sábado, 9 de junho de 2007

O Evangelho de Sri Ramakrishna, de M. (Mahendranath Gupta)

NA HISTÓRIA DAS ARTES, o aparecimento de um gênio é um acontecimento muito raro. Mais raros, entretanto, são os relatores e historiadores competentes desse gênio. O mundo tem tido muitas centenas de poetas e filósofos admiráveis, mas dessas centenas somente alguns tiveram a sorte de atra-ir um Boswell ou um Eckermann.
Quando abandonamos o campo da arte para o da religião, a escassez de escritores competentes é ainda mais fortemente marcante. Pouco conhecemos do quotidiano dos grandes santos e contempla-tivos, sendo que na maioria dos casos, nada sabemos. Muitos, é verdade, deixaram sua doutrina escri-ta, mas poucos, como Sto. Agostinho, Suso e Sta. Teresa deixaram autobiografias do maior valor. To-do escrito doutrinário é, contudo, de uma certa maneira, formal e impessoal, enquanto que o autobió-grafo tende a omitir aquilo que olha como assuntos triviais e sofre a desvantagem posterior de ser in-capaz de dizer como ele lida com as pessoas e de que maneira isto afeta suas vidas. Além disso, a mai-oria dos santos não deixaram nem escritos, nem retratos seus e para conhecermos de suas vidas, cará-ter e ensinamentos, somos forçados a confiar na palavra de seus discípulos que, na maioria das vezes, provaram ser singularmente incompetentes como repórteres e biógrafos. Daí o interesse especial liga-do a esta narração detalhada da vida diária e conversas de Sri Ramakrishna.
“M”., como o autor modestamente intitulava-se, era especialmente qualificado para esta tarefa. Ao amor reverente pelo seu Mestre, ao conhecimento profundo e experimental dos ensinamentos do Mestre, acrescentou uma memória prodigiosa dos pequenos acontecimentos quotidianos e um feliz dom para relatá-los de maneira interessante e realista. Fazendo bom proveito de seus dons naturais e das circunstâncias nas quais se encontrava, “M”. produziu um livro ímpar, até onde vai meu conhecimento, na literatura da hagiografia. Nenhum outro santo teve um Boswell tão capaz e incansável. Jamais os pequenos acontecimentos da vida diária de um contemplativo foram retratados com tal riqueza de detalhes íntimos. Jamais as afirmações casuais e espontâneas de um grande instrutor religioso fo-ram escritas com tanta fidelidade minuciosa. Para os leitores ocidentais, é verdade, essa fidelidade e riqueza de detalhes podem parecer um pouco em desarmonia, pois os modelos sociais, religiosos e intelectuais nos quais Sri Ramakrishna moldou seu pensamento e expressou seus sentimentos, eram inteiramente hindus, mas depois das primeiras surpresas e espantos, começamos a encontrar algo esti-mulante e instrutivo a respeito dessa própria estranheza e, a nossos olhos, a excentricidade do homem nos é revelada na narrativa de “M”. O que um filósofo escolástico chamaria de “acidentes” da vida de Ramakrishna, foram essencialmente hindus e por conseguinte, no que diz respeito ao Ocidente, não familiares e difíceis de serem compreendidos; na sua “essência” contudo, era intensamente mística e portanto, universal. Ler completamente estas conversas nas quais a doutrina mística alterna-se com uma espécie inusitada de humor e onde discussões sobre os aspectos mais estranhos da mitologia hin-du, dá lugar às afirmações mais profundas e sutis sobre a natureza da Realidade Suprema, é em si mesmo uma lição liberal de humildade, tolerância e cautela no julgamento. Temos de ser gratos ao tradutor por sua excelente tradução de um livro tão singular e agradável, como um documento biográ-fico, mas ao mesmo tempo, tão precioso pelo que nos ensina sobre a vida do espírito.

Aldous Huxley

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