terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Abecedeta - O enigma do círculo fechado, de Vitorino de Sousa

TRECHO:
Não deixa de ser interessante que a poucas horas de realizar-se o nosso sonho
mais ambicionado, recorde a figura de meu pai.
Evoco o seu modo empenhadíssimo de passar a vida dando ordens, prescrevendo
incansavelmente o que os outros deveriam fazer para que tudo estivesse sempre como
ele queria.
- «Não me enganes, mostrengo! A verdade acima da mentira!» - assim me gritava!
E punha uma ênfase especial nestas frases quando, por exemplo, por querer brincar
com ele, eu lhe escondia quem arredara uma cadeira do seu devido lugar!
Durante estas inevitáveis exasperações racionais, ele tinha um jeito ternurento de
cerrar os dentes e arregalar os olhos injectados. Então, adorava-o mais do que nunca!
Infelizmente, o coração desse homem já deixou de resistir aos ímpetos de tanta verticalidade.
Só Deus sabe a falta que me faz! Inspirei-me na sua memória para me tornar
adulta e hoje sinto um orgulho lógico quando encontro quem me reconhece como a
legítima continuadora das suas ideias. Esses, que tão criteriosamente assim me julgam,
são os pouquíssimos amigos, os privilegiados que me visitam, as raras pessoas
que me merecem.
Herdei de meu pai uma herança rica até em bens espirituais e muito tenho obstinado
por ser digna dela. Que o consegui, não há dúvidas. Isso chega-me! Mas, apesar
desta serenidade ainda me deixo tomar por aflições (e arrelias, julgo) quando deparo
com alguns factos característicos deste mundo cada vez mais louco e insensível aos
grandes valores. Aquele que eu vi morrer teve a inteligência suficiente para, antes
desse acontecimento funesto, orientar a minha educação nas direcções mais convenientes.
A principal foi sem dúvida a de forçar a minha curiosidade natural a interessar-
se pelo país de Êta Silhueta-Doce, o Incompreendido, Salve-o Deus Com o tempo,
vi essa curiosidade e interesse transformarem-se em avidez. Não me importei com
semelhante modificação. Antes fiz e tenho feito questão de mantê-la pujante e incorruptível.
No entanto, dada a escassez de elementos disponíveis sobre aquele país,
quão difícil tem sido saciar esta sede de conhecimentos! Imagine-se a frustração ao
longo de todos estes anos! Até já pus a hipótese de as notícias sobre o assunto estarem
a ser ignominiosamente abafadas. Como a minha roda de amigos carece de visitantes
daquelas paragens; como rareiam quer livros ou estudos recentes traduzidos,
quer filmes documentando a fascinante realidade dessa terra, sou obrigada a cingir-me
quase exclusivamente ao espólio legado por meu pai. Só em última instância recorro
aos referentes «diz-se que» ou «consta que», etc. Enfim, adquirir informações seguras
e fidedignas sobre o país de Êta Silhueta-Doce, o Incompreendido, Salve-o Deus é tão
difícil como coleccionar as polainas ou os chicotes do homem que há muitos anos se
empenhou em civilizar aqueles territórios: o Imortal Liberto-Unificador.
Não sei! O certo é que tenho suportado e (sem falsa vergonha o digo) continuo a
suportar tamanha situação de injustiça. Nem se percebe tal coisa! Atractivo não é só
Êta Silhueta-Doce, o Incompreendido, Salve-o Deus – os seus correligionários e população
em geral são o próprio futuro personificado!
Que até os mais cépticos acreditem: estou na disposição de tudo fazer para eliminar
a indiferença e desprezo que recai sobre aquela terra!

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