quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Guerreiro da Luz, de Paulo Coelho

TRECHO:
No Caminho de Kumano
Desci do trem numa tarde de fevereiro de
2001, e encontrei Katsura, uma japonesa de 29
anos.
- Seja bem-vindo ao caminho de Kumano.
Olhei para o lado de fora da estação, para
o sol poente que batia diretamente no meu rosto.
O que era o caminho de Kumano? Durante a via-
gem, tinha procurado saber como é que aquele
lugar remoto estava incluído no programa de mi-
nha visita ofcial, organizada pela Japan Founda-
tion. A intérprete me disse que uma amiga minha,
a poeta Madoka Mayuzumi, fzera questão que eu
visitasse o lugar, mesmo que tivesse apenas cinco
dias, e precisasse viajar de carro a maior parte do
tempo. Madoka tinha feito a pé o Caminho de 4 5
Santiago em 1999, e achava que esta era a manei-
ra de agradecer-me.
Ainda no trem, minha interprete comen-
tou: “o pessoal em Kumano é muito estranho”.
Perguntei o que queria dizer com isso, e ela limi-
tou sua resposta a uma palavra. “Religiosidade.”
De minha parte, resolvi não insistir: muitas vezes
conseguimos estragar uma boa peregrinação por-
que lemos todos os folhetos, os livros, as indica-
ções na Internet, os comentários de amigos, e já
chegamos no lugar sabendo tudo que precisamos
conhecer, sem deixar espaço para o mais impor-
tante da viagem - o inesperado.
- Vamos até a pedra - disse Katsura.
Caminhamos alguns metros até um peque-
no obelisco, com inscrições em duas faces, encra-
vadas no meio de uma esquina - e disputando o
espaço com pedestres, uma loja de conveniências,
carros, e motocicletas que passavam. A partir dali, 4 5
o caminho de Kumano se dividia em dois.
- Se você seguir para a esquerda, irá fazer a
peregrinação pelo caminho que o imperador usa-
va antigamente. Se seguir pela direita, fará o ca-
minho das pessoas comuns comentou Katsura.
- Talvez o caminho do imperador seja mais
bonito, mas com certeza o caminho das pessoas
comuns e mais animado.
Ela pareceu fcar contente com a resposta.
Entramos no carro, nos dirigimos para as mon-
tanhas cobertas de névoa. Enquanto conduzia,
Katsura explicava um pouco sobre o lugar: Ku-
mano é uma espécie de península cheia de colinas,
forestas e vales, onde várias religiões conviviam
pacifcamente. As predominantes eram o budis-
mo e o xintoísmo (religião nacional do Japão,
anterior à infuência de Buda, e que consiste na
adoração das forças da natureza), mas ali podia
ser encontrado todo tipo de fé e de manifestação 6 7
espiritual.
- Quantos quilômetros de peregrinação? -
eu quis saber.
Ela pareceu não entender. Pedi que a inter-
prete traduzisse em japonês, mas mesmo assim
Katsura parecia perplexa com a minha pergunta.
- Depende de onde você saiu - disse fnal-
mente.
- Claro. Mas no caso do Caminho de San-
tiago, por exemplo, se você sair de Navarra são
aproximadamente 700 kms. E aqui?
- Aqui, as peregrinações começam quando
você deixa a sua casa, e terminam quando você
volta para ela. Neste caso, como você mora no
Brasil, deve saber a distância.
Eu não sabia, mas a resposta fazia sentido.
A peregrinação é uma etapa de uma viagem; lem-6 7
brei-me que depois de percorrer o caminho de
Santiago, na Espanha, só fui realmente entender
o que me acontecera quando passei quatro meses
em Madrid, antes de voltar para casa.
- A gente vê as coisas, e não compreende
de imediato - continuou Katsura. - É preciso dei-
xar em casa o homem que você está acostumado
a ser; ele fca lá, e apenas a parte boa continua a
ser alimentada pela energia da Deusa, que é mãe
generosa. A parte que lhe prejudica termina mor-
rendo por falta de alimento, já que o demônio
está muito ocupado com outras pessoas, e não
tem tempo de fcar cuidando de alguém cuja alma
não está ali.
Subimos por quase duas horas um pequeno
caminho sinuoso na montanha, até que a furgo-
neta parou numa espécie de albergue. Antes que
eu entrasse, Katsura comentou:
- Aqui vive uma mulher que não sabemos
quantos anos tem, por isso a chamamos de De-8 9
mônio Feminino. Vou descer até a aldeia próxi-
ma para chamar um lenhador que irá lhe explicar
como deve ser feito o caminho.
A noite já tinha começado a descer, Katsu-
ra desapareceu na bruma, e eu fquei ali, esperan-
do que o Demônio Feminino abrisse a porta.

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