sexta-feira, 4 de julho de 2008

O Céu e o Inferno - OU A JUSTIÇA DIVINA SEGUNDO O ESPIRITISMO, de Allan Kardec

C A P Í T U L O I
O porvir e o nada
Haverá algo de mais desesperador do que esse pensamento
da destruição absoluta? Afeições caras, inteligência,
progresso, saber laboriosamente adquiridos, tudo despedaçado,
tudo perdido! De nada nos serviria, portanto, qualquer
esforço no sofreamento das paixões, de fadiga para
nos ilustrarmos, de devotamento à causa do progresso,
desde que de tudo isso nada aproveitássemos, predominando
o pensamento de que amanhã mesmo, talvez, de
nada nos serviria tudo isso. Se assim fora, a sorte do homem
seria cem vezes pior que a do bruto, porque este vive
inteiramente do presente na satisfação dos seus apetites
materiais, sem aspiração para o futuro. Diz-nos uma secreta
intuição, porém, que isso não é possível.
2. Pela crença em o nada, o homem concentra todos os
seus pensamentos, forçosamente, na vida presente.
Logicamente não se explicaria a preocupação de um
futuro que se não espera.
Esta preocupação exclusiva do presente conduz o homem
a pensar em si, de preferência a tudo: é, pois, o mais
poderoso estimulo ao egoísmo, e o incrédulo é conseqüente
quando chega à seguinte conclusão: Gozemos enquanto aqui
estamos; gozemos o mais possível, pois que conosco tudo
se acaba; gozemos depressa, porque não sabemos quanto
tempo existiremos.
Ainda conseqüente é esta outra conclusão, aliás mais
grave para a sociedade: Gozemos apesar de tudo, gozemos
de qualquer modo, cada qual por si; a felicidade neste mundo
é do mais astuto.
E se o respeito humano contém a alguns seres, que
freio haverá para os que nada temem?
Acreditam estes últimos que as leis humanas não atingem
senão os ineptos e assim empregam todo o seu engenho
no melhor meio de a elas se esquivarem.
Se há doutrina insensata e anti-social, é, seguramente,
o niilismo que rompe os verdadeiros laços de solidariedade
e fraternidade, em que se fundam as relações sociais.
3. Suponhamos que, por uma circunstância qualquer, todo
um povo adquire a certeza de que em oito dias, num mês,
ou num ano será aniquilado; que nem um só indivíduo lhe
sobreviverá, como de sua existência não sobreviverá nem
um só traço: Que fará esse povo condenado, aguardando o
extermínio?
Trabalhará pela causa do seu progresso, da sua instrução?
Entregar-se-á ao trabalho para viver? Respeitará
os direitos, os bens, a vida do seu semelhante? Submeter-
-se-á a qualquer lei ou autoridade por mais legítima que
seja, mesmo a paterna?
Haverá para ele, nessa emergência, qualquer dever?
Certo que não. Pois bem! O que se não dá coletivamente,
a doutrina do niilismo realiza todos os dias isoladamente,
individualmente.
E se as conseqüências não são desastrosas tanto quanto
poderiam ser, é, em primeiro lugar, porque na maioria dos
incrédulos há mais jactância que verdadeira incredulidade,
mais dúvida que convicção — possuindo eles mais medo do
nada do que pretendem aparentar — o qualificativo de es-
píritos fortes lisonjeia-lhes a vaidade e o amor-próprio; em
segundo lugar, porque os incrédulos absolutos se contam
por ínfima minoria, e sentem a seu pesar os ascendentes
da opinião contrária, mantidos por uma força material.
Torne-se, não obstante, absoluta a incredulidade da
maioria, e a sociedade entrará em dissolução.
Eis ao que tende a propagação da doutrina niilista.1
Fossem, porém, quais fossem as suas conseqüências,
uma vez que se impusesse como verdadeira, seria preciso
aceitá-la, e nem sistemas contrários, nem a idéia dos males
resultantes poderiam obstar-lhe a existência. Forçoso é dizer
que, a despeito dos melhores esforços da religião, o cepticismo,
a dúvida, a indiferença ganham terreno dia a dia.
