domingo, 12 de abril de 2009

EM PRIMEIRA MÃO: "A Dama Negra da Ilha dos Escravos" de Ana Cristina Silva

Leia, em exclusivo, o primeiro capítulo de:

I

E se, ao chegar ao paraíso, Deus for preto? Esta imagem, de tão ímpia, dá vontade de rir. Não te benzas, Lourença. Não há necessidade de fazer má cara. Que horas são? Aproxima-se a hora da janta. Pede a Maria das Chagas que te traga comida ao quarto. Suplico­-te, minha doce sobrinha, hoje não te vás embora para a tua casa. Gostaria que permanecesses comigo a noite inteira. Traz aquela cadeira para junto da cama e senta-te. Providencia também uma manta porque as noi­­tes ainda estão frias. Quero contar-te tudo antes da chegada do fim das coisas. A urgência deste tempo que se esgota arrasta-me para um excesso de dúvidas sobre o que fiz da minha vida.
Dizes que ninguém pode saber quando se morre. Dizes bem, minha sobrinha, mas na tua idade todas as palavras sobre a morte abusam dos lugares-comuns. Podes vir a morrer de amor, sentires­-te a morrer de tédio ou simplesmente estares a morrer de sono, mas, ao empregares esse verbo com tamanha leviandade, usa-lo de facto inspirada por uma forma de vida. Já não disponho de muito tempo. Estou ciente de que em cada batida do meu coração há uma aproximação à morte.
Ainda não há muito, quando pensava no meu próprio fim, fazia­-o como um piloto despreocupado quanto a si mesmo, temendo mais pela sorte dos passageiros desta casa do que pelo meu destino. Julgava-me preparada para enfrentar a gadanha da morte, mas na verdade mentia a mim mesma, ainda que com mentiras exactas à sua maneira. Há anos que me esforço por coordenar os pensamentos com as fraquezas de uma idade avan­çada. Tento infundir no meu espírito uma certa anuência à inevi­­tabilidade da minha partida. Mas não me conformo! Fui acaute­lando os preparativos para a morte, organizei tudo menos a minha própria vontade. As meditações sobre a vida não ajudam a morrer, podendo mesmo tornar a saída mais difícil. Sobretudo quando, ao refazeres em espírito os caminhos per­corridos, não dispões de cer­­teza alguma sobre se o que aconteceu foi realmente idêntico ao que desejaste que tivesse acontecido.
Durante a tarde escutei os salmos consoladores das boas freiras que, na antecâmara, têm velado piedosamente a minha agonia. Se elas conhecessem verdadeiramente quem foi D. Simoa... Pelo menos já se retiraram para o seu convento para rezarem as vésperas. Ao escutar as suas orações, invade-me uma saudade profunda como o mar. Se não fosse razão de escândalo, mandava chamar as escravas da cozinha e pedia-lhes que dançassem para mim ao som de tam­bores. Sinto vontade escutar as vozes da minha infância, aqueles coros de vozes negras que se elevavam no terreiro da sanzala, subindo ainda mais para soarem em ritmos sucessivamente mais inebriantes. Não me olhes assim, Lourença, nem fales comigo nesse tom tão baixo. Ainda não estou morta...
Nasci preta, mas as vozes do povo de Lisboa asseguram que a minha alma de tão pura só poderá ser branca. Como se um espírito, a despeito da ausência de substância, pudesse mesmo assim pro­jectar uma categoria racial. Sou descendente de príncipes negros do reino do Benim, mas consegui que os mais altos dignitários bran­cos deste reino se vergassem a meus pés. Fiz na minha vida coisas mara­vilhosas. Porém, sobretudo nestas últimas semanas, tem pairado sobre mim o espírito de um fantasma arrependido, que me repete obsessivamente que terei atraiçoado o mais importante.
É curioso notar como, ao envelhecermos, o tempo deixa de se reger pelo calendário normal e os dias, revolvendo fundo a memó­­ria, se põem a deslizar ao encontro de um passado remoto. Os inci­dentes do quotidiano parecem-me menos reais e bem menos rele­vantes do que as recordações da minha infância em S. Tomé. À primeira vista, a criança robusta que corria nas roças de açúcar do meu avô prossegue ainda, correndo velozmente. A imagem de mim em menina parece-me bem capaz de continuar a percorrer muito mato. Quase acredito que possa ser assim, mas essa possibilidade não é mais do que uma prece, como se Deus pudesse ainda laborar um secreto milagre. Por isso te suplico, Lourença, acende mais umas velas e fica comigo esta noite. Antes de todas as palavras serem devo­­radas pela planura do silêncio, talvez uma resposta desperte devagar e se alimente das histórias que te vou contar.
Como eu desejava ver de novo a ilha, inebriar-me uma derradeira vez com o seu aroma. Em nenhum outro lugar a terra exala essa mis­tura de odores a chuva e a espessa argila, cuja recordação ainda me invade os sentidos. A ilha de S. Tomé apresenta uma tonali­­dade única. A terra é de cor avermelhada e amarela, gorda com greda forte. Lá as árvores nunca perdem a folha, são enormes e variadas, muito grossas, direitas e altas. De todo o lado, para grande proveito dos olhos, se avistam florestas cerradas, com árvores que parecem tocar o céu e campos onde os deuses foram acrescentan­­do paisagens imaginadas para demonstrar todas as cores do mundo. A luz também é diversa, porque o sol tem de atravessar um longo céu carregado de neblina. Na fazenda de Rio do Ouro de meu avô, vi muitas vezes o sol a debater-se por entre a densidade das nuvens, investindo lentamente contra o cume do Pico do Mocambo. Pensei várias vezes que o sol atravessava os céus à procura dos locais onde o ar era mais límpido. A terra avermelhada de S. Tomé é o lugar do meu nascimento, pois foi lá, na ilha dos escravos, que lancei o meu primeiro olhar inteligente sobre as coisas.
Sobre o cenário da ilha sobrepõem-se imagens remotas, em difusas refracções da memória. Recordo o moinho de açúcar da roça de Rio do Ouro rodando interminavelmente ao ser movido pela pul­sação regular das águas da ribeira. Imagens evanescentes onde o tempo retrocede. Os escravos trabalham arduamente, exibindo dorsos nus, cintilantes de suor. Moem a cana, deitam o suco em cal­deiras grandíssimas. Após fervido, irão lançar o suco sob a forma de pães gigantescos para de seguida o purificarem com cinzas. Passando das horas aos dias, o tempo prolonga-se na monótona repetição dos mesmos gestos pelos escravos, que refazem as mes­míssimas tarefas de sol a sol. Bruscamente, o cansaço podia trans­formar-se em agonia, quando o feitor do avô se lembrava de dilacerar as costas de um deles com o chicote.
O tempo detém-se nestas imagens que acompanham a minha infância. Crescem as incoerências da memória e as personagens mis­tu­­ram-se, mas lembro-me bem daquela tarde, teria eu quatro anos, em que vi um dos escravos cair desfalecido, arquejando de bar­riga para baixo, sem forças. O feitor aproximou-se de chicote em riste, arremetendo contra ele, como se cada vergastada fosse uma vin­­gança pela sua própria condição de desterrado naquela maldita ilha. O negro não fez o menor esforço para se levantar, dando ideia de procurar na morte um abrigo para se libertar dos seus infortúnios. Estabeleceu-se um silêncio tenso quando o feitor finalmente se afas­­tou. Uma escrava, talvez uma das suas mulheres, debruçou-se sobre o homem ensanguentado e ouviu-se um grito sentido. A vida escoara-se daquele corpo ainda jovem, que não se detivera em outro pensamento senão o de morrer. Os gritos daquela mulher debru­çada sobre o negro morto persistem ainda lancinantes num canto remoto do meu espírito.
