segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Livros do Plano - Trisavó de pistola à cinta e outros contos

(Trisavó de pistola à cinta e outros contos, Alice Vieira, Caminho; livro recomendado para o 5º ano, 2º ciclo, leitura orientada em sala de aula, grau de dificuldade 1)


Trisavó de pistola à cinta não deixa os pré-adolescentes (e adolescentes) indiferentes. Refiro-me ao título. Esperam uma enorme aventura, algo mirabolante, totalmente improvável e por isso surpreendente. No fundo, aquilo que em regra esperam de qualquer história. Quanto à capa, com aquela figurinha pretensamente cómica e corajosa, condiz com a previsão do título. Até aqui a recepção está bem encaminhada e o processo de sedução coroado de êxito.
Acontece que a imaginação de Alice Vieira continua a levá-la para caminhos bem terrenos, por onde passam famílias normais, com os seus relacionamentos únicos, que não cabem em generalizações mas fazem sempre lembrar qualquer coisa. Esse é o tom da autora, cadenciado por uma melodia doce, e este livro de contos não foge à regra. Cada narrativa encerra um conflito, uma memória, uma decisão. Sempre por uma voz que encarna numa personagem e lhe concede, como que por magia, o poder de desvendar a alma de todos pelos seus comportamentos. Esta voz não corresponde, obviamente, a um discurso adolescente, mas a sua subtil densidade reforça a segurança do texto.
A sensação que os adolescentes têm quando se iniciam na leitura do livro é, inevitavelmente, de algum desânimo, já que este não corresponde às expectativas criadas a partir do paratexto. Mas, tal processo não se esgota nesta univocidade. O conto «Trisavó de pistola à cinta» versa precisamente a ‘lenda’ de uma brava antepassada de uma família comum, que lutou contra os franceses durante as Invasões a Portugal. O mito alimenta o ego da família, que um dia decide procurar os vestígios de tão famosa personagem e acaba por descobrir que a sua coragem não passava de uma fraude. O confronto do mito com a realidade fecha-se aqui, quando o leitor se identifica com a frustração do clã.
O trabalho com a personagem continua a ser o centro de cada narrativa, e apesar da acção se concluir (neste caso um pequeno episódio, dada a tipologia específica do texto), tudo fica em aberto, o que nem sempre favorece a interpretação. Os contos deixam o leitor treinado com água na boca, o que acontece muitas vezes e se comprova com o romance O casamento da minha mãe, em que o efeito de suspense atinge o seu ponto máximo, e nos faz desejar uma sequela, como aconteceu com a trilogia dedicada a Mariana, um ícone para toda uma geração.
O que de alguma forma pode afastar os leitores de Alice Vieira é o seu tom literário, que não simplifica o discurso nem reduz um conflito ao senso comum. A visão elaborada que nos dá de adultos, crianças, idosos, enfim, das pessoas enquanto entidades individuais, obriga o leitor a uma observação mais acurada do que o rodeia, sob pena de não poder receber aquele livro.
O desafio de um modelo narrativo mais curto para um público não infantil cumpre-se, na medida em que mantém a coerência interna a que a sua obra obedece. No entanto, não cativa leitores incipientes. Por outro lado, os bons leitores (geralmente boas leitoras) lêem um livro como este com bastante facilidade no 5º ano. Porque já sabem, intuitivamente, que um pacto de leitura não implica uma satisfação automática e sim um desafio. Alice Vieira persiste em manter alta a fasquia e por isso se lhe agradece.

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