1 Um moço de dezoito anos, afetado de uma enfermidade do coração,
foi declarado incurável. A Ciência havia dito: Pode morrer dentro de
oito dias ou de dois anos, mas não irá além. Sabendo-o, o moço
para logo abandonou os estudos e entregou-se a excessos de todo
o gênero.
Quando se lhe ponderava o perigo de uma vida desregrada, respondia:
Que me importa, se não tenho mais de dois anos de vida?
De que me serviria fatigar o espírito? Gozo o pouco que me resta e
quero divertir-me até o fim. — Eis a conseqüência lógica do niilismo.
Se este moço fora espírita, teria dito: A morte só destruirá o
corpo, que deixarei como fato usado, mas o meu Espírito viverá.
Serei na vida futura aquilo que eu próprio houver feito de mim
nesta vida; do que nela puder adquirir em qualidades morais e intelectuais
nada perderei, porque será outro tanto de ganho para o
meu adiantamento; toda a imperfeição de que me livrar será um
passo a mais para a felicidade. A minha felicidade ou infelicidade
depende da utilidade ou inutilidade da presente existência. É portanto
de meu interesse aproveitar o pouco tempo que me resta, e
evitar tudo o que possa diminuir-me as forças.
Qual destas doutrinas é preferível?
Mas, se a religião se mostra impotente para sustar a
incredulidade, é que lhe falta alguma coisa na luta. Se por
outro lado a religião se condenasse à imobilidade, estaria,
em dado tempo, dissolvida.
O que lhe falta neste século de positivismo, em que se
procura compreender antes de crer, é, sem dúvida, a sanção
de suas doutrinas por fatos positivos, assim como a
concordância das mesmas com os dados positivos da Ciência.
Dizendo ela ser branco o que os fatos dizem ser negro,
é preciso optar entre a evidência e a fé cega.
4. É nestas circunstâncias que o Espiritismo vem opor um
dique à difusão da incredulidade, não somente pelo raciocínio,
não somente pela perspectiva dos perigos que ela
acarreta, mas pelos fatos materiais, tornando visíveis e tangíveis
a alma e a vida futura.
Todos somos livres na escolha das nossas crenças; podemos
crer em alguma coisa ou em nada crer, mas aqueles
que procuram fazer prevalecer no espírito das massas, da
juventude principalmente, a negação do futuro, apoiando-se
na autoridade do seu saber e no ascendente da sua posição,
semeiam na sociedade germens de perturbação e dissolução,
incorrendo em grande responsabilidade.
5. Há uma doutrina que se defende da pecha de materialista
porque admite a existência de um princípio inteligente
fora da matéria: é a da absorção no Todo Universal.
Segundo esta doutrina, cada indivíduo assimila ao
nascer uma parcela desse princípio, que constitui sua alma,
e dá-lhe vida, inteligência e sentimento.
Pela morte, esta alma volta ao foco comum e perde-se
no infinito, qual gota dágua no oceano.
Incontestavelmente esta doutrina é um passo adiantado
sobre o puro materialismo, visto como admite alguma
coisa, quando este nada admite. As conseqüências, porém,
são exatamente as mesmas.
Ser o homem imerso em o nada ou no reservatório comum,
é para ele a mesma coisa; aniquilado ou perdendo a
sua individualidade, é como se não existisse; as relações
sociais nem por isso deixam de romper-se, e para sempre.
O que lhe é essencial é a conservação do seu eu; sem
este, que lhe importa ou não subsistir?
O futuro afigura-se-lhe sempre nulo, e a vida presente
é a única coisa que o interessa e preocupa.
Sob o ponto de vista das conseqüências morais, esta
doutrina é, pois, tão insensata, tão desesperadora, tão subversiva
como o materialismo propriamente dito.
