domingo, 22 de fevereiro de 2009

Mais que as palavras.

Ontem fui à livraria escolher entre dois infantos estrangeiros para exercitar o meu inglês macarrônico e a curiosidade acerca de novos projetos. Voltei para casa com um nacional de primeira grandeza, que eu nem sabia da existência mas, que me fez esquecer o motivo pelo qual entrei tão determinado (?!) na loja. Confesso que fiquei refém das suas sutilezas. Primeiro, a capa me chamou a atenção. Me convidou para entrar. Depois, folheando suas 200 páginas, fui atraído por seu projeto gráfico singular. A história me pegou pelo pé e eu investi trinta dinheiros em Chuva de Letras (Luis Alberto Brandão, Scipione). Não me arrependi nem um pouquinho. Cheguei em casa e o deixei na mesa de centro esperando por mim. Tinha que sair para trabalhar e voltaria umas 10 da noite. Foi só isso que ele esperou. As escolas de samba desfilaram na TV por uns cinco minutos. Depois, desliguei o aparelho e me aconcheguei no sofá para conhecer a história de Nelson.

Não sei o que aconteceu no mundo naqueles poucos minutos. Digo poucos, por que nem vi o tempo passar. O tempo em Chuva de Letras deve ser medido em intensidade e não em minutos. As páginas passam rápidas e a história mexe com a gente. Nelson é um adolescente que vive, ou melhor, mora, digo, dorme num barraco de um cômodo, numa favela de um morro qualquer. Sai de casa ainda pela manhã para trabalhar e só volta – exausto – depois da aula, no período noturno. A solidão é sua companheira. Quase não encontra a sua mãe, com quem divide o barraco e as dificuldades. Ela chega do trabalho ao raiar do dia e geralmente se encontram apenas para uma conversa rápida enquanto tomam café.

Numa madrugada chuvosa, Nelson acorda com a TV ligada, num canal fora do ar. Chove fora e dentro do barraco. O chuvisco em preto e branco da TV ilumina o interior do barraco e intriga o rapaz: “Como é que pode esse chuvisco de luz, se a Televisão está estragada, e o morro, sem energia elétrica?”. De repente, surgem algumas letras na tela da tv, no meio do chuvisco. O que será isso? Pronto, a primeira mensagem foi escrita e percebida por Nelson. A partir daí começa uma comunicação entre o rapaz e o “ser” que escreve através da TV quebrada. Nelson também começa a escrever. Precisa desabafar. Contar para alguém sua experiência paranormal. A agenda é a sua companheira de confissão. O mistério continua. Quem é o interlocutor? De onde vem? O que quer? Nelson já não é o único a querer desvendar o mistério. O leitor já foi fisgado pelo enredo. E precisa urgentemente alcançar o final. Nelson nunca mais será o mesmo.

A história de Luis Alberto Brandão fica ainda melhor graças ao projeto gráfico assinado por Marisa Iniesta Martin. E não estou falando da maravilhosa capa em altorrelevo (nova ortografia) onde inicialmente se reconhece apenas uma gigantesca letra “L” e um “n” menor, alem do nome do autor e da editora. Um pouco mais de atenção e percebe-se o título e os “pingos da chuva”. Mas, como eu disse, não é a capa o principal trunfo do projeto gráfico. Para um bom roedor de livros, seu recheio é ainda mais saboroso. O conceito visual para a “chuva de letras” na tela da TV, apresentado sempre na folha à esquerda do leitor, ora aproximando ora distanciando as “barras” (/) que imitam os pingos da chuva, é excepcional. O diálogo se dá ao intercalar a chuva com um texto que é quase um desenho, ocupando página inteira às vezes apenas com uma frase no canto superior. Genial! Genial!! Genial!!!

Até a foto que estampa a guarda do livro é espetacular. Retrata uma favela no morro. Oferece beleza e incômodo ao leitor. Poesia visual? Literatura visual? Tudo junto? Não sei o que é. Deixo esta definição para os teóricos. O que sei é que a história é contada usando muito mais que os significados usuais que damos às palavras. É como um show de mímica onde sabemos tudo o que o ator quer dizer sem que o som chegue aos nossos ouvidos. As palavras já estão dentro da gente esperando outra forma de comunicação. Luis Alberto Brandão descobriu um jeito diferente de nos contar a sua ótima história. Muito mais que as palavras. Difícil sair impune depois de mergulhar na sua Chuva de Letras. Nelson não saiu. Eu não saí. Provavelmente, se aceitar meu convite para esta leitura, você não sairá. Hatuna Matata.

P.S. 01 – Quase ia me esquecendo: O livro foi vencedor do Prêmio Nacional de Literatura Infantil João-de-Barro 2007, por unanimidade, no júri formado por estudantes de escolas públicas mineiras.

P.S. 02 – As editoras brasileiras têm produzidos alguns livros em que o projeto gráfico inova na forma de apresentar o texto, como acontece em CHUVA DE LETRAS. Aqui no blog dos Roedores de Livros já citamos alguns exemplos desta safra como A ÚLTIMA GUERRA e TODOS CONTRA DANTE.

P.S. 03 – Ah… os livros estrangeiros que perderam a vez para Chuva de Letras? The Graveyard Book (Neil Gaiman) e The 39 Clues - The Maze of Bones, Book 01 (Rick Riordan). Você ainda vai ouvir falar deles.

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