A década de 60 foi uma sangria em Portugal. A maioria das pessoas nem se aperceberia do clima de “claustrofobia democrática” em que se vivia, embora muitos dos que melhor a suportavam e até apoiavam tenham passado sobre as brasas… até hoje. Mas esses são outros voos de outras aves.
O que interessa para aqui é o ambiente sentido sobretudo pelos pobres, muitos e muito pobres, que passadas décadas nada mais tinham visto do que promessas madrastas de uma mãe pátria avarenta, prepotente, arrogante, apesar do que exigia em troca. Empurrados por esta vida desataram, pouco a pouco, a procurar sítios onde empurrar a vida – a Europa, claro, que apesar da exiguidade de passaportes se alcançava a pé, com documentos falsos, como era possível. “A salto” se chamava ao processo de migração clandestino.
Por outras paragens andavam milhares, muitos e cada vez mais jovens, numa guerra em que não tiveram escolha. Era o outro lado da sangria, uma lavra de morte que exauria forças, meios e expectativas. E que pedia sempre mais braços, mais armas, mais dinheiro. E que lançava as labaredas de um desgosto nos meios mais esclarecidos, nas burguesias, nas universidades, na própria tropa – que curiosamente abria os olhos, cansada da guerra. Afinal, a claustrofobia atingia instâncias dos menos pobres e até razoavelmente instalados.
Destes jovens com mais meios e mais sedentos de aventura e novos mundos, muitos acabaram por fugir, mais ou menos clandestinamente, mais ou menos desiludidos, com razões politicamente fundadas ou apenas levados pelo cansaço, a desilusão, o desgosto. Na verdade, a Mocidade Portuguesa não os convencia… a todos. Mas, não se iludam, muitos sim. Outros voos de outras aves, também aqui.
Claro que quando o 25 de Abril possibilitou o regresso de toda essa gente, foi uma agitação. Os guerreiros à força desataram a querer o regresso a toda a brida e – não só por isso, mas também – foi o fim da guerra a toda a velocidade. Daí a “entrega” das colónias, porque quem queria mais vagares não tinha a pressa da tropa. Uma questão de velocidades.
Fronteiras abertas, os emigrantes por razões económicas não terão sentido a febre do regresso – afinal, eles fá-lo-iam logo que tivessem atingido o tecto das ambições. Os outros, os que tinham formação política ou lá próximo, esses, certamente encontrariam razões para se reinstalarem no seu país natal. A darem uma força ao regime democrático, influenciando decisões, entrando na máquina do poder, eles que tinham logrado formação de excelência, em muitos casos.
Curiosamente, muitos vieram cheirar os novos ventos políticos, alguns encontraram quanto queriam, dedicaram-se à nova política, adaptaram-se. Construíram carreiras. Mas, sabe-se, muitos nem fizeram questão de vir ver. E outros viram e rapidamente fizeram meia volta.
Destes, dos que nem aceitaram o desafio ou desistiram, quatro tinham começado a construir novos caminhos nos países de acolhimento, como refugiados políticos tinham tido boas oportunidades. As suas inteligências, boa preparação e desempenho elevado abriu-lhes portas, criou-lhes verdadeiros centros de interesse.
Encontraram noutros países o ambiente, a qualidade de vida, a vida política, a todos os níveis, que Portugal sempre lhes negara. Que, diz a História, na sua leitura, nunca proporcionou. E Portugal, os portugueses, já não brilhavam no fundo do túnel da política que lhes tinha indicado o caminho da deserção – não, já, da vida militar, mas de tudo. Isto é: não valia a pena o regresso, o país não tem cura.
É um livro imperdível por quanto nos faz repensar aqueles anos em que cada um destes quatro se fez à fuga. A situação de um deles, então jornalista, chegou mesmo a dar brado na própria Assembleia Nacional pelo tratamento militar que lhe foi dado, incorporado sob regime disciplinar. Impregnado de actividade política, acabou como alto quadro da UE.
Outro, partiu cedo, talvez menos politizado, mas o desencanto do mundo portuense à volta não lhe deu margem. Cientista feito, estabeleceu-se na investigação universitária belga, abriu caminhos que lhe deram a satisfação de uma vida. Regresso? Ora, ora…
Outro, foi de militância funda, andou pela clandestinidade do Partido Comunista, desiludiu-se da disciplina interna, das relações, contestou… acabou excluído. Era um duplo sinal de que pouco mais teria para fazer por cá. Lá está também na Bélgica, professor e investigador na área da psicologia cognitiva. Também ficou bem com a vida de Bruxelas.