6. Pode-se, além disso, fazer esta objeção: todas as gotas
dágua tomadas ao oceano se assemelham e possuem idênticas
propriedades como partes de um mesmo todo; por
que, pois, as almas tomadas ao grande oceano da inteligência
universal tão pouco se assemelham? Por que o gênio
e a estupidez, as mais sublimes virtudes e os vícios
mais ignóbeis? Por que a bondade, a doçura, a mansuetude
ao lado da maldade, da crueldade, da barbaria? Como
podem ser tão diferentes entre si as partes de um mesmo
todo homogêneo? Dir-se-á que é a educação que a modifi-
ca? Neste caso donde vêm as qualidades inatas, as inteligências
precoces, os bons e maus instintos independentes
de toda a educação e tantas vezes em desarmonia com o
meio no qual se desenvolvem?
Não resta dúvida de que a educação modifica as qualidades
intelectuais e morais da alma; mas aqui ocorre uma
outra dificuldade: Quem dá a esta a educação para fazê-la
progredir? Outras almas que por sua origem comum não
devem ser mais adiantadas. Além disso, reentrando a alma
no Todo Universal donde saiu, e havendo progredido durante
a vida, leva-lhe um elemento mais perfeito. Daí se
infere que esse Todo se encontraria, pela continuação, profundamente
modificado e melhorado. Assim, como se explica
saírem incessantemente desse Todo almas ignorantes
e perversas?
7. Nesta doutrina, a fonte universal de inteligência que abastece
as almas humanas é independente da Divindade; não
é precisamente o panteísmo.
O panteísmo propriamente dito considera o princípio
universal de vida e de inteligência como constituindo a Divindade.
Deus é concomitantemente Espírito e matéria;
todos os seres, todos os corpos da Natureza compõem a
Divindade, da qual são as moléculas e os elementos constitutivos;
Deus é o conjunto de todas as inteligências reunidas;
cada indivíduo, sendo uma parte do todo, é Deus ele
próprio; nenhum ser superior e independente rege o conjunto;
o Universo é uma imensa república sem chefe, ou
antes, onde cada qual é chefe com poder absoluto.
8. A este sistema podem opor-se inumeráveis objeções, das
quais são estas as principais: não se podendo conceber divindade
sem infinita perfeição, pergunta-se como um todo
perfeito pode ser formado de partes tão imperfeitas, tendo
necessidade de progredir? Devendo cada parte ser submetida
à lei do progresso, força é convir que o próprio Deus
deve progredir; e se Ele progride constantemente, deveria
ter sido, na origem dos tempos, muito imperfeito.
E como pôde um ser imperfeito, formado de idéias tão
divergentes, conceber leis tão harmônicas, tão admiráveis
de unidade, de sabedoria e previdência quais as que regem
o Universo? Se todas as almas são porções da Divindade,
todos concorreram para as leis da Natureza; como sucede,
pois, que elas murmurem sem cessar contra essas leis que
são obra sua? Uma teoria não pode ser aceita como verdadeira
senão com a cláusula de satisfazer a razão e dar conta
de todos os fatos que abrange; se um só fato lhe trouxer um
desmentido, é que não contém a verdade absoluta.
9. Sob o ponto de vista moral, as conseqüências são igualmente
ilógicas. Em primeiro lugar é para as almas, tal como
no sistema precedente, a absorção num todo e a perda da
individualidade. Dado que se admita, consoante a opinião
de alguns panteístas, que as almas conservem essa individualidade,
Deus deixaria de ter vontade única para ser
um composto de miríades de vontades divergentes.
Além disso, sendo cada alma parte integrante da Divindade,
deixa de ser dominada por um poder superior; não
incorre em responsabilidade por seus atos bons ou maus;
soberana, não tendo interesse algum na prática do bem,
ela pode praticar o mal impunemente.
10. Demais, estes sistemas não satisfazem nem a razão
nem a aspiração humanas; deles decorrem dificuldades insuperáveis,
pois são impotentes para resolver todas as questões
de fato que suscitam. O homem tem, pois, três alternativas:
o nada, a absorção ou a individualidade da alma antes
e depois da morte.
É para esta última crença que a lógica nos impele irresistivelmente,
crença que tem formado a base de todas as
religiões desde que o mundo existe.
