Elias Canetti não será para os leitores portugueses um escritor de estimação, apesar do seu prémio Nobel (1981) e de uma obra talhada em pensamento correspondente à língua alemã, por que optou. A publicação deste seu livro autobiográfico – o primeiro de uma trilogia –, em que as memórias de infância mostram a importância da língua como guia de navegação para toda a vida, poderá acordar entre nós o apetite por uma obra que conjuga e reflecte a história da Europa de quase todo o século XX.
Canetti começa logo por nos arrebatar para uma das margens búlgaro-romenas do Danúbio, onde nasceu em 1905, no seio de uma família judia (sefardita), o que lhe ditou o ladino, um espanhol arcaico caldeado em termos turcos e búlgaros, como primeira língua. A de infância.
Era uma família de posses, a desses comerciantes que se refugiaram nos confins da Europa em fuga das perseguições desencadeadas em Espanha pelos reis católicos, em 1492, mas que não deixou para trás o nome original – Cañete. A mãe, regista ele, inseria-se numa casta que, para além da sua origem espanhola, era legitimada pelo dinheiro.
Era natural esse posicionamento especial por parte de uma família sefardita, em que a vida comunitária tinha um sentido muito especial, mas era consolidada por fortes laços linguísticos. O espanhol, que Canetti recorda como muito puro, resistia à infiltração de alguns vocábulos turcos, não pesava nisso dramatismo “porque havia quase sempre para elas palavras espanholas”.
O menino Elias não escapava, porém, a essa amálgama que o rodeava, a erupção inevitável de múltiplas línguas que se atropelavam no dia-a-dia. “Rustschuk (...) era uma cidade maravilhosa para uma criança, e quando digo que fica na Bulgária estou a dar dela uma imagem redutora, pois viviam aí pessoas da mais diversa origem”, regista o autor. “Ouviam-se às vezes, num só dia, sete ou oito línguas”.
O instinto de defesa da língua, a sua – a que viria a ser sua, afinal, foi o alemão – pareceria quase natural perante tamanha diversidade e eventual confusão. Mas Canetti prefere um outro registo, entre o irónico e o humorístico, para relatar a necessidade da preservação da língua – sim, o órgão, e não a fala (enfim, as duas, porque a anatomia condiciona a capacidade expressiva).
Assim, começa as suas recordações de menino – “a minha lembrança mais antiga” – ao colo de uma rapariga: “O chão diante de mim é vermelho, e à esquerda há uma escada para baixo, que é vermelha também”. E é dessa massa de cor que brota todos os dias, pela porta do fundo, a figura de um homem sorridente que se abeira do menino e lhe ordena: “Mostra-me a língua!”. Ele deita a língua de fora, o homem tira um canivete do bolso, maneja a lâmina até juntinho da sua boca e deixa no ar: “Agora vamos cortar-lhe a língua”.
Mas não corta. No último momento recupera a lâmina, fecha o canivete, mete-o no bolso e afasta-se: “Hoje ainda não, amanhã”. A ameaça fica no ar, na memória, até uns anos mais tarde, quando relata os factos à mãe. E assim se explica tudo: o colo era de uma rapariga búlgara, criada de meninos, que nem quinze anos tinha. Mas tinha um namorado, conhecido ocasionalmente, que visitava em corridas nocturnas ao quarto dele do outro lado da rua. Tirou bilhete de volta à Bulgária.
Bom, preservada a língua – anatómica – o gosto pelo saber impunha-se-lhe naturalmente. A mãe, como era de uso entre os sefarditas, estimava as “boas famílias”, o que significava que “já eram ricas há muito”. E eles, esta casta, até olhava de alto para os outros judeus, e havia na língua que falavam uma expressão para designá-los: “Soava como ‘todesco’, significava judeu alemão ou askenase”.
A mãe de Elias era uma senhora que “buena famiglia”, que falava línguas, que falava de Strindberg, para ela “as literaturas das línguas de cultura que dominava constituíam efectivamente o conteúdo da vida”. Uma contradição, a desta universalidade apaixonada e assumida, com o altivo orgulho de família que alimentava.
O filho, naturalmente, seria levado na aprendizagem desse instrumento tão indispensável ao mundo de viagens em que cresceu. Movimentações que também determinariam a necessidade de expressar-se em mais do que um idioma, mas mais adensa o que parece ser um mistério – porquê a escolha do alemão como língua preservada, como instrumento da escrita a que dedicou a vida e afinal lhe levou a consagração? Ao que parece, ninguém tem a resposta.
