O 25 de Abril continua vivo. Pelo menos como matéria de investigação revela-se um campo não esgotado. Se internamente ainda não foram revelados todos os documentos, nem recolhidos todos os depoimentos, nem vasculhados todos os arquivos, informação há que vai ficando disponível em centros não nacionais.
É o caso, nesta investigação, da relação entre “Os EUA e a Revolução Portuguesa”, um tema que fez correr rios de tinta logo enquanto o 25 de Abril durou – em que grau Carlucci e Kissinger interferiram e influenciaram os acontecimentos (ou pretenderam fazê-lo)?
À época, correram as mais diversas notícias do posicionamento de Washington, e do seu apoio directo, chegando mesmo publicado o valor do “investimento” para conter o papão gonçalvista. Pela parte soviética, os autores assinalam o facto de os arquivos da URSS ainda “permanecerem inacessíveis aos investigadores, o que não permitiu aprofundar os vários registos que apontavam para um enorme apoio de Moscovo ao Partido Comunista Português entre 1974 e 1976”.
Um oficial da Defense Intelligence Agency (DIA) foi enviado a Lisboa (1 a 4 de Junho de 1975) e não hesita em fazer eco do apoio soviético aos esquerdistas portugueses, num montante entre 35 e 40 milhões de dólares em 1974. Pelo contrário, refere-se, havendo oficiais moderados do MFA sem simpatia pelo curso esquerdista de Portugal, os diplomatas americanos estavam de mão atadas: “Queixaram-se de que no quadro da direcção política [de Washington] tinham muito pouco a oferecer-lhes”, restando o “encorajamento verbal”.
O referido oficial da DIA propunha, então, para ajudar Portugal a enveredar pelo caminho da social-democrata, que Washington “demonstrasse a sua boa vontade”, apoiasse Lisboa, desde logo “cancelando o embargo de armas” ao país, estabelecendo “um programa de ajuda militar que manteria abertas linhas de comunicação com os portugueses e aumentaria a influência dos EUA”.
O conflito entre o homem no terreno, que sujava as mãos (Carlucci), e Kissinger, no seu alto cargo de secretário de Estado, não podia ser mais eloquente: o embaixador em Lisboa manteve uma leitura da situação em que Soares tinha o seu papel, enquanto o secretário de Estado norte-americano mostrava pouca simpatia por socialistas, e muito menos pela presença de comunistas nos governos.
Mas, a 17 de Junho de 1975, Arthur Hartman, responsável pelos Assuntos Europeus no governo norte-americano, telefonou a Henry Kissinger para preparar a reunião da manhã do secretário de Estado.
“Queremos ter, imediatamente, uma descrição precisa de Carlucci sobre o que está a fazer. Você vai dizer-lhe que espero que ele esteja a fazer todos os possíveis para que Costa Gomes e [Melo] Antunes percebam que vamos apoiá-los nos seus esforços para impor uma direcção mais moderada. Queremos que eles façam isto com tanto tacto quanto possível”, ordenava Kissinger.
Trata-se de um exemplo de como duas visões de uma mesma revolução num mesmo país diferiam substancialmente. E é uma ajuda substancial para entender como todas as interferências externas, umas solicitadas outras claramente abusivas, tiveram influência, muitas vezes decisiva, na evolução do 25 de Abril, no seu desfecho, no ciclo que se abriu e nos trouxe ao que somos hoje.
Uma nota: os autores ressalvam que esta obra não deve ser entendida como “uma história da revolução portuguesa”, mas sim, antes, uma avaliação do “impacto da actuação norte-americana no resultado final da passagem do regime autoritário para a democracia em Portugal”.
Por outro lado, o desenvolvimento da investigação que se consubstanciou no livro integrava um projecto em três componentes: a elaboração da tese de doutoramento de um dos autores (Tiago Sá Moreira); a obra, ela mesma; e a criação de um centro de documentação sobre as relações luso-americanas desde a Segunda Guerra Mundial.
Claro que a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) é um dos proponentes do projecto, com o Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-UNL).
