segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Balanço: livros sem texto

Ganharam peso nas estantes os álbuns sem texto dedicados à infância. Não se destinam necessariamente aos primeiros leitores mas, como todos os bons livros, podem começar a ser explorados a partir da mais tenra idade.

Iela Mari

A’O Balãozinho Vermelho, de Iela Mari, editado pela Kalandraka, juntaram-se A Árvore (Iela Mari) e O Ovo e a Galinha (Iela Mari e Enzo Mari) ambos editados pela Sá da Costa e descobertos na Feira do Livro de Lisboa. A boa notícia chegou quando a livraria da Sá da Costa reabriu, no Chiado, e os livros voltaram a estar disponíveis, não só estes dois mas também A maçã e a lagarta, o que nos permitiu completar a ‘colecção’. Para além dos preços apetecíveis (€3,50), ficámos ainda a saber que os volumes serão reeditados.
São clássicos da literatura para a infância, e na ilustração o leitor reconhece os passos narrativos, as elipses e os ênfases que tornam um esqueleto lógico num universo maravilhoso. O rigor dos contornos e das gradações cromáticas, bem como a temática da transformação, não limitam estes livros a uma condição científica ou sequer didáctica. São, isso sim, um paradigma artístico de um princípio filosófico: o tempo.
Comprovámos a pertinência de O Balãozinho Vermelho em Torres Vedras. Apresentávamos o livro ao grupo de mães que participava na Arte da Leitura. Desafiávamo-las a descobrirem em que se transformava o balão, a cada nova página. A medo, as adultas começavam a dar azo à imaginação quando uma menina de sete anos, filha de uma participante, se começou a interessar. Daí a aproximar-se de nós e monopolizar o jogo foi um pulo…

Onde está o bolo?
Thé Tjong-Khing
Caminho

Foi um dos livros do ano, para nós. Já falámos dele noutros momentos. É um álbum cativante, impossível de abandonar antes de responder ao desafio do título. Mas, tal como acontece numa emocionante história de acção, não nos cingimos aos acontecimentos principais. Começamos a prestar atenção e a desejar resolver outros mistérios secundários, que se relacionam entre si e com as personagens e acções do eixo narrativo central. Por isso, para além de perseguirmos os ladrões ratos na sua fuga com o bolo dos cães, suspendemos a respiração quando o porquinho cai da ravina, ou interrogamo-nos sobre o que terá sucedido à gata para ter uma ferida no nariz. Tudo isto sem uma única palavra, mas com páginas duplas que descrevem cada passo da narrativa numa pluralidade de personagens animais, objectos e movimentos que obrigam à releitura. Com este álbum aprender a ler é aprender a observar, e isso significa desenvolver, empiricamente, um ritmo adequado à apreensão da informação. O leitor pode ler uma página na totalidade, ou seguir cada personagem, reiniciando a leitura com um novo animal e novos acontecimentos. E é certo que haverá pormenores que nos escapam… A exploração deste álbum aproxima-se da leitura de BD, porque é no pormenor do desenho, num elemento mínimo propositadamente relegado para um canto da página, ou num mero contorno, ou numa forma incompleta, que se lê e desvendam outros níveis de leitura, os tais que compõem a teia narrativa. Como na BD, os olhos não seguem a geométrica regra da configuração gráfica do texto (de cima para baixo, da esquerda para a direita). A exigência pictórica está também em conseguir ler sem essa orientação, em busca de algo que à partida se desconhece.

Ah!
Josse Goffin
Kalandraka

A Kalandraka volta a apostar nos livros sem texto, agora com dois volumes, Ah! e Oh!. Mais uma vez, tal como acontece com os exemplos anteriores, estes álbuns prestam-se a uma mediação fácil e fértil em motivações distintas. Mas são também objectos que dialogam com os leitores sem necessitarem de mediadores. Em cada página dupla está uma imagem desenhada (pode ser um objecto, um animal, um fruto…) com uma única cor. Mas, quando desdobramos a folha da direita, percebemos que a parte que permanece na página da esquerda dá lugar a uma nova forma. Virar as páginas são duas descobertas. As fotografias de objectos de arte, que constam no interior da página dobrada são, por assim dizer, o elemento estranho, que se destaca pela diferença gráfica que denota, relativamente aos tons sempre monocromáticos das imagens desenhadas a lápis de cor. Para além daquele elemento estranho, que terá uma relação com o desenho, há ainda uma pista: o elemento que vai aparecer na página seguinte dobrada, consta da anterior, num plano mais discreto, e na cor alternada que ora aparece na página exterior, ora na interior (amarelo torrado e azul). A aproximação ao desenho infantil, delineado pelo ilustrador através da escolha da cor e da técnica ajuda ao processo de identificação e apropriação. Assemelha-se ao pacto narrativo, que acontece na ficção e implica que o leitor aceite acreditar na história que o escritor lhe conta através do seu estilo, das suas personagens, dos locais que visita, do seu narrador…

Pontos em comum

Em comum estes álbuns têm o ingrediente surpresa, que desperta a curiosidade e motiva para a leitura. Seja pela noção de puzzle que as ilustrações macroscópicas de O Ovo e a Galinha sugerem, seja pela decifração das formas vermelhas que flutuam no ar em O Balãozinho Vermelho, seja pelo desafio do título Onde está o bolo?, seja pelo desdobrar das páginas em Ah!
Em todos eles podemos contar uma história, fazer exercícios de previsão, produzir juízos de valor ou afectivos, escolher uma perspectiva e dar-lhe continuidade… Em todos, a narratividade e a plasticidade podem ser explorados. Finalmente, todos nos convocam e nos colocam desafios, a nós, adultos leitores, provando que a literatura para crianças, quando é literatura, não tem tempo nem destinatários exclusivos.

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