Mas sabe-se, ele conta-o neste primeiro volume autobiográfico, que essa aprendizagem constituiu por vezes motivo de conflitos, dificuldades tremendas. Naturalmente, quando os pais decidiram ir viver para Inglaterra, ele lá se dedicou a aprender o inglês, numa escola primária que o fascinou. Mas já o tirocínio do francês, que a mãe lhe impôs também em Manchester, se revelaria uma complicação, sobretudo a partir da altura em que percebeu que a declamação do único texto que aprendera, e aperfeiçoava ininterruptamente, era motivo de galhofa nos serões de família.
Teria ainda de aprender o alemão. E isso sobreveio na Suíça, depois do falecimento do pai em Manchester, o que fez a mãe demandar Viena para fixar-se – uma escolha explicada, entre outras razões, por ter sido aí que conheceu o marido e pai de Elias – em alemão. Língua que sempre lhes serviu de refúgio para a expressão de afectos, a dedicação do amor.
Estavam então de passagem, ele e a mãe, por Lausana, a caminho de Viena, onde deveria ir frequentar a 3ª classe que era o nível correspondente aos seus oito anos. Mas havia o obstáculo do alemão, língua que ele desconhecia. A mãe surpreendeu-o um dia com a entrada numa livraria onde comprou uma gramática de inglês-alemão. “Como hei-de eu descrever de modo credível o tipo de ensino que isso foi?”, interroga-se Canetti.
A resposta: “Sentávamo-nos à mesa grande da sala de jantar (...) ela sentava-se no canto à minha esquerda e segurava o livro de modo a eu não poder ver. Tinha-o sempre longe de mim. ‘Não precisas dele para nada’”, justificava.
A receita era ler-lhe uma frase em alemão, mandá-lo repeti-la, tantas vezes quantas o levassem ao nível satisfatório. Só depois lhe dizia o significado em inglês, o que nunca repetia, tinha de ser fixado de uma vez por todas. Seguia-se outra frase, nas mesmas condições, e eram muitas, tanto quanto Elias arrisca nas memórias.
Há, pois, que confiar na memória do escritor, falecido em 1994, em Zurique, e no poder da língua como forma única de expressar o pensamento. O Nobel foi apenas a mais notável distinção na sua carreira literária. E o alemão a língua final, que nem as décadas mais tarde vividas em Inglaterra (cuja nacionalidade adoptou) afectaram, nem a ameaça hitleriana expropriou. Língua em que ficou um dos seus livros, precisamente dedicado ao nazismo – um fruto da relação das massas com o poder. Afinal, Hitler não foi eleito?
Que venham agora os restantes dois volumes desta trilogia autobiográfica.
__________
Elias Canetti
A língua posta a salvo
Campo das Letras, 18€
Canetti começa logo por nos arrebatar para uma das margens búlgaro-romenas do Danúbio, onde nasceu em 1905, no seio de uma família judia (sefardita), o que lhe ditou o ladino, um espanhol arcaico caldeado em termos turcos e búlgaros, como primeira língua. A de infância.
Era uma família de posses, a desses comerciantes que se refugiaram nos confins da Europa em fuga das perseguições desencadeadas em Espanha pelos reis católicos, em 1492, mas que não deixou para trás o nome original – Cañete. A mãe, regista ele, inseria-se numa casta que, para além da sua origem espanhola, era legitimada pelo dinheiro.
Era natural esse posicionamento especial por parte de uma família sefardita, em que a vida comunitária tinha um sentido muito especial, mas era consolidada por fortes laços linguísticos. O espanhol, que Canetti recorda como muito puro, resistia à infiltração de alguns vocábulos turcos, não pesava nisso dramatismo “porque havia quase sempre para elas palavras espanholas”.
O menino Elias não escapava, porém, a essa amálgama que o rodeava, a erupção inevitável de múltiplas línguas que se atropelavam no dia-a-dia. “Rustschuk (...) era uma cidade maravilhosa para uma criança, e quando digo que fica na Bulgária estou a dar dela uma imagem redutora, pois viviam aí pessoas da mais diversa origem”, regista o autor. “Ouviam-se às vezes, num só dia, sete ou oito línguas”.
O instinto de defesa da língua, a sua – a que viria a ser sua, afinal, foi o alemão – pareceria quase natural perante tamanha diversidade e eventual confusão. Mas Canetti prefere um outro registo, entre o irónico e o humorístico, para relatar a necessidade da preservação da língua – sim, o órgão, e não a fala (enfim, as duas, porque a anatomia condiciona a capacidade expressiva).
Assim, começa as suas recordações de menino – “a minha lembrança mais antiga” – ao colo de uma rapariga: “O chão diante de mim é vermelho, e à esquerda há uma escada para baixo, que é vermelha também”. E é dessa massa de cor que brota todos os dias, pela porta do fundo, a figura de um homem sorridente que se abeira do menino e lhe ordena: “Mostra-me a língua!”. Ele deita a língua de fora, o homem tira um canivete do bolso, maneja a lâmina até juntinho da sua boca e deixa no ar: “Agora vamos cortar-lhe a língua”.
