sábado, 26 de abril de 2008

As Cicatrizes das Guerras

Vários foram os americanos seduzidos pela Europa, ou então pelas suas guerras dos anos 30/40, e que aqui aportaram como correspondentes de jornais. Esse trabalho, para quem navegava no mundo das letras, permitia-lhes continuar a exercitar a escrita, mas proporcionava-lhes também um conhecimento impossível no seu país – os Estados Unidos não conheceram guerras no seu território depois da Secessão –, o da selvajaria com um estatuto próprio e justificações políticas. Os casos de mulheres que se fizeram de peito aberto às dificuldades de acompanhar de perto e ao vivo esses confrontos, mais a mais num mundo de homens assanhados pela pressão das circunstâncias, não serão muitos. Mas houve, e aqui está o caso de uma delas, Martha Gellhorn, que, ainda para cúmulo, até foi casada com Hemingway, embora tal seja irrelevante – e tenha resultado do encontro dos dois em Washington – apaixonado mas inconsequente, até pela natureza do casal.Feito e desfeito o conúbio, aí andou ela pela Espanha que se debatia na guerra civil, depois pela Europa afrontada pelo nazismo. Percebe-se pelo que deixou escrito: a guerra, as guerras, tinham de ser relatadas em tudo o que implicavam, mais além dos relatos factuais, a realidade dos enfrentamentos. Porque para lá disso há todo um mundo que sofre, de um modo ou outro, nas margens dos conflitos. E assim se seguiu o acompanhamento das guerras no Vietname, em Java, no Médio Oriente, na América Central. Bom, e revelador da forma como via tudo isto, está lá o acompanhamento do julgamento de Nuremberga e a conferência de paz de Paris, em 1946. Duas oportunidades para descrever o outro lado, o da hipocrisia de um julgamento e das negociações entre parceiros desentendidos quanto ao futuro (como no passado).Bom, está dado o mote: são reportagens de guerra diferentes do que a mitologia tem consagrado, em grande parte porque os jornalistas, sobretudo os de hoje, estão mais empenhados nos galões a ganhar no campo de combate, do que no resultado final de esclarecimento público do que está em causa: os interesses, os sofrimentos anódinos, a inversão de valores, e tudo o mais que da guerra faz guerra.Por isso, a semelhança entre estes relatos e outros que por aí se lêem serão pura coincidência. «Os textos de Gellhorn são ainda mais qualquer coisa (mais do que a “preservação da memória e da imaginação como armas contra o poder e a ignorância”). Na verdade, grande parte delas são as provas ideais de que o jornalismo pode ser um exercício superior de literatura e a forma perfeita de revelação de uma realidade que desconhecemos», escreve José Vegar no prefácio. E assim é. E assim devia haver mais quem fizesse.
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Martha Gellhorn
A face da guerra
Publicações Dom Quixote, 25€

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