domingo, 10 de fevereiro de 2008

Filha do Capitão (A) - José Rodrigues dos Santos

Este GRANDE ROMANCE procura reproduzir factos históricos ocorridos na Flandres entre 1917 e 1918. As personagens são fictícias, no entanto, os acontecimentos e episódios por eles vividos aconteceram.
Há 3 anos, Feira do Livro de Lisboa, tive o prazer e a felicidade de conhecer e estar à conversa cerca de 10 min. com José Rodrigues dos Santos. Assim e aproveitando a sua enorme simpatia e disponibilidade, coloquei-lhe algumas questões sobre o livro, questões essas que me elucidaram sobre alguns dos factos e que originaram um deslumbramento ainda maior por este magnífico romance. Nesta opinião tentarei então abordar a obra segundo as minhas percepções e também segundo aquilo que me foi transmitido pelo próprio autor do livro: José Rodrigues dos Santos.
O livro tem o seu início temporal em 1890, ano do nascimento de Afonso Brandão, personagem principal da obra.
De origem humilde mas com uma inteligência e curiosidade apurada, é-nos relatada a vida pobre daquela humilde família de seis filhos no meio ribatejano.
Nessa mesma altura em Lille, França, nasce Agnés de Chevallier, filha de um abastado enólogo e comerciante de vinhos. Nascida em berço de ouro, Agnés tem de tudo. Uma educação esmerada, dinheiro, comida da melhor, acesso à cultura e inclusive chega a visitar em 1900 a Exposição Universal de Paris onde sobe, diliciada, a Torre Eifiel.
Aqui Rodrigues dos Santos mostra-nos bem a diferença que havia entre o interior francês e o português, universos muito distantes, completamente opostos. Ao mesmo tempos aproveita para descrever a célebre exposição de Paris.
Nos primeiros capítulos acompanhamos assim a infância de Afonso e Agnés, sendo fácil de adivinhar que, mais tarde ou mais cedo, as vidas deles se vão interligar.
De salientar que o facto de o livro começar em 1890 não ter sido por acaso. Rodrigues dos Santos pretendeu narrar alguns dos factos que surgem por essa altura e que tanta importância irão ter no futuro.
É assim descrito a vinda a Lisboa da família de Afonso e o fascínio que demonstram pela cidade e pelas novidades, algumas delas demasiado futuristas. De notar o pormenor de eles andarem descalços e de ficarem admirados por verem as pessoas no Rocio (Rossio) a passearem-se calçados. Curioso também a descrição do surgimento do futebol enquanto jogo do povo em Portugal e dos primeiros jogos entre o Carcavelos e o Fotball Club Lisbonense, desporto esse que, para além de rivalizar já com a tourada, adquiria, para essa gente do Ribatejo, o nome de fubôu. Curioso também ser nessa altura que surgem as “fotografias vivas” passadas no Real Colyseu e no Teatro D. Amélia, que era nada mais nada menos que exibições do animatógrafo, logo os primórdios do cinema. E mais, o livro está cheio de curiosidades históricas.
Quando Afonso atinge os 14, 15 anos (1904-1905), começam-se a dar em Portugal acontecimentos que irão ficar gravados num lugar de destaque da nossa História. E aqui Rodrigues dos Santos é exímio na narração desses acontecimentos, conseguindo interligar as personagens, a história do livro com os factos históricos.
O assassinato do rei D. Carlos e do seu filho, o príncipe D. Luiz Filipe no dia 1 de Fevereiro de 1910 em plena Praça do Commércio. Os tempos agitados que se seguiram até à implantação da república no dia 5 de Outubro de 1910. Acreditem, é empolgante, delicioso, excepcional.
Até que numa manhã de Agosto de 1914, já Afonso era tenente num quartel em Braga, inicia-se um novo capítulo do romance e o seu principal motivo de interesse A Grande Guerra.
Devido a interesses que envolvia um acordo secreto entre a Alemanha e a Inglaterra, acordo esse que definia em segredo as possessões ultramarinas portuguesas, o governo português apercebeu-se que a sua velha aliada estava a fazer jogo duplo. Por outro lado, a aproximação anglo-espanhola e a frieza com que os dois países, ambos monárquicos, viam a implantação da república em Portugal, indiciavam que a Inglaterra fecharia os olhos a uma possível anexação de Portugal por parte da Espanha, chegando mesmo o governo britânico a avisar o governo português que as obrigação da aliança Portugal-Inglaterra visava apenas a garantia da defesa da costa marítima e não das fronteiras terrestres… Assim e devido a todos esses acordos que punham em perigo a nossa integridade e independência, o governo português não teve outra alternativa do que provocar a Alemanha no sentido de esta nos declarar guerra, para assim tomarmos a posição das forças aliadas e podermos ocupar a mesa das negociações no pós-guerra, defendendo assim as colónias e as fronteiras do continente e ilhas. Para quem quiser saber mais sobre estes jogos, aconselho a leitura de “Crónicas de Guerra” do mesmo autor.
É então que em Abril de 1917, o Corpo Expedicionário Português (CEP), composto por algumas dezenas de batalhões, é enviado para a frente de combate, as temíveis trincheiras da Flandres. Como comandante da Infantaria 8 ia o tenente Afonso Brandão.