Mas não corta. No último momento recupera a lâmina, fecha o canivete, mete-o no bolso e afasta-se: “Hoje ainda não, amanhã”. A ameaça fica no ar, na memória, até uns anos mais tarde, quando relata os factos à mãe. E assim se explica tudo: o colo era de uma rapariga búlgara, criada de meninos, que nem quinze anos tinha. Mas tinha um namorado, conhecido ocasionalmente, que visitava em corridas nocturnas ao quarto dele do outro lado da rua. Tirou bilhete de volta à Bulgária.
Bom, preservada a língua – anatómica – o gosto pelo saber impunha-se-lhe naturalmente. A mãe, como era de uso entre os sefarditas, estimava as “boas famílias”, o que significava que “já eram ricas há muito”. E eles, esta casta, até olhava de alto para os outros judeus, e havia na língua que falavam uma expressão para designá-los: “Soava como ‘todesco’, significava judeu alemão ou askenase”.
A mãe de Elias era uma senhora que “buena famiglia”, que falava línguas, que falava de Strindberg, para ela “as literaturas das línguas de cultura que dominava constituíam efectivamente o conteúdo da vida”. Uma contradição, a desta universalidade apaixonada e assumida, com o altivo orgulho de família que alimentava.
O filho, naturalmente, seria levado na aprendizagem desse instrumento tão indispensável ao mundo de viagens em que cresceu. Movimentações que também determinariam a necessidade de expressar-se em mais do que um idioma, mas mais adensa o que parece ser um mistério – porquê a escolha do alemão como língua preservada, como instrumento da escrita a que dedicou a vida e afinal lhe levou a consagração? Ao que parece, ninguém tem a resposta.
Mas sabe-se, ele conta-o neste primeiro volume autobiográfico, que essa aprendizagem constituiu por vezes motivo de conflitos, dificuldades tremendas. Naturalmente, quando os pais decidiram ir viver para Inglaterra, ele lá se dedicou a aprender o inglês, numa escola primária que o fascinou. Mas já o tirocínio do francês, que a mãe lhe impôs também em Manchester, se revelaria uma complicação, sobretudo a partir da altura em que percebeu que a declamação do único texto que aprendera, e aperfeiçoava ininterruptamente, era motivo de galhofa nos serões de família.
Teria ainda de aprender o alemão. E isso sobreveio na Suíça, depois do falecimento do pai em Manchester, o que fez a mãe demandar Viena para fixar-se – uma escolha explicada, entre outras razões, por ter sido aí que conheceu o marido e pai de Elias – em alemão. Língua que sempre lhes serviu de refúgio para a expressão de afectos, a dedicação do amor.
Estavam então de passagem, ele e a mãe, por Lausana, a caminho de Viena, onde deveria ir frequentar a 3ª classe que era o nível correspondente aos seus oito anos. Mas havia o obstáculo do alemão, língua que ele desconhecia. A mãe surpreendeu-o um dia com a entrada numa livraria onde comprou uma gramática de inglês-alemão. “Como hei-de eu descrever de modo credível o tipo de ensino que isso foi?”, interroga-se Canetti.
A resposta: “Sentávamo-nos à mesa grande da sala de jantar (...) ela sentava-se no canto à minha esquerda e segurava o livro de modo a eu não poder ver. Tinha-o sempre longe de mim. ‘Não precisas dele para nada’”, justificava.
A receita era ler-lhe uma frase em alemão, mandá-lo repeti-la, tantas vezes quantas o levassem ao nível satisfatório. Só depois lhe dizia o significado em inglês, o que nunca repetia, tinha de ser fixado de uma vez por todas. Seguia-se outra frase, nas mesmas condições, e eram muitas, tanto quanto Elias arrisca nas memórias.
Há, pois, que confiar na memória do escritor, falecido em 1994, em Zurique, e no poder da língua como forma única de expressar o pensamento. O Nobel foi apenas a mais notável distinção na sua carreira literária. E o alemão a língua final, que nem as décadas mais tarde vividas em Inglaterra (cuja nacionalidade adoptou) afectaram, nem a ameaça hitleriana expropriou. Língua em que ficou um dos seus livros, precisamente dedicado ao nazismo – um fruto da relação das massas com o poder. Afinal, Hitler não foi eleito?
Que venham agora os restantes dois volumes desta trilogia autobiográfica.
__________
Elias Canetti
A língua posta a salvo
Campo das Letras, 18€
Nenhum comentário:
Postar um comentário