Por fim, um poeta, homem que começou por ligar-se à ONU, depois às instâncias europeias, politólogo, professor.
Encontraram-se todos nas estradas de Bruxelas, sobretudo. Reconheceram-se mutuamente valor, ajudaram-se, e perceberam esse laço de união no espírito crítico, por vezes ácido, contundente, com que vêem o Portugal resultante da revolução de 1974. Algo que se traduziu na recusa de voltar, no desinteresse, na perspectiva de inutilidade.
Um quadro que não é partilhado de igual modo e com igual intensidade por todos os quatro protagonistas deste périplo pelo passado – estrangeirados, como se dizem. Ao longo de quatro jantares arrebicados e carregados de simbólica, em que por vezes perpassa o desgosto final por não terem “podido” – ou “querido” – voltar, estes ilustres portugueses ajudam-nos a reflectir sobre o Portugal das últimas quatro décadas.
Ferem-nos, porque nos desprezam como colectivo, pondo-se à margem, reconhecendo-se elitistas, vendo-nos do alto da Europa. Às vezes andam por ali o remorso, a farpa também ao país de acolhimento, aos hábitos dos outros, ao seu modo de ser e de viver. Mas, no conjunto, estes estrangeirados não nos têm em muito boa conta. E talvez tenham razão. É ler e perceber porquê.
Então o Godinho, o Godot feito personagem central de uma história em que aparece uma única vez? Sim, aparece numa esquadra, e mal, é um retrato nada favorável: corrupto, cheio de estratagemas, desregrado… um português, o português? Relapso, excrescência de uma tropa fandanga recrutada num universo de feios, porcos e maus.
Por fim, a curiosidade de o livro ter sido escrito e impresso de acordo com as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Opção determinada, bem ponderada. O tema é, aliás, debatido no último jantar, aproveitando-se para cilindrar quantos, em Portugal, atacaram a entrada em vigor do acordo.
__________
Amadeu Lopes Sabino, Jorge de Oliveira e Sousa, José Morais, Manuel Paiva
À espera de Godinho – Quando o futuro existia
Bizâncio, 15€
O que interessa para aqui é o ambiente sentido sobretudo pelos pobres, muitos e muito pobres, que passadas décadas nada mais tinham visto do que promessas madrastas de uma mãe pátria avarenta, prepotente, arrogante, apesar do que exigia em troca. Empurrados por esta vida desataram, pouco a pouco, a procurar sítios onde empurrar a vida – a Europa, claro, que apesar da exiguidade de passaportes se alcançava a pé, com documentos falsos, como era possível. “A salto” se chamava ao processo de migração clandestino.
Por outras paragens andavam milhares, muitos e cada vez mais jovens, numa guerra em que não tiveram escolha. Era o outro lado da sangria, uma lavra de morte que exauria forças, meios e expectativas. E que pedia sempre mais braços, mais armas, mais dinheiro. E que lançava as labaredas de um desgosto nos meios mais esclarecidos, nas burguesias, nas universidades, na própria tropa – que curiosamente abria os olhos, cansada da guerra. Afinal, a claustrofobia atingia instâncias dos menos pobres e até razoavelmente instalados.
Destes jovens com mais meios e mais sedentos de aventura e novos mundos, muitos acabaram por fugir, mais ou menos clandestinamente, mais ou menos desiludidos, com razões politicamente fundadas ou apenas levados pelo cansaço, a desilusão, o desgosto. Na verdade, a Mocidade Portuguesa não os convencia… a todos. Mas, não se iludam, muitos sim. Outros voos de outras aves, também aqui.
Claro que quando o 25 de Abril possibilitou o regresso de toda essa gente, foi uma agitação. Os guerreiros à força desataram a querer o regresso a toda a brida e – não só por isso, mas também – foi o fim da guerra a toda a velocidade. Daí a “entrega” das colónias, porque quem queria mais vagares não tinha a pressa da tropa. Uma questão de velocidades.
