Manuel António Pina explora, de livro para livro, o mesmo universo imaginário, onde o ideário nunca é traído nem tão pouco repetitivo. Por isso não será de espantar que a Sara de O País das Pessoas de Pernas para o Ar (1973) reapareça na penúltima história deste livro acompanhada pelo escaravelho contador de histórias, que retorna pela segunda vez ao volume, depois de ter feito companhia a Ana em «Conversa com um escaravelho». Convém não esquecer que esta personagem é a mesma que narra as histórias ao menino, no livro Histórias que me contaste tu (Assírio e Alvim). A presença das mesmas personagens em narrativas diversas dá à obra do escritor uma amplitude dialógica. O acto de contar assume na escrita de Manuel António Pina uma maior cumplicidade dialéctica entre o desvendar e o reencontrar. Firma-se um pacto afectivo neste reconhecimento. Tal pacto sustenta assim a intenção de absurdo que preside às narrativas. Pensar num mundo onde a lógica pode ser sempre desviada noutro sentido supera os paradigmas fechados de experimentações fantasiosas. Este absurdo não resulta de um cenário, ou sequer serve um mistério, um destaque diegético, como acontece por exemplo em Estranhões e Bizarocos de José Eduardo Agualusa (D. Quixote). Neste livro, o estranho e o diferente têm como finalidade um juízo afectivo assente no estilo imagético e sensorial do escritor. Agualusa reinventa a fábula, partindo do maravilhoso como herança literária. No final, a narrativa fecha-se com um remate moral. No caso das narrativas de Manuel António Pina o absurdo existe na sua base e não como recurso retórico. Este absurdo tem como finalidade esticar e desconstruir as lógicas, sejam elas discursivas, como acontece com o narrador fantástico que é o escaravelho da batata, sejam elas linguísticas, como acontece com a «Revolução das Letras» ou com o «Têpluquê», sejam elas religiosas/ míticas (como acontece com Lázaro e a sua alma), ou mesmo piscanalíticas, no caso do pensamento. Todavia, a organização do livro não apresenta nem organiza categorias a transformar, não cria qualquer método exterior ao ritmo próprio da sucessão de histórias. Este fluir natural que não obedece a limites é coerente com a própria intenção subversiva dos textos, e por isso fica a cargo dos limites físicos do livro o fim das histórias.
Aqui, o nonsense oferece a possibilidade de desviar cada objecto dos seus limites. Tudo pode ser relacionado numa liberdade criativa sem fim. A ideia de disparate é suplantada pelo espanto, porque as narrativas ficam sempre em aberto, suspensas até nova recuperação, até novo encontro. O jogo com o leitor constrói-se assim: entre o espanto e a procura, entre a primeira descoberta e o reencontro. A exploração do alfabeto através das consoantes e das vogais, das letras mais frequentes e das mais ausentes das palavras ou da sua forma, concede à escrita uma essência própria, diferente do sentido utilitário com que as letras são usadas em prol do sentido que procuramos. A proposta está lançada, a estratégia demonstrada, basta segui-la uma e outra vez, e descobrir novas combinações, novas alcunhas, novos prazeres… É claro que nem todas as histórias serão óbvias para os leitores, muitas soarão estranhas. Mas romper os limites não pode deixar uma sensação de reconforto como uma fábula tradicional. A escrita de Manuel António Pina permite desde cedo que o leitor conviva com esse mistério fundador da grande literatura: aquela que desconcerta e não entretém.
O que não significa ausência de ternura, de comicidade, de proximidade. Pelo contrário, abrir novas portas e explorar novos lugares só é possível com este pacto entre autor-leitor. Um pouco como acontece com Alice no País das Maravilhas. Se não nos sentíssemos convidados, aceitaríamos o desafio?
«A Ana tinha um ioiô muito bonito
que fazia tudo o que ela queria
quando ela dizia «para cima» o ioiô ia para baixo
quando ela dizia «para baixo» o ioiô ia para cima
Como gostava muito muito daquele ioiô
A Ana fazia de conta que não percebia
Para o ioiô ir para cima dizia «para baixo»
Para o ioiô ir para baixo dizia «para cima»
E como o ioiô gostava muito muito da Ana
Era o ioiô mais obediente que havia
Quando ia para cima fazia de conta que ia para baixo
Quando ia para baixo fazia de conta que ia para cima»
(pp. 51-52)
Aqui, o nonsense oferece a possibilidade de desviar cada objecto dos seus limites. Tudo pode ser relacionado numa liberdade criativa sem fim. A ideia de disparate é suplantada pelo espanto, porque as narrativas ficam sempre em aberto, suspensas até nova recuperação, até novo encontro. O jogo com o leitor constrói-se assim: entre o espanto e a procura, entre a primeira descoberta e o reencontro. A exploração do alfabeto através das consoantes e das vogais, das letras mais frequentes e das mais ausentes das palavras ou da sua forma, concede à escrita uma essência própria, diferente do sentido utilitário com que as letras são usadas em prol do sentido que procuramos. A proposta está lançada, a estratégia demonstrada, basta segui-la uma e outra vez, e descobrir novas combinações, novas alcunhas, novos prazeres… É claro que nem todas as histórias serão óbvias para os leitores, muitas soarão estranhas. Mas romper os limites não pode deixar uma sensação de reconforto como uma fábula tradicional. A escrita de Manuel António Pina permite desde cedo que o leitor conviva com esse mistério fundador da grande literatura: aquela que desconcerta e não entretém.
O que não significa ausência de ternura, de comicidade, de proximidade. Pelo contrário, abrir novas portas e explorar novos lugares só é possível com este pacto entre autor-leitor. Um pouco como acontece com Alice no País das Maravilhas. Se não nos sentíssemos convidados, aceitaríamos o desafio?
«A Ana tinha um ioiô muito bonito
que fazia tudo o que ela queria
quando ela dizia «para cima» o ioiô ia para baixo
quando ela dizia «para baixo» o ioiô ia para cima
Como gostava muito muito daquele ioiô
A Ana fazia de conta que não percebia
Para o ioiô ir para cima dizia «para baixo»
Para o ioiô ir para baixo dizia «para cima»
E como o ioiô gostava muito muito da Ana
Era o ioiô mais obediente que havia
Quando ia para cima fazia de conta que ia para baixo
Quando ia para baixo fazia de conta que ia para cima»
(pp. 51-52)
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