Sim, Lourença, deves benzer-te, pois a ganância tem efeitos dura­doiros na violência dos homens sobre outros homens. Duvido que toda a caridade cristã consiga suprimir a escravatura. Bem vejo como Frei Belchior tenta dissuadir a minha vontade de dei­­xar forros os escravos da minha casa. Ele bem pode tentar, mas fiz uma jura que os libertaria. Seria de esperar que ao menos os repre­sentantes da Igreja, que tanto se indignam com os crimes contra a fé, interviessem contra essas monstruosidades praticadas por pes­soas de bem, que Deus não pensa em inquietar. Até parece que as inclinações evangélicas das ordens religiosas se moldaram extraor­dinariamente à vontade dos poderosos.
Em todo o caso, todas estas recordações se revelam incertas, tal­vez falsas nos pormenores, mas verdadeiras no conjunto. Corro o risco de conservar da minha infância imagens construídas a par­tir de lembranças sobrepostas. Não tenho a certeza se aquele escravo, que aos quatro anos vi morrer chicoteado, terá sido o pri­meiro dos muitos cadáveres negros que me atravessam o espírito. Recordo com mais precisão os gritos da minha avó, Ana Fernandes, chamando-me para calçar os sapatos, antes de o meu avô regressar da fazenda do Rio do Ouro.
Nas roças e na Povoação1, os locais onde vivi em pequena, con­vergiam os mundos inconciliáveis do meu avô e da minha avó. No mundo do meu avô, Manuel Fernandes, observava-se com rigo­roso zelo os mandamentos do Senhor. O seu espírito era povoado, em deli­­cado equilíbrio, por anjos e demónios, que se espiavam uns aos outros para que fossem acautelados os pecados de toda a família. Terríveis visões, com sangrentas imagens do apocalipse, mareja­vam-lhe os olhos de lágrimas sempre que lia a Bíblia. Ele fora uma das crianças judias trazidas pelo Capitão Donatário Álvaro Cami­nha no final do século passado, tendo chegado a S. Tomé com oito anos. As suas memórias da família e de Portugal eram escassas. Não conservava da mãe mais do que uma ténue lem­bran­­ça do seu rosto alongado de espanhola. A recordação desse rosto, marcado por uma doçura melancólica desde a fuga de Castela por causa do édito de expulsão dos judeus, estava ligada à danosa heresia dos seus ante­passados. Aliás, quase o esquecera, esforçando­­­-se por preservar a aura da criança que, em Lisboa, fora levada ao baptismo como um sinal de que estaria predestinado a submeter­­-se aos desígnios da fé verdadeira. Não se atrevia a macular essa noção, aliás confusa no seu espírito, com a figura de uma mãe que não passava de um fantasma. Já eu era mulher feita quando soube da sua ascendência judaica, pois o avô recusava-se a mencionar as suas origens verdadeiras. É fácil esquecer, nunca esque­­cendo...
O avô também raramente se referia à sua viagem por mar até à ilha. Ele, juntamente com algumas centenas de crianças, havia sido encafuado no porão de uma caravela à guarda de dois frades dominicanos. Muitos dos seus pequenos companheiros falece­­ram durante a travessia e muitos mais continuaram a morrer em terra com as sezões que os brancos apanham mal passam a linha do equador. Ainda hoje não consigo imaginar como poderá resistir a alma de uma criança que, depois de arrancada aos braços da mãe, é metida numa caravela e atravessa meio mundo até chegar a uma ilha estranha. Mas o avô sobreviveu, barrando essas histórias antigas, desviando-as, para que não lhe assombrassem a existência.
Essa experiência, já de si marcante, degenerou em provas ain­­da mais tremendas durante os primeiros meses que passou em S. Tomé. Na época em que o avô chegou à ilha, a Povoação pouco mais era do que um pequeno aglomerado de primitivas constru­­ções de madeira e todos os homens válidos, acompanhados pelos res­­pectivos escravos, se ocupavam arduamente no desbaste da flo­­resta para o cultivo da cana. As preocupações dos colonos excluíam as crianças, delegando a sua protecção na misericórdia divina. Haviam chegado à ilha várias centenas de infantes, meninos e meninas de tenra idade. Todos os dias morriam às dezenas. Os Domi­­nicanos, encarregues de zelar pelas suas pequenas almas, tiveram de socorrer-se de escravas para deles cuidar. Mas as negras pen­savam que as crianças brancas eram espíritos de Órun2 e recitavam evocações ao sol em vez de as alimentarem. Os frades desfaziam-se igualmente em orações e todos os pecados banais se lhes afiguravam mais execráveis ao verem tantas almas inocentes subirem diariamente aos céus. Entretanto, entre rezas e missas, continuavam a fale­cer crianças de fome ou de febres mortais.
Neste cenário, o meu avô foi dos poucos que teve sorte. Frei Jorge de Melo, frade superior da minúscula congregação, acolheu­­­-o em sua casa. Esse frade, gasto pela oração e pelo combate à here­sia, mais parecia um velho, apesar de contar pouco mais de trinta anos. A pequena casa de madeira do dominicano era um refúgio para o meu avô, conseguindo ali libertar-se das suas recordações. Naquela casa sentia-se livre do medo, da fome e da incerteza. Antes de as sezões o matarem, Frei Jorge teve tempo de ensinar o meu avô a ler e a escrever em latim. Mas, acima de tudo, preocupou-se em ensi­nar o seu jovem discípulo a proteger-se das tentações imper­tinentes, heréticas ou simplesmente ímpias. Poderiam viver no fim do mundo, mas o dedo de Deus chegava a todas as latitudes e, em local algum, a impiedade seria tolerada. «Era comum que as acções dos homens», explicava-lhe o frade, «se fragmentassem numa poeira de minúsculas tentações menores, mas, por junção de todas elas, as melhores virtudes acabavam convertidas nos mais danosos vícios.» O meu avô assimilara os ensinamentos do frade e tomava­-os como verdadeiros, na medida em que ele fora o único que o impe­­dira de morrer.
«Só a alma e a consciência do bem contam nesta vida precá­ria.» O meu avô, quando eu era pequena, utilizava comigo as mesmas frases que ouvira a Frei Jorge, muitos anos antes, para me fazer obe­­decer às suas ordens. As palavras daquele dominicano haviam­­­­­-se enraizado no seu espírito como o único escudo possível contra as emboscadas do mundo. O abandono da sua mãe seria imper­­doável e a morte dos seus pequenos companheiros teria sido vã se não exis­tissem no mundo princípios superiores que des­­mantelas­­sem as armadilhas do destino. Compreendia dessa forma as suas obri­gações de sobrevivente e abrigava-se nas orações, como um homem que pro­cura escapar a uma fortíssima tempestade que inevita­velmente chegará.
A influência do frade na vida do meu avô, ainda que predo­­minante, não foi, todavia, a única. Os princípios espirituais, forço­sa­­mente pela sua natureza frios e imateriais, vacilavam no seu rigor quando uma das escravas do frade, de nome Anastásia, se vinha enroscar no seu catre. Frei Jorge morreu quando o avô tinha apenas doze anos, antes de ter tempo de aprofundar devidamente as matérias relativas às fraquezas da carne. Com aquela morte súbita, o avô ficou livre para saborear os ilícitos prazeres carnais com as negras, como se fazer amor fosse outra forma de bênção e não uma afinidade contrária às leis do Senhor. Não testemunhei, como é evidente, as desventuras de infância do meu avô. Sobre esses anos longínquos do princípio do século, relato apenas conjecturas a partir do que a imaginação concebe.
