segunda-feira, 2 de junho de 2008

Livros do Plano - O Ladrão de Palavras

O ladrão de palavras, Francisco Duarte Mangas (texto), Alain Corbel (ilustração), Caminho, livro recomendado para pré-escolar, leitura em sala de aula


O ladrão de palavras é uma figura negra, sem qualquer marca que o identifique a não ser a silhueta humana e os olhos vermelhos. Posiciona-se estrategicamente num ramo de uma árvore, num plano superior ao da aldeia que ataca. O saco, que ainda não apresenta, é do seu tamanho, contrastando em cor (amarelo torrado) com o seu detentor. Eis a primeira leitura que fazemos do livro, pela capa e contracapa. Não há, por isso, nenhum mistério aparente relativamente ao autor do roubo de palavras, e sim acerca da forma como o faz, ou o que o leva a fazê-lo. Porque «as palavras, nesse tempo, eram de ouro.», lemos na primeira página. E o dourado das folhas e do saco aproxima-se do castanho da árvore e das casas, conferindo ao cenário uma melancolia triste de Outono, em que as folhas perdem o fulgurante verde da Primavera e do Verão. A melancolia decorre de uma tristeza crescente provocada pelo empobrecimento progressivo de todos, a quem são roubadas as palavras luminosas. A luz, bem como o contraste dia e noite, o alastramento da nuvem e o aspecto sombrio do bosque, são elementos centrais na representação metafórica do silenciamento. É nesta direcção que a narrativa avança, reforçando o seu pendor simbólico através da introdução intercalada de metáforas e comparações. Estabelece-se assim um diálogo entre a riqueza da linguagem (discursiva e pictórica) que preside ao livro e a sua ausência como tema narrativo, que confere profundidade e coerência interna à construção retórica da obra. A tentativa de resolução do problema não reside nunca na curiosidade, nem dos mais novos, que são condicionados pelos adultos – todos sabiam que era no bosque que o ladrão guardava o saco com as palavras, mas ir ao bosque era proibido, porque era perigoso. Não há, por isso, mistério. Só rostos fechados de crianças e adultos, cogumelos sombrios e desmesurados que ameaçam invadirem a aldeia, e um fenómeno: uma estranha barba verde que prolifera na face das crianças. Este é o momento de reacção dos adultos que, ao chamarem o médico, iniciam, sem o saber, um percurso contra o ladrão de palavras. Será porque as crianças ainda simbolizam a esperança? Será a barba verde um prenúncio ambivalente de tal sentimento? Só perante a receita prescrita pelo médico pode o leitor participar do momento do roubo, invisível, irrepreensível. Confirma-se então o método selectivo do ladrão, que escolhe palavras importantes, fortes, que dão sentido ao mundo e à vida das pessoas. Coragem é uma das que se destaca.
O nó desfaz-se num grito, o da coragem de uma mulher, que logo é imitada por outros sugerindo a força do grupo. «Uma mulher ergueu a voz e os braços na direcção da nuvem: afrontou (afrontar; o verbo que procurávamos) o silêncio. De repente, outros habitantes resgataram a coragem, a palavra coragem, adormecida no bosque dos cogumelos!» E esta mulher contraria o cinzento que preenche as formas geométricas das casas e das árvores do bosque, cujas folhas são pontos cinzentos que rodeiam ramos alinhados numa névoa monocromática. Aqui, a relação antitética das cores das guardas ganham finalmente sentido.
O desenlace fecha simbolicamente a narrativa, desfazendo um equívoco alimentado desde a capa: o ladrão de palavras não era um homem. «Ele, afinal, era uma palavra – a palavra medo.» Porque as palavras podem ser mais fortes que os homens, ensombrando-os e silenciando-os. A poesia deste texto alerta para o perigo da pobreza da linguagem, confrontando-o com os efeitos luminosos da sua riqueza.

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