Fronteiras abertas, os emigrantes por razões económicas não terão sentido a febre do regresso – afinal, eles fá-lo-iam logo que tivessem atingido o tecto das ambições. Os outros, os que tinham formação política ou lá próximo, esses, certamente encontrariam razões para se reinstalarem no seu país natal. A darem uma força ao regime democrático, influenciando decisões, entrando na máquina do poder, eles que tinham logrado formação de excelência, em muitos casos.
Curiosamente, muitos vieram cheirar os novos ventos políticos, alguns encontraram quanto queriam, dedicaram-se à nova política, adaptaram-se. Construíram carreiras. Mas, sabe-se, muitos nem fizeram questão de vir ver. E outros viram e rapidamente fizeram meia volta.
Destes, dos que nem aceitaram o desafio ou desistiram, quatro tinham começado a construir novos caminhos nos países de acolhimento, como refugiados políticos tinham tido boas oportunidades. As suas inteligências, boa preparação e desempenho elevado abriu-lhes portas, criou-lhes verdadeiros centros de interesse.
Encontraram noutros países o ambiente, a qualidade de vida, a vida política, a todos os níveis, que Portugal sempre lhes negara. Que, diz a História, na sua leitura, nunca proporcionou. E Portugal, os portugueses, já não brilhavam no fundo do túnel da política que lhes tinha indicado o caminho da deserção – não, já, da vida militar, mas de tudo. Isto é: não valia a pena o regresso, o país não tem cura.
É um livro imperdível por quanto nos faz repensar aqueles anos em que cada um destes quatro se fez à fuga. A situação de um deles, então jornalista, chegou mesmo a dar brado na própria Assembleia Nacional pelo tratamento militar que lhe foi dado, incorporado sob regime disciplinar. Impregnado de actividade política, acabou como alto quadro da UE.
Outro, partiu cedo, talvez menos politizado, mas o desencanto do mundo portuense à volta não lhe deu margem. Cientista feito, estabeleceu-se na investigação universitária belga, abriu caminhos que lhe deram a satisfação de uma vida. Regresso? Ora, ora…
Outro, foi de militância funda, andou pela clandestinidade do Partido Comunista, desiludiu-se da disciplina interna, das relações, contestou… acabou excluído. Era um duplo sinal de que pouco mais teria para fazer por cá. Lá está também na Bélgica, professor e investigador na área da psicologia cognitiva. Também ficou bem com a vida de Bruxelas.
Por fim, um poeta, homem que começou por ligar-se à ONU, depois às instâncias europeias, politólogo, professor.
Encontraram-se todos nas estradas de Bruxelas, sobretudo. Reconheceram-se mutuamente valor, ajudaram-se, e perceberam esse laço de união no espírito crítico, por vezes ácido, contundente, com que vêem o Portugal resultante da revolução de 1974. Algo que se traduziu na recusa de voltar, no desinteresse, na perspectiva de inutilidade.
Um quadro que não é partilhado de igual modo e com igual intensidade por todos os quatro protagonistas deste périplo pelo passado – estrangeirados, como se dizem. Ao longo de quatro jantares arrebicados e carregados de simbólica, em que por vezes perpassa o desgosto final por não terem “podido” – ou “querido” – voltar, estes ilustres portugueses ajudam-nos a reflectir sobre o Portugal das últimas quatro décadas.
Ferem-nos, porque nos desprezam como colectivo, pondo-se à margem, reconhecendo-se elitistas, vendo-nos do alto da Europa. Às vezes andam por ali o remorso, a farpa também ao país de acolhimento, aos hábitos dos outros, ao seu modo de ser e de viver. Mas, no conjunto, estes estrangeirados não nos têm em muito boa conta. E talvez tenham razão. É ler e perceber porquê.
Então o Godinho, o Godot feito personagem central de uma história em que aparece uma única vez? Sim, aparece numa esquadra, e mal, é um retrato nada favorável: corrupto, cheio de estratagemas, desregrado… um português, o português? Relapso, excrescência de uma tropa fandanga recrutada num universo de feios, porcos e maus.
Por fim, a curiosidade de o livro ter sido escrito e impresso de acordo com as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Opção determinada, bem ponderada. O tema é, aliás, debatido no último jantar, aproveitando-se para cilindrar quantos, em Portugal, atacaram a entrada em vigor do acordo.
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Amadeu Lopes Sabino, Jorge de Oliveira e Sousa, José Morais, Manuel Paiva
À espera de Godinho – Quando o futuro existia
Bizâncio, 15€
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