Se queres saber, Lourença, em relação a estas questões carnais, toda essa benzedura me parece excessiva. Custa-me saber, pelo muito afecto com que te guardo no meu coração, que, quando casa­res, pro­vavelmente virás a ser umas daquelas damas que, após um cerimo­nial interminável, se sacrifica a uma imobilidade total debaixo do seu esposo, rogando pelos favores de Deus. Bem sei que os machos e fêmeas desta terra se desfrutam enfarpelados em cami­sas com­pridas, enrolando-se uns nos outros como as toupeiras de­baixo do pêlo. Durante a função apelam ao nome dos santos, gri­­tando em altíssimos brados apenas quando esses santos podem ser associados a martírios ou a sacrifícios pungentes. Posso afirmar­­­-te, minha filha, pelo muito respeito que tenho à verdade, que, com o teu tio, nunca tive de suportar semelhantes provações, nas quais os homens rangem durante o acto como amarras pregadas aos panos do colchão em vez de fazerem amor.
Faça-se então a tua vontade. Deixemos de lado estas conside­ra­ções pecaminosas e retomemos o fio da história. Quando o frade morreu, o meu avô teve de se fazer homem sozinho, mas acreditou sempre que tendo Deus do seu lado se libertaria dos piores infor­túnios. A segurança de se poder apoiar de forma estável numa força superior foi um logro, no sentido em que nunca o libertou. Os seus múltiplos temores acabaram por fazer dele um homem mais sub­­misso do que os outros, ainda que ele desconhecesse a verdadeira natureza dessa servidão. Aos olhos dos colonos brancos da Povoação, passava por um homem astuto, enérgico e cheio de iniciativa, que conseguira enriquecer desbastando enormes extensões de floresta, deitando fogo a milhares de obós3 para criar roças de açúcar. A sua condição de menino de Frei Jorge trouxera-lhe benéficos contactos com os vários oficiais de el-rei e da Câmara, ganhando a concessão de vastas terras onde passavam cursos de água claríssima. E, no entanto, até certo ponto o avô terá sido sempre um homem perdido numa sensação de infinita solidão. O seu espírito fora ferido quando era ainda demasiado novo, tendo ficado retido numa obscura angústia, conquanto tal obscuridade lhe providenciasse, através da fé católica, vastas certezas sobre a natureza da virtude e da ini­­qui­dade. Bastavam-lhe dois ou três preceitos simples: consi­derava ser acção de homem justo cumprir os mandamentos da Santa Madre Igreja; Deus ordenava que as mulheres e as filhas devessem obediência aos respectivos maridos ou aos pais, e por aí fora no que respeita às hierarquias sobre escravos e restantes serviçais. Estes princípios, ao tomarem um carácter rígido, protegiam o avô; sem eles a vida seria imprevisível e certamente pouco favorecida como lhe acontecera na infância.
A minha avó, por seu lado, era a mulher da tribo, a encarnação de um mundo sagrado onde as energias de Órun e Aiye4 coexistiam, num complexo torvelinho, sobrepondo-se em círculos infinitos de tempo. Esse mundo, visto como tenebroso pelo marido, era ocu­pa­­do por milhares de mortos e de vivos, estes últimos tão perdidos como os mortos, pois que todo o porvir implicava a colaboração de algum espírito do passado. Sendo descendente de reis, os escravos evitavam-lhe o olhar. A sua mãe fora sobrinha-neta do grande Ewaré-o-Grande do Benim e o seu sangue real fizera-a detentora de um estatuto sagrado que terá passado à filha. Os escravos vindos desse reino sabiam-no e, como se simulassem naquela casa uma corte em África, ninguém se atrevia a usar um trapo ou a deixar crescer o cabelo sem que a avó o autorizasse. Apesar de ter vindo para a ilha ainda criança, a mãe educara-a nos costumes do seu povo. O pai, traficante de escravos oriundo da Aldeia das Duas Partes, ao chegar a S. Tomé, aceitara baptizar a família para facili­­tar as relações comerciais com os portugueses, mas não abando­nara as suas crenças ancestrais. Com a mesma fé com que os colonos rezavam terços na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Graça, ele, as mulheres — apesar de só uma ser apresentada como legítima — e os filhos, quando iam à missa, dirigiam as suas preces ao Sol. A família apenas na aparência adoptara os nomes e os modos de vida ocidentais. O meu bisavô sempre se manteve bígamo e um adorador do Sol o que, naturalmente, faria dele um apologista assaz comprometido da mensagem cristã. Aliás, várias foram as intri­gas de alguns colonos que, despeitados com os seus lucros extraor­di­­ná­rios, o acusavam de não respeitar os Evangelhos. Mas na ilha as Sagra­das Escrituras nunca foram, como aqui em Lisboa, um assunto de ordem pública.
Quando exercemos este encargo de trocarmos a nossa vida por palavras, sempre se perde o essencial. As imagens misturam-se numa gravitação de memórias reais, imaginárias e duvidosas, as quais, porventura, configuram o malefício de esquecermos o mais impor­tante. Recordo as tardes infindáveis da minha infância. O céu, sempre carregado de uma neblina de calor, colada por assim dizer à terra, ondulava sob o efeito de uma brisa sufocante. O ar húmido e pesado tornava-se impeditivo de todo e qualquer movimento. Os colo­nos brancos haviam aprendido a abandonar-se àquela espé­cie de doçura que é a preguiça, começando a adoptar hábitos mais lentos.
Na Povoação ganhara-se o costume de se passar as tardes tórri­das nas casas de uns e de outros. Quando calhava ser a nossa, a avó, para entreter as visitas, contava antigas lendas africanas ou descrevia os funerais dos grandes reis. Parece-me ainda ouvi-la, com a sua voz grave e rouca, narrando que, quando o rei morria, todo o povo se ajuntava num grande campo para abrirem um poço muito largo e fundo que ia apertando para a boca. Ao sepulcro descia não apenas o corpo do rei, mas também os seus amigos e criados, considerados os mais caros e favoritos do defunto. Logo que todos estavam em baixo, punha-se-lhe uma grande pedra na boca do poço e o povo não se retirava dali, nem de dia nem de noite. À luz das fogueiras, os corpos dos homens e das mulheres que velavam a sepultura pareciam rochas retorcidas de uma paisagem de sombras. Todas as noites alguns deputados descobriam a pedra e perguntavam aos de baixo se algum deles já tinha ido servir o rei. Os sacrificados iam partindo um a um, sendo reputado coisa de grande louvor ter sido o primeiro a morrer. Por volta da quinta noite, às perguntas dos deputados só era devolvido um imenso silêncio, porque lá em baixo já ninguém tinha voz ou fala, e todos haviam encarnado a imobilidade de um espírito junto ao Sol. Rajadas de vento faziam alastrar um cheiro enjoativo a cadáver, inundando as narinas das testemunhas. O mundo da morte trazia consigo a continuação do mundo dos vivos, já que esse constituía o sinal para o início de um outro reinado. O novo soberano era de imediato empossado, mandando fazer um grande fogo sobre o poço, em que eram assados muitos animais para serem comidos pelo povo. As cores escuras da noite brilhavam mais claras por entre as fagulhas de imensas tochas, enquanto o rei se consagrava coroado.