E se a lógica nos conduz à individualidade da alma,
também nos aponta esta outra conseqüência: a sorte de
cada alma deve depender das suas qualidades pessoais,
pois seria irracional admitir que a alma atrasada do selvagem,
como a do homem perverso, estivesse no nível da do
sábio, do homem de bem. Segundo os princípios de justiça,
as almas devem ter a responsabilidade dos seus atos,
mas para haver essa responsabilidade, preciso é que elas
sejam livres na escolha do bem e do mal; sem o livre-arbítrio
há fatalidade, e com a fatalidade não coexistiria a
responsabilidade.
11. Todas as religiões admitiram igualmente o princípio da
felicidade ou infelicidade da alma após a morte, ou, por
outra, as penas e gozos futuros, que se resumem na doutrina
do céu e do inferno encontrada em toda parte.
No que elas diferem essencialmente, é quanto à natureza
dessas penas e gozos, principalmente sobre as condições
determinantes de umas e de outras.
Daí os pontos de fé contraditórios dando origem a cultos
diferentes, e os deveres impostos por estes, consecutivamente,
para honrar a Deus e alcançar por esse meio o
céu, evitando o inferno.
12. Todas as religiões houveram de ser em sua origem relativas
ao grau de adiantamento moral e intelectual dos homens:
estes, assaz materializados para compreenderem o
mérito das coisas puramente espirituais, fizeram consistir
a maior parte dos deveres religiosos no cumprimento de
fórmulas exteriores.
Por muito tempo essas fórmulas lhes satisfizeram a
razão; porém, mais tarde, porque se fizesse a luz em seu
espírito, sentindo o vácuo dessas fórmulas, uma vez que a
religião não o preenchia, abandonaram-na e tornaram-se
filósofos.
13. Se a religião, apropriada em começo aos conhecimentos
limitados do homem, tivesse acompanhado sempre o movimento
progressivo do espírito humano, não haveria incrédulos,
porque está na própria natureza do homem a necessidade
de crer, e ele crerá desde que se lhe dê o pábulo espiritual
de harmonia com as suas necessidades intelectuais.
O homem quer saber donde veio e para onde vai. Mostrando-
se-lhe um fim que não corresponde às suas aspirações
nem à idéia que ele faz de Deus, tampouco aos dados
positivos que lhe fornece a Ciência; impondo-se-lhe, ademais,
para atingir o seu desiderato, condições cuja utilidade
sua razão contesta, ele tudo rejeita; o materialismo e o
panteísmo parecem-lhe mais racionais, porque com eles ao
menos se raciocina e se discute, falsamente embora. E há
razão, porque antes raciocinar em falso do que não raciocinar
absolutamente.
Apresente-se-lhe, porém, um futuro condicionalmente
lógico, digno em tudo da grandeza, da justiça e da infinita
bondade de Deus, e ele repudiará o materialismo e o
panteísmo, cujo vácuo sente em seu foro íntimo, e que aceitará
à falta de melhor crença.
O Espiritismo dá coisa melhor; eis por que é acolhido
pressurosamente por todos os atormentados da dúvida, os
que não encontram nem nas crenças nem nas filosofias
vulgares o que procuram. O Espiritismo tem por si a lógica
do raciocínio e a sanção dos fatos, e é por isso que inutilmente
o têm combatido.
14. Instintivamente tem o homem a crença no futuro, mas
não possuindo até agora nenhuma base certa para defini-lo,
a sua imaginação fantasiou os sistemas que originaram a
diversidade de crenças. A Doutrina Espírita sobre o futuro
— não sendo uma obra de imaginação mais ou menos arquitetada
engenhosamente, porém o resultado da observação
de fatos materiais que se desdobram hoje à nossa vista
— congraçará, como já está acontecendo, as opiniões divergentes
ou flutuantes e trará gradualmente, pela força
das coisas, a unidade de crenças sobre esse ponto, não já
baseada em simples hipótese, mas na certeza. A unificação
feita relativamente à sorte futura das almas será o primeiro
ponto de contacto dos diversos cultos, um passo imenso para
a tolerância religiosa em primeiro lugar e, mais tarde, para a
completa fusão.

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