. Existe a tarefa concreta que estamos executando e
ainda há todas as considerações que tecemos a esse respeito. Trabalho é só cuidar
daquilo que precisa ser feito já; porém, são muito poucos os que trabalham desse
jeito. Quando temos paciência com nossa prática, o trabalho, um dia, começará afluir
Fazemos aquilo que precisa ser feito, só isso.
Seja qual for sua vida, sugiro que faça dela sua prática.

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