Relatos deste género, pródigos em pormenores, arrepiavam os convidados, horrorizavam o avô, mas envolviam a minha avó numa espécie de aura sagrada. Ninguém se atrevia a interrompê-la en­quanto ela falava. As personagens das suas histórias alcançavam prodígios inimagináveis e júbilos atrozes, soletrando-se através da narrativa todos os reflexos possíveis das almas humanas. Dava ideia de se estar na presença da voz divina de uma sacerdotisa que ia con­­­­templando um estranho desfile de acontecimentos alusi­vos a enre­­dos míticos, os quais iluminavam as mais diversas aparências do ser. Havia reis traídos, espíritos perdidos nos labirintos da eter­ni­­dade e amantes desditosos que, depois de se terem separado, se encon­­travam de novo para agonizarem nos braços um do outro.
Passavam-se assim as tardes: as bilhas de vinho sucediam-se às bilhas de água, o riso desabrido de uma escrava esguichava aqui e ali numa passagem mais cómica e, quando anoitecia, cantavam-se canções avinhadas. A avó estava ciente de que os feitos das suas per­­sonagens configuravam as impressões que ela desejava causar na audiên­­cia. Cada uma das suas palavras continha uma formulação mágica que constituía a sua maneira de transmitir o espanto, a exaltação, a traição, a ameaça ou o júbilo. E sempre com uma ligeira magnificação que alterava a trivial natureza das coisas. Quanto ao avô, preferiria, sem dúvida, não ter de tomar conhecimento des­­ses enredos propiciatórios à heresia que grassavam no espírito da mulher.
Perguntas bem, Lourença... Como é que duas criaturas tão dis­tintas em cor e modos de pensar puderam contrair matrimónio, tendo sido, diga-se de passagem, e deveras a propósito, abençoa­­dos pelo próprio padre da Povoação. Para fazer crescer as nossas dúvidas, há que mencionar que na altura os casamentos sacramen­­tados entre elementos das duas raças eram raros. Casar era um passo muito para além dos habituais concubinatos. Desconheço as cir­cunstâncias do seu noivado e, nessa medida, tudo o que possa con­­jec­turar não passa mais uma vez de especulação... Estou em crer que cada um procurava no outro variações num mundo de dife­renças e o contrato de matrimónio constituiu para o avô e para a família da avó um auspicioso negócio. O meu avô, como já men­cionei, gostava de mulheres de cor, ou melhor, numa versão de sonhador talvez imaginasse uma discreta e elegante dama preta, vestida à moda europeia, com quem pudesse casar. Uma beldade negra que se esforçasse por falar o português da metrópole e que soubesse usar o enganador enfeite de uma renda como uma pre­paração para desvendar o colo, proferindo, ao mesmo tempo e com apreciado recato, orações de devoção ao Senhor dos Céus.
Em vez de se mortificar com sonhos, o avô esforçou-se por lhes atribuir uma mulher concreta. E encontrou-a na magnífica Ana Fernandes, uma rapariga alta, de seio volumoso, vestida com bri­lhantes cetins e enfeitada nos dias de festa com toucados que fariam inveja a uma condessa. Não tardou muito a deixar-se prender pela sua aparência que, mesmo atabafada em véus, caminhava para a igreja da Povoação, encarnando a sedutora figura de uma negra nua. Acresciam os seus deleites por sabê-la rica, baptizada na fé católica e filha de um homem que lhe poderia conseguir a preços bastante favoráveis todos os escravos que as suas roças viessem a necessitar.
O meu avô nunca poderia ter adivinhado que a avó o aceitara de pronto por motivos tenebrosamente obscuros. No caso dela, a ideia de acasalar com um branco, os folguedos nocturnos com um ma­rido de corpo pálido e asseado, andariam associados ao espírito de Olurum, dono e senhor dos céus, cujos desígnios controlariam tanto as exaltações gloriosas como as agonias de efémera passagem. Des­de há séculos que as gentes da sua tribo se ungiam com caulinos brancos, assimilando a cor albina à marca de um poder ancestral. Tendo a minha avô sido educada como uma princesa, aspirava naturalmente às posições mais elevadas. Um casamento com um homem branco dar-lhe-ia acesso directo à vida insubstancial dos espíritos, uma vida necessariamente mais favorecida do que aquela que se suporta com a carne. Se o avô conhecesse as fantasias da sua prometida, em vez de considerar tudo aquilo uma tola superstição, teria de imediato rompido o noivado e chamado um padre para o benzer.
A minha avó, por sua vez, desconhecia que os brancos encaravam as almas das mulheres como entidades defeituosas. Ignorava mor­­mente que eles pensavam que os corpos femininos tinham sido amassados a partir de uma espessa argila pecaminosa. Jamais ouvira falar de Eva, nem tão-pouco da costela de Adão, a partir da qual Deus criara as mulheres, para depois as confinar dentro das formas de um espelho, no qual os homens só reconheciam reflexos do seu poder. E também da sua vaidade. Não fazia igualmente ideia que em Portugal os pensamentos das mulheres tombavam por terra como farrapos se não coincidissem com a vontade dos homens. Se algo de semelhante acontecia entre o seu povo, ela não o reconhecia da mesma maneira. Pelo menos na aristocracia, a que pertencia a sua família, as opiniões das mulheres eram honradas, assim como os corpos desnudados constituíam motivo de maior orgulho.
Aliás, e muito a propósito, deixa-me dizer-te, Lourença, que a con­dição das mulheres neste reino continua a ser, do meu ponto de vista, determinada por estranhos costumes: as mulheres são domi­nadas e protegidas como crianças. Ainda assim esses seres, encara­dos como o sexo fraco, assumem atitudes poderosas dentro de suas casas e, às vezes, no próprio reino, quando calha o seu lar coincidir com o palácio real. As resoluções mais difíceis da família são repar­tidas por uma fina poeira de decisões minúsculas que estão nas mãos das mulheres, as quais vão sendo perfilhadas, uma a uma, pelo senhor da casa, orientando-se deste modo a deliberação final. Apesar de os homens acreditarem que as decisões só a eles perten­cem, poder-se­-ia também concluir que nas fases anteriores quem domina são elas. Nas relações entre homens e mulheres, tudo não passa assim de manhas e contramanhas, abuso das palavras e em alguns casos abuso de força. Este confuso estado de coisas pouco favorece a felicidade das pessoas. Abanas mais uma vez a cabeça, Lourença, como se escutasses a apologia de uma doutrina perversa. Não tenho intenção de te demover, mas um dia, quando te casares, talvez venhas a recordar as minhas palavras.
Não sei verdadeiramente dizer como os meus avós evoluíram da troca de olhares para um compromisso mais firme, mas sei que noivaram e depressa casaram. Rigorosamente, e contra todas as expectativas, conseguiram entender-se. Para ser mais exacta, o seu enlace duradoiro foi uma bem-sucedida história de equívocos. Os erros de interpretação entre eles aconteciam a toda a hora e eram provocados pela acção de elementos de cuja presença nem um nem outro desconfiavam. Por exemplo, o avô acreditava ser o senhor absoluto de sua casa, mas essa crença ingénua, nunca desmentida directamente, não passava de facto de uma farsa. Nenhuma das escravas domésticas lhe obedecia se a ordem não fosse confirmada pela avó. Dissimulada atrás de uma cortina, como uma personagem régia esperando a hora propícia para proferir a sua sentença, ela abanava gravemente a cabeça e só então os escravos atendiam ao amo. A casa da Povoação ou a casa grande da fazenda do Rio do Ouro transformavam-se num mundo diferente, com os sons par­ticulares da tagarelice entre a avó e as escravas, mal o avô saía para cuidar dos engenhos. As explosões de uma cólera ou de um riso, os murmúrios de intimidade, os ensinamentos sobre a vida, todas essas coisas cessavam quando o avô regressava de novo a casa. As crianças, a constante inquietação com as doenças, os remédios fabricados com raízes e os princípios espirituais a que essas poções estavam ligadas assumiam na sua ausência uma importância que o avô des­conhecia. E ele próprio, tantas vezes escarnecido, tornava-se essencial à conversa, provavelmente por ser amado.