Começa nessa altura a terrível odisseia de milhares de homens que, praticamente sem qualquer tipo de treino militar, se vêm nas trincheiras atolados em “merda”, em condições sub-humanas, a servirem, literalmente, de carne para canhão.
Estes acontecimentos são assim o grande objectivo de Rodrigues dos Santos. Narra episódios reais da estadia do CEP nas trincheiras que se estendiam por Fauquissart, Neuve Chapelle e Ferme du Bois.
E é angustiante ler as terríveis provações que os nossos soldados passaram. Eles foram enviados para as trincheiras simplesmente para morrerem, porque quantas mais baixas houvessem, mais apreciado era Portugal pela comunidade internacional. O governo de Lisboa não tinha qualquer interesse e consideração pelas tropas. A partir do momento que chegavam a França, o contigente português jamais era substituído e o regresso dos soldados apenas se dava em sacos mortuários, quando havia alguma coisa para colocar nesses sacos…
ai minha rica mãezinha, não me deixem morrer!” Afirmava m homem cujo rosto era uma massa ensanguentada... Um retracto do inferno.
As outras tropas aliadas e alemãs eram substituídas regularmente, os portugueses mantinham-se nas suas posições até morrer, definhando, apodrecendo atolados em lama tendo por companhia o zunir das balas e as ratazanas. Passaram fome e frio, andavam rotos com fardas fornecidas pelo exército britânico, logo, grandes para os soldados portugueses. Ao mesmo tempo a maior parte dos oficiais, que estavam contra a guerra, faziam de tudo para se afastarem da frente, inclusivamente até se faziam de doentes para serem enviados para Lisboa, ficando o CEP quase sem oficiais. Por isso imaginem o moral das praças, homens simples, a maior parte deles analfabetos que passavam o dia na lama, a cheirar e a pressentir a morte, vendo os oficiais fugir como as ratazanas que lhes passavam por cima.
Mas a fé mantinha-se, a coragem e os sonhos faziam com que aqueles homens acreditassem que o seu esforço tinha um objectivo e que o dia do regresso a casa estaria para breve…
É neste contexto que José Rodrigues dos Santos nos dá uma verdadeira aula de História de Portugal na Grande Guerra e do enorme e heróico esforço que os nossos soldados realizaram.
Quanto a mim o romance vale por isso.
Mas a história continua com Afonso e Agnés até ao seu encontro…
Que posso dizer mais sobre este soberbo, fenomenal, excepcional e grandioso romance?
Antes de mais asseguro que é dos melhores livros de sempre da literatura portuguesa.
Depois, fez-me sentir muito orgulhoso dos meus compatriotas que lutaram tão heroicamente naquela guerra. Deliciei-me igualmente com a escrita fluida e com a forma narrativa de Rodrigues dos Santos. A descrição da ofensiva alemão em Abril de 1918 ao contigente português (La Lys) é terrivelmente real e angustiante. Está tão bem descrito que parece que ouvimos o troar dos canhões, o matraquear das metralhadoras, o zunir das granadas e das balas, os gritos de raiva, medo e angustia de milhares de soldados que lutavam por uma nação e pela sua vida.
La Lys foi um episódio marcante da nossa história e este livro presta homenagem a todos aqueles que lá combateram. Segundo o autor, um dos objectivos do livro é precisamente o de exorcizar velhos fantasmas, o de prestar homenagem ao Corpo Expedicionário Português e a milhares de homens que tão garbosamente combateram nas trincheiras da Flandres.
A história de Afonso e Agnés passa assim para segundo plano. Não que Rodrigues dos Santos o tenha feito premeditadamente, não! A história está sempre presente e é narrada como tema principal, sendo a guerra o pano de fundo, mas sei que o valor do livro está nos factos históricos.
Não pretendo alongar-me mais, no entanto este é daqueles livros que gostaria de escrever, escrever, sem, contudo, conseguir expressar o enorme fascínio que o mesmo me provocou.
Com ele percebi o porquê do desastre português em La Lys e do sofrimento de todos aqueles homens que lutaram por uma causa que desconheciam.
Foi um romance que me comoveu imenso. Em três, quatro ocasiões, tive que fechar o livro porque simplesmente a comoção era enorme.
Foi também, e que me lembre, o único livro em que depois de lida a última página, voltei à primeira.
Sabe meu capitão, descobri que o mais duro não é fazer guerra, o mais difícil é sobreviver a ela, é viver com ela depois de ter vivido nela, percebe o que quero dizer?”.
E esta deixou-me de rastos:
Marianne ficou a estudá-lo, hesitante, receando acreditar. Deu um passo em frente, a medo, depois outro e outro ainda, começou a andar e o andar transformou-se em corrida, correu para ele como se sempre o tivesse conhecido, ninguém lhe disse que era ele mas ela soube-o, talvez fosse desejo, talvez fantasia…”; “… daquele murmúrio da voz embargada que lhe brotava dos lábios e era repetidamente soprado aos ouvidos da menina que o enlaçava pelo pescoço. Ma petite fille”.
Um romance excepcionalmente admirável. Aconselho vivamente, rogo-vos que o leiam, exijo que o façam, pois estamos perante um dos grandes romances de sempre da nossa literatura.

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