quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Leituras de férias II


David Machado, Um homem verde num buraco muito fundo, Presença, 2008

De David Machado, já conhecia sobejamente A noite dos animais inventados (Presença, 2006), e o que mais me havia surpreendido nesse livro era a disposição dos acontecimentos no tempo diegético. O facto da primeira parte, com a enumeração de animais que se acumulavam no quarto, durar mais tempo que a resolução do problema criado (o que fazer quando o quarto dos quatro irmãos já não suportava a lotação e os pais estavam prestes a acordar?), aparentava um certo desequilíbrio. Todavia, tal não acontecia de facto. O cuidado com o detalhe é privilegiado no texto, e só assim o espaço da imaginação ganha importância relativamente à acção. E isso não é de todo o mais importante, até porque se o leitor não se sentir como parte integrante daquele ambiente, não vai aceitar o pacto que o narrador lhe propõe como solução (a invenção de um comboio que transportará todos os animais, saindo do quarto pela porta do armário).
Com Um homem verde num buraco muito fundo (terceiro livro infantil do autor) a imaginação é novamente privilegiada e incentivada, através das brincadeiras das duas personagens principais. A ideia é muito original: dois irmãos desafiam os 'habitantes' de um semáforo de peões para brincarem com eles aos polícias e ladrões. A partir daqui logo se dão a conhecer as personalidades do homem verde e do homem vermelho. O homem verde acede feliz ao desafio, e inúmeras brincadeiras são perfiladas na imaginação dos três amigos com o parque como território. O verde do parque e o verde do homem sugerem natureza e liberdade. Mas, tal como acontece em inúmeras narrativas, nasce um problema, um desafio que será o motor da narrativa daí em diante. Esse momento dá-se quando o homem verde desaparece. A solução passa então por uma acção solidária por parte de todos os homens verdes de todos os semáforos das redondezas. E como não há bela sem senão, o efeito sobre o trânsito não é esquecido. O final é feliz, como não poderia deixar de ser, mas pelo caminho reflecte-se, naturalmente.
As ilustrações contribuem para que o livro funcione como um todo expressivo, pela intensidade cromática e pelas formas curvas que estreitam a relação visual com o leitor. As curvas das ruas, ou dos carros perpassam uma ideia de circularidade, de universo fechado, que é no fundo o mundo das crianças. Também elas, no livro, correspondem a esta proximidade afectiva, com cabeças desproporcionais, redondas, com olhos enormes, cheios de cor, e umas rosetas que lhes conferem uma aparência feliz, com expressões de espanto, medo, e alegria muito vincadas.
O texto está, em muitas páginas, confinado a um limite de cor, que delineia uma fronteira na própria ilustração, dando a sensação de que o texto é mais um elemento da composição e não o contrário.
Acrescente-se ainda que as guardas têm esboços de algumas das ilustrações que encontraremos no miolo do livro, bem como que capa e contracapa se complementam, estando na capa a frente da árvore e na contracapa as costas...
Sendo um livro ilustrado e não um álbum, este é um exemplo que mesmo em livros com muito texto a ilustração não deixa de estabelecer pontes e diálogos, conferindo consistência ao universo fantástico da narrativa.
David Machado têm uma voz própria, e cada uma das suas narrativas é um espaço onírico e fantástico, partindo sempre de uma situação comum ao quotidiano de todas as crianças como o sono ou o tempo de brincar.

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