Os meus avós dirigiam-se um ao outro em português, mas a língua comum mais servia para prolongar mal-entendidos. O meu avô exigia naturalmente que as filhas, tanto a minha mãe como a minha tia Maria, envergassem, mesmo em dias de sufocante calor, vestidos à moda europeia, fazendo apenas concessões na leveza dos tecidos. A minha avó não identificava nessa exigência um sinal do conformismo à boa moralidade cristã, a qual interditava os compor­­tamentos licenciosos nas criaturas fêmeas. De facto, em nada a minha avó associava essas proibições à defesa da honra da família. Para ela, as necessidades da carne decorriam de apetências tão simples como as que se têm por um fruto fresco em dias tórridos. Por essas razões, pura e simplesmente não percebia muito bem a que é que o marido se referia quando mencionava o despudor das filhas, ignorando também como é que essa atitude poderia trazer desprazer àquele Deus que, do alto, tudo observava. Que desse por isso, nunca se vira o Deus dos brancos intervir directamente em assuntos terrenos. Em vez disso, acreditava que os motivos do marido, os seus constantes reparos sobre a forma de trajar das filhas, estariam relacionados com a protecção necessária à metade branca das raparigas. A herança de um espírito branco, mesmo sob a pro­tecção de uma pele escura, brilharia com uma fosforescência própria e os tecidos, como uma espécie de câmara mágica, impediriam que a sua substância volátil se dissipasse no ar. Aliás, sofrera grave desa­pontamento por as crianças não terem saído de pele clara e faria tudo ao seu alcance para preservar a herança recebida dos espíritos. No recato do lar, sobretudo depois de o marido ter construído uma casa em alvenaria perto da Fortaleza de S. Sebastião, permitia que os seios das filhas se escapassem ao jugo dos corpetes, pois parecia­-lhe que tão grossas paredes impediriam a fuga dos espíritos. Por outro lado, a minha avó, sendo uma mulher dotada de grande saga­cidade e inteligência, sabia que os trajes requintados, com galões e laçarotes, as diferenças na qualidade dos cetins e rendas eram a marca da elevada condição dos elementos da minúscula corte de notáveis da ilha. O orgulho da sua posição obrigava a que nem ela nem as filhas ficassem atrás das restantes damas. Exigia assim ao marido que comprasse os panos mais caros aos comerciantes da Povoação. Depois, usando miniaturas como modelo, orientava algu­mas escravas jeitosas de mãos na confecção de vestes sump­tuosas, tendo prazer em mostrar-se superior em elegância às poucas brancas que definhavam pela ilha, como, sem dúvida, já o era em fortuna.
Faço referência a estes episódios, Lourença, para que percebas como na casa da minha família o mundo parecia ilimitadamente dividido em formas antagónicas de pensar. As ideias sobre todas as matérias deslizavam, diversificando-se por visões inconciliáveis, consoante a mesma realidade era observada pela avó ou pelo avô. Não se conseguia mais do que uma grosseira equivalência entre as palavras que ambos usavam para mencionar as mais simples evidên­cias. Neste estado confuso de coisas, ecoavam ainda, em coros dis­sonantes, as vozes dos deuses que os governavam, com mandamentos de tal modo discordantes que se tornava impossível encontrar um equilíbrio entre eles, tanto na esfera divina como na terrestre. As leis da cristandade, semanalmente firmadas na missa pelos sermões do padre, exigiam às filhas de Eva que encarnassem a modéstia e todas as analogias da virtude andariam associadas à obediência. Os deuses da minha avó eram infinitamente mais leves. A força liberta pelos orixás da terra, dos céus e da água, empenhado na multiplici­dade das coisas, fixava-se mais fortemente às mulheres do que aos homens, pois só elas eram detentoras da matriz da vida. Pelo menos era nisso que a avó acreditava. Mesmo que, como vim a saber mais tarde, as mulheres mais humildes das tribos fossem tão sacrificadas como as brancas, senão mais ainda.
A tenaz dualidade dos costumes vigentes na família terá tido consequências no espírito de minha mãe Luzia e de minha tia Maria, turvando com ambiguidades os mais simples conceitos sobre a vida. Elas cresceram entre dois mundos, sem conseguirem esta­belecer uma ponte. Os juízos dos pais sobre os seus comporta­mentos tornavam-se indecifráveis. Como alternativa, inventaram o seu próprio sistema, que incluía uma sólida cumplicidade de irmãs, com perfeito entendimento sobre as diferentes justificações a dar à mãe e ao pai consoante as circunstâncias.
Apesar das atribulações familiares, as duas irmãs tiveram uma infân­cia feliz. Durante a meninice, tanto na fazendo do Rio do Ouro como na Povoação, corriam pelo mato em ranchos de garotos que incluíam filhos de escravos e mulatos forros, envolvendo-se em jogos que não se diferenciavam dos divertimentos das crianças das metrópoles europeias ou dos confins de África. Por vezes, quando a brin­cadeira era na roça, paravam a admirar a resistência dos escravos no trabalho do engenho, a firmeza dos seus corpos negros, a força dos seus músculos e o seu aparente desdém pelo estalar do chi­­cote dos feitores. Mesmo na Povoação, eram proporcionadas às raparigas liberdades inimagináveis para moças de boas famílias. Isso acontecia não apenas com mulatinhas forras mas também com as meninas brancas, que pouco se ocupavam das tarefas de fiar ou de bordar. Raparigas e rapazes, sem fazer caso de proibições, passeavam­-se pelo mercado, fazendo eco dos pregões das regateiras e das agua­­deiras de cântaro, iam ao porto assistir ao desembarque dos escra­vos, orga­nizavam explorações pelas matas circundantes, lan­­çan­do-se em aventuras que poucas mães se davam ao trabalho de con­trolar. Os habitantes mais notáveis da colónia, continuamente ameaçados pela espada das febres mortais e ocupados com os motins de escravos fugidos, não dispunham de forças excedentes para impor severi­dade à educação das crianças. No ambiente algo instável da Povoa­­ção, não era raro que até os padres deixassem de pregar, incapacitados pelas sezões e pela febre. Mas pelo menos a missa era respeitada. Os colonos brancos, por lhes recordar a pátria longínqua, achavam prazer nas orações conjuntas aos domingos, posto o que abalavam, munidos de admoestações e de promessas de salvação para uma semana, para se entregarem a um quotidiano de costumes dis­solutos.
Mais tarde, enquanto jovens donzelas, a minha mãe e a minha tia Maria tanto iam aos saraus organizados pelas esposas do gover­na­­dor ou do ouvidor, bailando ao som de um alaúde com fogosa energia, mas segundo as modas portuguesas, como exibiam a sua voluptuosidade em danças tribais no terreiro da sanzala da fazenda do Rio do Ouro. Naturalmente salvaguardavam-se, só se entre­gan­­do a estas últimas folias quando o pai se ausentava para outras roças.
