[Texto publicado no livro Faraimará - o caçador traz alegria, organizado por Cléo Martins e Raul Lody. Rio de Janeiro, Pallas, 2000, págs. 174-184.]
Nas mais diferentes culturas, a concepção religiosa da morte está contida na própria concepção da vida e ambas não se separam. Os iorubás e outros grupos africanos que formaram a base cultural das religiões afro-brasileiras acreditam que a vida e a morte alternam-se em ciclos, de tal modo que o morto volta ao mundo dos vivos, reencarnando-se num novo membro da própria família. São muitos os nomes iorubás que exprimem exatamente esse retorno, como Babatundê, que quer dizer O-pai-está-de-volta.
Para os iorubás, existe um mundo em que vivem os homens em contato com a natureza, o nosso mundo dos vivos, que eles chamam de aiê, e um mundo sobrenatural, onde estão os orixás, outras divindades e espíritos, e para onde vão os que morrem, mundo que eles chamam de orum. Quando alguém morre no aiê, seu espírito, ou uma parte dele, vai para o orum, de onde pode retornar ao aiê nascendo de novo. Todos os homens, mulheres e crianças vão para um mesmo lugar, não existindo a idéia de punição ou prêmio após a morte e, por conseguinte, inexistindo as noções de céu, inferno e purgatório nos moldes da tradição ocidental-cristã. Não há julgamento após a morte e os espíritos retornam à vida no aiê tão logo possam, pois o ideal é o mundo dos vivos, o bom é viver. Os espíritos dos mortos ilustres (reis, heróis, grandes sacerdotes, fundadores de cidades e de linhagens) são cultuados e se manifestam nos festivais de egungum no corpo de sacerdotes mascarados, quando então transitam entre os humanos, julgando suas faltas e resolvendo as contendas e pendências de interesse da comunidade.
O papel do ancestral egungum no controle da moralidade do grupo e na manutenção do equilíbrio social através da solução de pendências e disputas pessoais, infelizmente, não se reproduziu no Brasil. Embora o culto ao egungum tenha sido reconstituído na Bahia em uns poucos terreiros especializados, o candomblé de egungum da ilha de Itaparica (Braga, 1992), mais tarde também presente na cidade de Salvador e em São Paulo, está muito distante da prática diária dos candomblés de orixás e praticamente divorciados da vida na sociedade profana, perdendo completamente as funções sociais africanas originais, de tal modo que a religião africana no Brasil, disseminada pelos terreiros de orixás, acabou por se constituir numa religião estritamente ritual, uma religião a-ética, uma vez que seus componentes institucionais de orientação valorativa e controle do comportamento em face de uma moralidade coletiva exercitada nos festivais dos antepassados egunguns ausentaram-se completamente da vida cotidiana dos seguidores da religião dos orixás.
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