Ele destoava na estante colorida da livraria. Aquele roxo da capa me chamou a atenção. Não resisti e levei o danado para tomar um café. Dei uma folheada e me encantei com as ilustrações e com um pequeno detalhe do projeto gráfico: a numeração das páginas estava impressa de forma incomum. Incomum. É a palavra certa para descrever A Maldição da Moleira (Índigo, com ilustrações de Alê Abreu, Girafinha). Moleira? O Aurélio explica: “A abóboda do crânio”. Difícil? Heitor explica: “Algumas latinhas de molho de tomate têm um ponto saliente na tampa. Ao apertar este ponto, a lata se abre. Os bebês funcionam ao contrário. Nosso “ponto” se chama “moleira”, e quando você aperta a cabeça do bebê se fecha”. A avó de Heitor apertou sua moleira quando ele era um bebezinho e com isso, ele adquiriu consciência. O livro narra, então, a visão consciente do bebê Heitor diante do convívio com Teletubbies, móbiles, um gato “selvagem”, o genial Comandante Oscar, uma mãe atenciosa e um pai desastrado, entre outros personagens.
Devo confessar que o conteúdo do livro é tão instigante quanto a sua capa. Depois da sua leitura fiquei olhando diferente para os bebês que passavam por mim nos shoppings, praças e ruas. Procurava descobrir em seus olhares um quê da “consciência” do Heitor que, antes de completar um ano, já sabia que “quando mamãe está contente, todos estão contentes”.
Ainda não falei das ilustrações do meu livro roxo preferido. São de Alê Abreu e, nesta edição, as sensações que tenho ao ver seus desenhos me remetem ao belíssimo-louco-incomum-genial livro Triste Fim do Pequeno Menino Ostra e Outras Histórias (Tim Burton, Girafinha). O Heitor de Alê Abreu tem um rosto expressivo e olhos enormes que ora lembram a doçura do olhar pidão do gato de botas do Sherek 2, ora demonstram a sagacidade do personagem felino. É isso: ele conseguiu fechar a moleira da sua criação que aparenta uma infância-adulta em parceria com o texto de Índigo. Alê também ilustrou outros livros que gostamos muito e que estão em nossa estante como As Cocadas (Cora Coralina, Global) e ABC do Mundo Árabe (Paulo Daniel Farah, SM). Cada um com uma identidade visual. Belas imagens.
“Elas acontecem na mesa da cozinha, e normalmente têm duração de uma hora. Papai passa a maior parte do tempo entre a cozinha e a lavanderia, fumando e expelindo fumaça para trás. Aproveita que mamãe não está vendo para bater as cinzas do cigarro no tanque. Durante amaior parte do tempo é mamãe quem fala. No começo tudo é falado como num seriado de televisão. Começa com uma explicação da situação e uma série de questões que papai e mamãe consideram erradas. Durante esta parte da conversa, você deve permanecer calado. Se nessa etapa inicial você disser alguma coisa, colocará tudo em risco, e a conversa pode terminar
- Você sabe que sua mãe está certa.
Daí ele repete tudo o que ela falou, só que mais rápido. Mamãe volta a falar mais algumas coisas e diz que chegou a sua hora de falar. Nessa hora você não deve falar. Você fica calado, e depois de um tempo de silêncio papai diz que eles estão fazendo tudo isso para o seu próprio bem. Você permanece calado e papai volta para a lavanderia. Acende outro cigarro. Mamãe vai perguntar se você quer um leitinho. Você responde que não tem fome. E eles, ou papai ou mamãe, insistem para você dizer alguma coisa. Você deve esperar para que eles insistam algumas vezes. Daí você pede desculpas. Se você só pedir desculpas, sem se defender, eles aliviam a pena que será imposta. Se você não se agüentar de ódio e fizer a besteira de se defender, você será ouvido, mas terá que cumprir a pena do mesmo jeito.”
A Maldição da Moleira me conquistou primeiro por seu projeto gráfico. Depois pelo argumento fora do comum. O texto de Índigo e as ilustrações de Alê Abreu já fazem parte dos meus favoritos. Experimente. No pior das hipóteses você vai se sentir incomodado. E isso já é ótimo. O que posso dizer mais sobre este livro?
- Sinistro!!! E ótimo!!!
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