O clima tórrido da ilha acelerara o crescimento das raparigas. O despontar do sangue, e o respectivo acréscimo em ardores, acon­­tecera relativamente cedo. Os corpos floresceram num repente e o seu espírito fulgurava com novas sensações. Não tardou que se envol­vessem em namoricos breves, tendo, a coberto da cum­pli­ci­dade da mãe, encontrado maneira de ocultar essas aventuras ao pai. Com o tempo, a avó aprendera a conhecer melhor o signi­ficado das explosões coléricas do marido e, por respeito a uma pacífica con­vi­vência, evitava cuidadosamente as conversas que abor­­dassem assun­tos de fé ou as vestimentas das filhas. A partir de certa altura, já pouco falava com o avô e, com aquele instinto justo e avisado de quem consegue, quase em silêncio, ordenar a seu jeito a casa, res­guar­dava as palavras para assuntos triviais.
Quando tinha quinze anos, a minha mãe apaixonou-se perdi­­damente por um mulato forro de olhos verdes, filho bastardo de um comerciante e de uma escrava. A casa do comerciante na Povoa­ção fora construída em frente à do avô e, através das janelas estreitas do seu próprio quarto, calhava o rapaz, de nome António Aboim, entrever o vulto da minha mãe indo e vindo pelo quarto à luz de uma lamparina. Apreciava particularmente o momento em que ela desfazia o cabelo, gancho a gancho, tarefa particularmente longa e penosa por causa da cabeleira encarapinhada, ao mesmo tempo que estendia os pés a uma escrava para que lhe tirasse os sapatos. Mais uma vez, não faço ideia como terão evoluído destes jogos de som­bras para as palavras e logo de seguida para os actos mais fogosos. Sei apenas que, junto a uma ribeira de águas calmas, não muito afas­­tada da Povoação, construíram eles, com a ajuda de ramos de árvores, um abrigo com uma espécie de cama de folhas. Para aí iam todas as tardes depois de se terem tornado amantes.
Luzia, minha mãe, gostava daquela penumbra que inundava a minúscula cabana. Era bom dor­­mir ali, encostando a cabeça ao peito de António Aboim, depois de terem feito amor, ou acariciarem-se durante horas, apertados um contra o outro. Foi nesse local isolado de todos os ruídos do mundo e onde as interdições dos adultos não se faziam ouvir que fui con­cebida.
Abanas de novo a cabeça, Lourença, e bem vejo que o fazes com especial desdém. É por tomares conhecimento de que sou bastarda? À hora da morte deve ser o que menos importa! Não creio que a minha filiação seja recordada no reino das trevas. Neste momento em que todas as felicidades da vida me abandonam, gosto ainda de imaginar a minha mãe feliz com um rapaz que viria a ser meu pai. Quanto mais me aproximo da morte mais tento prolongar, no que me resta de vida, essas imagens onde o amor jamais renuncia aos seus poderes de per­dição. Uma rapariga linda a estremecer de paixão, sol­tando griti­­nhos, prendendo António Aboim com as suas pernas e os seus braços sedo­sos; os pés e as mãos do amante, expostos ao rigor dos trabalhos, seriam, pelo contrário, rugosos e cheios de calos. E o gozo de se per­derem numa vertiginosa teia de prazer. Dispersos tons de entar­decer lembravam­-lhes, várias horas depois, ser altura de regressar.
Os dias iam-se arrastando, cada um mais longo do que o outro, como se a vida na ilha reflectisse a eternidade de um Verão. O ar, carregado e húmido, vibrava com ondas de calor desde o cume dos montes até ao mar. As terríveis temperaturas convidavam a amores intensos, facilitando uma combustão que se alimentava dos beijos que os amantes passavam de um para o outro. Não tardou muito até a minha mãe emprenhar. Apesar da sua cintura estreita e o seu peito pouco volumoso não o parecerem demonstrar, a minha avó descobriu muito antes da filha que ela estava grávida.
Mesmo compreendendo que os impulsos do amor nunca obe­­decem a uma vontade meramente pensada, a avó, a seu modo, não era menos intransigente do que o avô no que respeita às tra­­dições. Sendo orgulhosa da sua linhagem, não se conformaria em casar a filha com um homem que pouco mais seria do que um escravo. Já para não falar do escândalo que o facto provocaria naquela sociedade de brancos, mesmo sendo ali a bastardia um acidente bastante vulgar. Pior seria quando o marido descobrisse a necessidade urgente de um casamento, tanto mais que ele havia firmado recen­­temente vantajoso contrato entre a filha mais velha e o filho de um capitão de S. Jorge da Mina que possuía vastas roças na ilha. Tão gravosas circunstâncias exigiriam da minha avó medidas urgentes, de uma argúcia excepcional.
João Godinho, assim se chamava o noivo, havia desembarcado na ilha há apenas uma semana, tendo chegado de Portugal, mas nem ele nem Luzia haviam ainda tomado conhecimento da sua condição de noivos. Muito pálido e enfermiço, de uma moleza quase feminina, mal chegou, o rapaz foi apoquentado de tal modo pelas febres que um padre teve de ir a casa prestar-lhe a extrema­-unção. A precária saúde do noivo permitiu à avó persuadir o marido a acelerar o matrimónio. Fez-lhe ver como os laços de parentesco com um capitão de S. Jorge da Mina constituíam uma extraordi­­nária oportunidade para comprar escravos em condições assaz vantajosas, pois, desde que o sogro morrera, tinha de competir com os restantes colonos nesses negócios complicados. A fragilidade do moço favorecia a pressa do enlace em vez de o retardar. Se o rapaz morresse após o casamento, a aliança não seria desfeita, mas o mes­mo não sucederia se ele falecesse antes. O avô acolheu os ardilosos conselhos da esposa com seriedade e deixou-se convencer pelas suas palavras, fazendo antecipar a cerimónia.
Mais difícil de persuadir, a minha mãe recusou-se a aceitar o enlace com um desconhecido, mormente quando tudo no seu coração ansiava pelos jogos de amor com António Aboim. Des­­conheço o teor do diálogo que se terá desenvolvido entre mãe e filha. Provavel­­mente a minha avó tê-la-á coagido, como sempre fazia, apelando aos espectros não visíveis, procurando mais uma vez demonstrar à filha como os poderes de Olurum se fixavam nos páli­dos corpos dos homens brancos. Os raciocínios da avó consen­­tiam em misturar, numa linguagem anímica, parábolas ancestrais com uma multidão de divindades, cujo espírito confluiria para o interior das mulheres após a consumação do acto sexual com um branco. As suas palavras emergiam de um cenário de fantas­­mago­­rias, onde atribuía aos inefáveis espíritos uma aparência humana com os traços dos euro­peus. Ao mencionar os homens brancos, a avó, na verdade, falava de um mundo misterioso, onde o possível e o impossível eram a mesma coisa, convertendo-se as penas verda­­deiras em símbolos dos ante­passados. Por isso, imagino que os seus argumentos não terão fugido desta linha de raciocínio. Através da boca da avó interpunha­-se a voz dos orixás, naquele momento para advertir a filha, mas, a manter­­­-se a recusa, as suas sombras viriam do outro mundo para a fazer vergar. Por outro lado, o casamento não seria impeditivo, toma­das as necessárias precau­ções, pois nas questões de adultério os colonos portugueses, aliás como a maior parte dos homens, demons­travam ser estranhamente rígidos, de prosseguir a sua ligação com o mulato António Aboim. Com a intervenção dos espíritos ou sem ela, a minha mãe não escapou ao extraordinário poder de persuasão da avó e aceitou casar-se.
