quinta-feira, 19 de junho de 2008

O lugar dos livros sem texto

Porque fazem então falta livros sem texto? A quem fazem falta? A todos. Ler imagem é hoje visto como algo tão importante como ler palavras. O mundo cada vez interage mais através do pictórico e por isso se tornou urgente que as crianças, desde sempre, o façam. Mas não façamos deste o argumento principal. Se assim fosse, estaríamos novamente a incorrer no erro de pensar a literatura infantil numa perspectiva didáctica. A didáctica serve os mediadores e é essencial que estes a manejem com segurança, mas é um meio e não um fim. O fim é promover o prazer de ler, o prazer que Roland Barthes descreve e que em nada se deve confundir com entretenimento. Este prazer que caminha para a fruição tende a alargar o horizonte cognitivo e emocional de cada sujeito numa sensibilidade reflexiva e questionadora de si, do outro, do mundo. Ler imagens é formar um universo simbólico, tanto como o medo e a segurança que as histórias tradicionais transmitem à medida que se sedimentam na memória das crianças. Ler imagens é determo-nos nelas, é voltarmos atrás, é desacelerar um ritmo ávido que leva ao consumo passivo. A imagem, numa página, potencia a expectativa da página seguinte e despoleta o desejo de sentidos. Um livro sem texto pode ser um livro sem a muleta do denotativo. Para muitos educadores, os livros sem texto são importantes para que as crianças se possam apropriar deles e fazer assim leituras autónomas. Igualmente, são úteis para identificar referentes. É certo. Livros sem texto, como Ah! e Oh! recentemente lançados pela Kalandraka são muito bem concebidos como objectos de espanto, em que cada animal ou objecto se transforma num outro, quando desdobramos a página. Aqui, o que faz mais uma vez a diferença é que o livro em si não foi concebido como utensílio didáctico mas sim como objecto de prazer. O mistério da transformação surte um efeito de encantamento na criança, que identifica uma imagem e descobre outra em seguida, repetindo o jogo as vezes que desejar. Esta relação empática que se estabelece com o livro vai muito para além da diegese (que à partida não existe), mas não a impossibilita. Assim, o livro expande os seus níveis de leitura em função daquilo que o mediador decida fazer com ele, do manuseamento autónomo à decifração, à criação de pequenas narrativas, à sua continuação…
Mas não caíamos no erro de considerar que o livro sem texto apenas serve o intento simbólico de crianças muito pequenas. Onde está o bolo? é um exemplo crasso de que assim não acontece. Os diversos eixos narrativos que se cruzam pedem um olhar mais treinado, que consiga focar-se no pormenor sem deixar de ter uma visão contextual de toda a imagem. Dirige-se, por esta razão, a todos os públicos leitores e torna-se um feliz exemplo que anula eventuais tendências que assegurem a necessidade do livro sem texto para crianças com menos de cinco anos. Em suma, é elementar afirmar que os critérios de qualidade destas obras são claramente a sua validade estética, a sua riqueza pictórica, o seu depuramento gráfico, a triunfal polissemia das imagens…

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