Foi com agrado que constatei que o 2º número da renovada revista Ler dedica duas páginas à crítica de livros infantis. O que se passa com o espaço dedicado ao infantil não diverge muito do que se passa com a crítica literária em geral: os jornais e revistas dedicam cada vez menos caracteres aos livros, confinando a informação disponível a breves apresentações e notas.
Muito se tem discutido nos últimos anos sobre o lugar da crítica e as suas fronteiras: o que é uma crítica académica, o que é uma crítica jornalística.
Certo é que uma crítica implica um juízo, e esse juízo deve ser acompanhado de argumentos, passíveis de serem confirmados, rebatidos ou complementados. O crítico tem como função dar uma visão competente, conhecedora e abrangente do livro, e eventualmente escolher uma perspectiva de abordagem que lhe pareça interessante.
O que se passa com a literatura infantil é um pouco mais pernicioso, porque se tem em demasiada linha de conta o destinatário - a criança - tendendo esta a ser uniformizada segundo padrões de compreensão e maturidade. Ora, as crianças, tal como os adultos, são indivíduos com identidade própria, que se sobrepõe a ideias pré-concebidas de estádios de crescimento ou motivações pedagógicas.
O principal drama que encontro nas críticas a livros infantis é precisamente a tentação consumada de dar ao livro uma utilidade temática, didáctica, ética, antes de o analisar na sua componente literária. A ideia de utilidade mata qualquer objecto artístico, que deve em primeiro lugar ter uma validade própria e só depois, pelo uso, abrir-se então a inúmera possibilidades.
Compare-se as críticas na Ler ou n'Os meus livros às recensões/ notas críticas na Malasartes. É evidente que o espaço conta, e na Malasartes um livro 'tem direito' a uma página A4 e não a 1000 caracteres. Mas quem assina os textos da Malasartes conhece a fundo a literatura infantil. Centremo-nos apenas na componente de texto. O livro infantil obedece a pressupostos teóricos que o sustentam literariamente, como acontece com qualquer outro texto literário, de acordo com critérios como o ritmo, a riqueza retórica, a relação semântica e sintáctica com o tema do texto, a organização diegética (no caso da prosa), a apresentação ou subversão de topoi, a desconstrução da tradição literária ou das categorias da narrativa, a intertextualidade...
Juntemos-lhe agora a componente pictórica, que ombreia em grau de importância com o escrito. Que diálogo se estabelece entre os dois discursos? Complementaridade? Contradição? Expansão de emoções ou referentes? Criação de um cenário? E o livro, surge muito diferente de outros assinados apenas por um dos autores (texto ou ilustração)?
Também é clara a necessidade que os mediadores têm de orientação na selecção de livros. A palavra adequação surge sempre como critério. Mas, quantas vezes escolhem pais e educadores um livro porque gostam muito dele? Quantas educadoras de pré-escolar ou primeiro ciclo trabalham O Principezinho porque é um dos livros do seu coração? Sei que é assim, porque já mo disseram. No entanto, é muito discutível a 'adequação' desta obra para crianças tão pequenas... Ou não será? Acima de tudo, um bom livro infantil é aquele que não conseguimos catalogar. Fujamos pois aos catálogos e leiamos os livros infantis sem didactismos ou pedagogismos de valores. Só assim nos podemos perder na sua riqueza, quando formos verdadeiros leitores e não apenas intermediários.
A crítica poderia contribuir para isso.
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