Num dia de extraordinário calor, o qual mais faria sonhar com cascatas de água fresca do que com blandícias carnais, a minha mãe foi conduzida ao altar num sumptuoso vestido de cetim para rece­ber o sagrado sacramento do matrimónio. João Godinho, ainda muito enfermo, aguentou estoicamente a missa de casa­­mento, mas quase no fim da cerimónia perdeu os sentidos, o que se atribuiu à elevada temperatura e à extrema incomodidade causada pela multi­dão apinhada na Igreja de Nossa Senhora da Conceição. A minha mãe, de pé junto ao altar, conservou, durante todo o incidente, uma postura impassível, somente denunciando a sua perturbação com fugidios olhares sobre a assistência. O seu rosto fechado, onde sorriso algum parecia capaz de aflorar, dissimulava as razões da sua amargura, enquanto aguardava com dig­nidade que o noivo recupe­rasse. Mal ele se encontrou em condições de pronunciar os votos, apressou-se o fim da cerimónia, não fosse dar-lhe novo fanico.
Tão inquieto quanto a minha mãe, devia sentir-se o meu avô, ao observar o desmaio daquele genro débil. Todas as certezas que sempre lhe haviam pertencido e que adoptavam como moratória as suas ordens, talvez se revelassem naquele instante menos verda­dei­­ras, ao assinalar a expressão desgostosa da filha. Porventura inco­modava-o que ela, parecendo tão infeliz, não tivesse protestado, brandamente que fosse, contra a urgência daquele casamento. Por outro lado, os seus planos de uma aliança com uma família cristã de boa estirpe e detentora de vastas terras, os seus projectos de expan­são das fazendas e da cultura de cana, também lhe pareciam comprometidos. Quando no decurso de uma viagem a S. Jorge da Mina combinara o casamento da sua filha mais velha, procurara acau­telar a velhice, imaginando um genro robusto que juntaria as suas roças às dele. Desbravar floresta, dirigir feitores e escravos no trabalho de plantar cana e produzir açúcar eram tarefas que exi­giam o pulso firme de um homem. Mas, ao olhar-se para a figura de João Godinho, percorrida de tremores, era impossível não se pen­­sar num vento insalubre varrendo a superfície de um mar pací­fico, mas sem sol. A sua escolha teria de ser mais ponderada aquan­do do casamento da sua filha Maria.
Resignada a suportar um marido que pelo menos não temia vir a amar, a minha mãe deve, pelo contrário, ter-se regozijado com a mani­festa debilidade do noivo. No entanto, pelo que vim a saber, tam­bém com ela as coisas não se passaram como imaginara. João Godinho era um daqueles raros seres a quem a personalidade con­­feria em relação às mulheres uma solicitude afectuosa, reve­lando­-se uma inspiração para a voluptuosidade. O seu maior trunfo eram os olhos, que, apesar da febre, conservavam o brilho de um amante ardente. João Godinho conseguiu fazer crescer no coração da sua mulher um acolhimento ilimitado. Mas esses desen­volvi­­mentos sucederam mais tarde... Até porque o ataque de malá­­ria o impediu de, nessa noite, servir a sua esposa com as atenções que se espe­ram de um marido.
Após a cerimónia, João Godinho foi transportado de liteira para a casa do sogro, sendo atribuído à minha mãe o encargo de o velar. A princípio, encostada à ombreira da porta do quarto, vigiava-o à distância, deixando às escravas a tarefa de o acalmar durante os tremores. Aproximou-se, contudo, durante a noite, para lhe dar de beber com uma mão firme. O doente só a muito custo conseguiu engolir; o conteúdo do copo entornava-se na cama com a sua agitação. Os ataques desfiguravam-lhe o rosto, mas quando pas­savam e ele dormia pacificamente dava ideia de sorrir. O seu sorriso, durante o sono, parecia perseguir uma quimera, como se os delírios o fizessem captar do mundo a sua parte mais formosa. Por via daquele doce repouso, era como se saboreasse uma sensação de homem vazio, penetrando no mistério de uma existência perfeita.
Tendo passado horas a observá-lo durante o sono, a minha mãe foi sentindo lentamente que o movimento dos espíritos, de que a avó falara, poderiam vir a preencher a sua imaginação, e mesmo a devo­rar-lhe o coração, através daquele homem. A certa altura tocou­-lhe o rosto. Desse contacto nasceu uma emoção. Era possível que a avó tivesse razão! De facto essas entidades vagas chamadas espíri­tos, que nunca se terão visto a funcionar na ausência de um corpo, davam ideia de se materializar na expressão do seu marido. Quando na manhã seguinte o estado de saúde de João Godinho se agravou, ordenou de imediato a uma escrava que lhe trouxesse uma bebera­gem com raízes medicinais e que depois lhe fizesse uma sopa de pão em água, sal e um pouco de azeite. Poderia tê-lo deixado mor­rer, mas escolheu não o fazer.
Durante as crises de malária, os doentes são atreitos a doloro­sos suores, que de repente os deixam gelados. João Godinho esteve às portas da morte durante duas semanas. Quando os ataques se suce­­­diam, a minha mãe deitava-se ao lado do marido. Incapaz de conter o sofrimento daquele corpo que à sua vista se contorcia, ten­tava pelo menos aquecê-lo. A minha mãe e João Godinho nunca falaram entre si dessa crescente proximidade, como se tivessem esta­belecido um pacto mudo, mas muito antes da sua recuperação fizeram amor.
Como é que tomei conhecimento desta intimidade? É isso que cuidas de saber, Lourença? Só te respondo se prometeres não te escandalizar. Não quero que fujas a correr para ires beijar os pés de uma das figuras de Cristo na igreja mais próxima, em penitência pelas graves sevícias a que por minha causa submetes os ouvidos. Bem, se insistes... Em criança escutei amiúde conversas entre a minha mãe e a sua escrava favorita, Domingas, onde ela não se esqui­vava a fazer comparações entre o marido e o amante. Reco­meças a benzer-te! Devo dizer-te, porém, que as revelações de minha mãe em nada se assemelhavam ao grosseiro vozear com que neste reino as matérias do adultério são tratadas. A traição consu­mada estava longe de ser uma simples libertinagem.
Esse prazer mais secreto do que qualquer outro, esse prazer que nasce do desejo e com ele morre, não era para ser dedicado exclu­sivamente a um homem. Se cuidava do marido e com ele se deitava, isso não significava para a minha mãe que se sentisse for­­çada a abandonar o mulato António Aboim. A desordem que impe­rava no seu coração foi-se integrando pouco a pouco numa nova ordem que melhor servia os seus interesses.
Com o marido, a comunhão do corpo convidava à comunhão da alma. As mãos daquele homem branco mais lembravam serpentes, só que não eram sinistras, antes deslizavam em carícias que subiam e recuavam para depois prosseguirem ainda mais longe, sem se fixarem num ponto preciso do seu corpo. Eram mãos que dançavam sobre si como labaredas, mas com reverente doçura. Tão delicados prazeres tinham um toque de fragilidade e, contudo, não eram frá­geis, envolvendo-a com uma força que a empurrava para as profun­dezas de um paraíso muito mais perfeito do que aquele que o padre afiançava existir no outro mundo.
