Inaudita guerra da Avenida Gago Coutinho e outras histórias, Mário de Carvalho, Caminho, recomendado para 8º ano, leitura orientada, grau de dificuldade III
Esta inaudita guerra fica esclarecida logo no seu título. O autor textual cria um pacto de incredulidade relativamente ao que narra, que o aproxima do seu leitor e lhe cria expectativas relativamente a possíveis situações inusitadas.
Desta vez, encontram-se os automobilistas com um exército árabe, em plena Av. Gago Coutinho, em Lisboa.
A descrição da avenida, da rotunda do Areeiro, bem como das áreas limítrofes, como as reconhecemos hoje, viabiliza o efeito de surpresa e humor, porque o leitor reconhece o seu espaço como verdadeiro e real. Se a descrição espacial correspondesse à época anterior, o leitor não seria chamado para essa cumplicidade narrativa que permite que o absurdo funcione. Pelo contrário, uma descrição irreconhecível tornava toda a narrativa mais distante, tornando-a histórica e fantástica, o que não é o caso.
Há no entanto que ressalvar que o elemento visual é aqui determinante e o efeito de humor funciona muito melhor em leitores que de facto conheçam o espaço. Para o leitor que o não reconhece, embora compreenda as subtilezas irónicas acerca das forças policiais (cavalos e alfanges em direcção a uma companhia da tropa de intervenção, munida de viseiras e bastões, que desata a fugir perante a ameaça da cavalaria árabe), não é possível desfrutar tão plenamente da descrição.
Para além do espaço, também as personagens são descritas de acordo com o tempo presente: os árabes são retratados, pelas atitudes e opiniões, segundo a perspectiva contemporânea, sem preocupações históricas. Também eles são entendidos como pessoas que subitamente se vêem numa situação inverosímil.
Os elementos constitutivos da narrativa são desenhados com traços verosímeis, para apenas a situação ser irreal.
No entanto, a explicação para o encontro entre automobilistas e guerreiros árabes, numa manhã cheia de trânsito, na Av. Gago Coutinho, é dada logo no início do conto, respeitando a linearidade causal. Deriva da mitologia grega e segue os preceitos clássicos, socorrendo-se da imperfeição humana das figuras do Olimpo, que dormitavam e se esqueciam das suas obrigações, como teria acontecido com Clio nessa manhã.
Comprova-se a inverosimilhança ao nível da diegese. O inaudito está assim dentro e fora da narrativa: é extravagante que a musa tenha adormecido, é extravagante que o exército se encontre com um engarrafamento na av. Gago Coutinho, é inaudita a proeza histórica do próprio Gago Coutinho.
Mário de Carvalho recorre mais do que uma vez ao estranhamento de situação, ao longo deste livro de contos, sempre com a manifesta intenção crítica, levando ao ridículo o poder instituído, as normas e a passividade do indivíduo comum, cujas reacções perante o inusitado são geralmente de aceitação.
Neste conto, como nos restantes que integram o volume, cada palavra, cada estrutura, estão minuciosamente escolhidas para servirem o propósito temático do texto. A riqueza lexical, para além de se ter tornado uma imagem de estilo do autor, é também sinónimo de uma exigência de rigor discursivo, actuante e ético, de que esta escrita é um paradigma. Por isso, também, irónica.
Desta vez, encontram-se os automobilistas com um exército árabe, em plena Av. Gago Coutinho, em Lisboa.
A descrição da avenida, da rotunda do Areeiro, bem como das áreas limítrofes, como as reconhecemos hoje, viabiliza o efeito de surpresa e humor, porque o leitor reconhece o seu espaço como verdadeiro e real. Se a descrição espacial correspondesse à época anterior, o leitor não seria chamado para essa cumplicidade narrativa que permite que o absurdo funcione. Pelo contrário, uma descrição irreconhecível tornava toda a narrativa mais distante, tornando-a histórica e fantástica, o que não é o caso.
Há no entanto que ressalvar que o elemento visual é aqui determinante e o efeito de humor funciona muito melhor em leitores que de facto conheçam o espaço. Para o leitor que o não reconhece, embora compreenda as subtilezas irónicas acerca das forças policiais (cavalos e alfanges em direcção a uma companhia da tropa de intervenção, munida de viseiras e bastões, que desata a fugir perante a ameaça da cavalaria árabe), não é possível desfrutar tão plenamente da descrição.
Para além do espaço, também as personagens são descritas de acordo com o tempo presente: os árabes são retratados, pelas atitudes e opiniões, segundo a perspectiva contemporânea, sem preocupações históricas. Também eles são entendidos como pessoas que subitamente se vêem numa situação inverosímil.
Os elementos constitutivos da narrativa são desenhados com traços verosímeis, para apenas a situação ser irreal.
No entanto, a explicação para o encontro entre automobilistas e guerreiros árabes, numa manhã cheia de trânsito, na Av. Gago Coutinho, é dada logo no início do conto, respeitando a linearidade causal. Deriva da mitologia grega e segue os preceitos clássicos, socorrendo-se da imperfeição humana das figuras do Olimpo, que dormitavam e se esqueciam das suas obrigações, como teria acontecido com Clio nessa manhã.
Comprova-se a inverosimilhança ao nível da diegese. O inaudito está assim dentro e fora da narrativa: é extravagante que a musa tenha adormecido, é extravagante que o exército se encontre com um engarrafamento na av. Gago Coutinho, é inaudita a proeza histórica do próprio Gago Coutinho.
Mário de Carvalho recorre mais do que uma vez ao estranhamento de situação, ao longo deste livro de contos, sempre com a manifesta intenção crítica, levando ao ridículo o poder instituído, as normas e a passividade do indivíduo comum, cujas reacções perante o inusitado são geralmente de aceitação.
Neste conto, como nos restantes que integram o volume, cada palavra, cada estrutura, estão minuciosamente escolhidas para servirem o propósito temático do texto. A riqueza lexical, para além de se ter tornado uma imagem de estilo do autor, é também sinónimo de uma exigência de rigor discursivo, actuante e ético, de que esta escrita é um paradigma. Por isso, também, irónica.
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