__________
Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá
Carlucci vs. Kissinger – Os EUA e a Revolução Portuguesa
Publicações Dom Quixote, 23€
É o caso, nesta investigação, da relação entre “Os EUA e a Revolução Portuguesa”, um tema que fez correr rios de tinta logo enquanto o 25 de Abril durou – em que grau Carlucci e Kissinger interferiram e influenciaram os acontecimentos (ou pretenderam fazê-lo)?
À época, correram as mais diversas notícias do posicionamento de Washington, e do seu apoio directo, chegando mesmo publicado o valor do “investimento” para conter o papão gonçalvista. Pela parte soviética, os autores assinalam o facto de os arquivos da URSS ainda “permanecerem inacessíveis aos investigadores, o que não permitiu aprofundar os vários registos que apontavam para um enorme apoio de Moscovo ao Partido Comunista Português entre 1974 e 1976”.
Um oficial da Defense Intelligence Agency (DIA) foi enviado a Lisboa (1 a 4 de Junho de 1975) e não hesita em fazer eco do apoio soviético aos esquerdistas portugueses, num montante entre 35 e 40 milhões de dólares em 1974. Pelo contrário, refere-se, havendo oficiais moderados do MFA sem simpatia pelo curso esquerdista de Portugal, os diplomatas americanos estavam de mão atadas: “Queixaram-se de que no quadro da direcção política [de Washington] tinham muito pouco a oferecer-lhes”, restando o “encorajamento verbal”.
O referido oficial da DIA propunha, então, para ajudar Portugal a enveredar pelo caminho da social-democrata, que Washington “demonstrasse a sua boa vontade”, apoiasse Lisboa, desde logo “cancelando o embargo de armas” ao país, estabelecendo “um programa de ajuda militar que manteria abertas linhas de comunicação com os portugueses e aumentaria a influência dos EUA”.
O conflito entre o homem no terreno, que sujava as mãos (Carlucci), e Kissinger, no seu alto cargo de secretário de Estado, não podia ser mais eloquente: o embaixador em Lisboa manteve uma leitura da situação em que Soares tinha o seu papel, enquanto o secretário de Estado norte-americano mostrava pouca simpatia por socialistas, e muito menos pela presença de comunistas nos governos.
Mas, a 17 de Junho de 1975, Arthur Hartman, responsável pelos Assuntos Europeus no governo norte-americano, telefonou a Henry Kissinger para preparar a reunião da manhã do secretário de Estado.
“Queremos ter, imediatamente, uma descrição precisa de Carlucci sobre o que está a fazer. Você vai dizer-lhe que espero que ele esteja a fazer todos os possíveis para que Costa Gomes e [Melo] Antunes percebam que vamos apoiá-los nos seus esforços para impor uma direcção mais moderada. Queremos que eles façam isto com tanto tacto quanto possível”, ordenava Kissinger.
Trata-se de um exemplo de como duas visões de uma mesma revolução num mesmo país diferiam substancialmente. E é uma ajuda substancial para entender como todas as interferências externas, umas solicitadas outras claramente abusivas, tiveram influência, muitas vezes decisiva, na evolução do 25 de Abril, no seu desfecho, no ciclo que se abriu e nos trouxe ao que somos hoje.
Uma nota: os autores ressalvam que esta obra não deve ser entendida como “uma história da revolução portuguesa”, mas sim, antes, uma avaliação do “impacto da actuação norte-americana no resultado final da passagem do regime autoritário para a democracia em Portugal”.
Por outro lado, o desenvolvimento da investigação que se consubstanciou no livro integrava um projecto em três componentes: a elaboração da tese de doutoramento de um dos autores (Tiago Sá Moreira); a obra, ela mesma; e a criação de um centro de documentação sobre as relações luso-americanas desde a Segunda Guerra Mundial.
Claro que a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) é um dos proponentes do projecto, com o Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-UNL).
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Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá
Carlucci vs. Kissinger – Os EUA e a Revolução Portuguesa
Publicações Dom Quixote, 23€
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