Mas não era apenas com as mãos que aquele marido fazia as delí­cias de minha mãe. Com João Godinho chegaram também os conhecimentos de alguém que usufruíra de preceptores particula­­res e de uma educação requintada enquanto vivera na Metrópole. De Portugal havia trazido muitos livros e um pequeno órgão hidráu­lico que fora instalado no quarto. Nos dias em que se sentia melhor, levantava-se e punha-se ao piano. À minha mãe, aquelas árias pareciam-lhe inseparáveis das mãos que as tocavam. A música surgia como uma aparição de um espírito consternado que deam­­bulava pelo quarto sem se ver. Os sons caíam do ar como gotas de chuva ou como lágrimas, fazendo-a ceder a um fluxo de emoções que encarnavam todas as formas. As pausas inauguravam um reco­meço onde a melodia regressava ainda mais perfeita. Fazia seu o deslizar pela música, como se penetrasse num refúgio onde se demonstrava a existência de uma beleza pura. Depois de o ouvir tocar aquelas doces árias, a minha mãe teve a confirmação de que have­ria um estrito ajustamento entre o espírito do seu marido e o de alguma divindade.
João Godinho também a surpreendia com a leitura de poemas. Não conhecia evidentemente nenhum dos poetas que ele mencio­­nava, mas sentia verdadeiro prazer em escutar as suas rimas. Ao ouvir a sua voz singularmente vulnerável, a minha mãe sentia verdadeira pena por não saber ler. Ao voltar da página, as estrofes corriam como mel, um conjunto de sílabas que se encadeavam umas nas outras e deixavam na alma um ressaibo de felicidade. Cada verso parecia fazer parte de um plano mais elevado para os sonhos. Preferia acima de tudo as trovas de paixão, onde o ardor dos versos rendia culto à exaltação dos amantes. Não raro acabavam eles próprios por misturar as suas carícias à arte de versejar.
As sezões nunca abandonaram João Godinho. No decurso da sua curta vida, ele interpretava um dia sem febre como uma vitó­ria sobre o mal. Mas a maleita persistia. A melhoras passageiras seguiam-se longas semanas de recaída. O seu optimismo era uma forma de coragem. Despertava de longas tardes de torpor para se entregar a brilhantes conversações com viajantes de passagem ou para se inteirar sobre a vida e infância da minha mãe. A doença parecia tê-lo despojado de toda a rigidez que caracterizava, com exces­­siva frequência, os modos de pensar dos homens brancos. Também se interessava por tudo o que tivesse a ver com as tradições dos selvagens, assim eram designadas as tribos do continente, e questionava amiúde a minha avó, esquecendo que também ela era negra e oriunda de África. A avidez da sua curiosidade não conhe­­cia limites quando se tratava de perceber os rituais com sacri­fícios humanos ou as poses de acasalamento dos negros. Enquanto a avó falava, não parava de tirar notas. Mas este estudioso dos povos indígenas demonstrava visíveis falhas de atenção quando os hábi­­tos descritos não apresentavam algo de novo e de espantoso para os costumes ocidentais.
O entusiasmo tomava também conta dele quando descrevia Lisboa: a azáfama das caravelas no porto, o brilho duma cidade cuja luz se disseminava pelas suas setes colinas, o recorte imponente dos edifícios, os sumptuosos vestidos das damas da corte. O seu rosto molhado de suor insistia em sorrir perante a lembrança de imagens que jamais voltaria a ver. Nos melhores dias, ainda se erguia com graça para beijar a mão da esposa ou da sogra, nos piores, aguar­dava-se a sua morte.
A minha mãe, apesar da inesperada afeição pelo marido, apro­­veitava os períodos de maior fraqueza de João Godinho para conti­nuar a encontrar-se com o seu mulato. Disfarçava-se com vestes de simples escrava. Bastava que vestisse uns panos à moda da Guiné, desnudasse os seios e colocasse uma carga à cabeça para não se distinguir de tantas outras mulatas que cruzavam as ruas da Povoa­ção. Antes de sair, obrigava Domingas a usar um dos seus vesti­dos, para que o marido, caso abrisse os olhos, permanecesse tranquilo com o recorte destacado de uma presença. Como a ouvi explicar, anos mais tarde, não existiam motivos para escolher um deles. Que razões teria para prescindir de um ou de outro? Uma decisão assim não passaria de uma coacção imposta ao espírito por regras que não entendia, não sendo verdadeiramente uma necessidade sua. Era como se fosse conduzida a escolher entre um mar de águas revoltas, cujas vagas se vão renovando ao desfazerem-se na orla da praia, e um ribeiro de águas calmas e transparentes onde os peixes flutua­vam em vez de nadar. Na natureza não havia lugar para decisões desse género, uma vez que os rios e os oceanos não dispu­­tam entre si a primazia de um lugar no coração do mundo. Assim, a minha mãe partilhava-se entre os dois, sem mais rumores na sua consciência do que um suave fluir de águas.
Escrúpulos desmesurados e exagerados pudores te atormentam e, no entanto, Lourença, pressinto que neste momento estás empe­nhada em saber qual dos dois tomava o lugar do mar. E quem fazia de regato. Etéreas imagens de valor arbitrário... Não sei afirmar com assegurada confiança, embora sempre tenha atribuído ao mulato António Aboim a exaltação de vagas fogosas. Fosse como fosse, a minha mãe vivia abençoada entre dois homens que repre­sentavam o melhor de duas formas de amar. Fazendo justiça à sua memória, não creio que existissem nela, ao passar de um homem a outro, a facilidade e a indiferença que caracterizam o carác­ter de uma sedu­tora. As riquezas do prazer que cada um lhe proporcionava simples­mente eram diferentes; um e outro, à sua maneira, condu­ziam-na à manifestação de um desejo, que, mesmo depois de con­cre­tizado, se conservava fiel à sua natureza. A voluptuosidade do amor, tomava por assim dizer, formas mais completas com a sua entrega aos dois amantes. E graças à influência da avó, a mãe nunca foi atingida pela turbulência de um conflito. Para ela tratava-se de afecto e mesmo de amor verdadeiro.
No entanto, quando passados meses deitou ao mundo uma criança do sexo feminino, não se achou no direito de esconder a verdade nem do marido nem do amante. Se António Aboim logo concordou que o melhor para a bebé seria o de manter o seu papel no anonimato, já a João Godinho não lhe foi dada a oportunidade de se expressar. Nessa matéria a minha mãe decidiu resguardar­­-se, pois a avó avisara-a de que o temperamento dos homens, e nesse particular sem grandes diferenças entre as raças, explodia numa ira fulminante quando estava em causa a paternidade. E as palavras nada podiam contra aquele tipo específico de embrutecimento da alma. Muito estranho aquele código selvático que era como que uma ma­neira de os homens provarem a virilidade. Havia tribos, ainda que não a sua, em que apenas interessava a maternidade. «Um dia virá em que os espíritos apagarão do coração dos homens todas as leis que não forem as do amor, mas esse dia ainda está longe...», concluiu na ocasião a avó, dando por terminada a conversa.
Precavendo-se contra a austeridade das leis humanas, a minha mãe aproveitou uma altura em que o marido delirava em voz alta para lhe confessar que a filha recém-nascida não fora concebida por ele. O momento escolhido revelou-se propício, já que, ao recupe­rar a lucidez, João Godinho confidenciou à minha mãe que sonhara com a criança. «Vai ter uma vida de princesa», assinalou satisfeito. É claro que não passava de um sonho, mas o mais auspicioso de todos. A profecia desse homem, que durante anos acreditei ser meu pai, até certo ponto concretizou-se. __________
Ana Cristina Silva
A Dama Negra da Ilha dos Escravos
Editorial Presença

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