quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Livro do amigo e do Amado, de Raimundo Lúlio / Ramon Llull

Sobre a vida que levava o ermitão Blanquerna

Blanquerna costumava levantar-se à meia noite, abria as janelas de sua cela para ver o céu e as estrelas e começava sua oração o mais devotadamente que podia, de tal modo que toda a sua alma estivesse mergulhada em Deus e seus olhos em lágrimas e prantos. Blanquerna contemplava Deus e chorava longamente até a madrugada. Depois entrava na igreja, tocava para as matinas, e vinha o diácono que o ajuda a rezá-las. Após a aurora, cantava a missa. Terminada a missa, Blanquerna dirigia algumas palavras sobre Deus ao diácono, para que se enamorasse dEle, e ambos, falando de Deus e de suas obras, choravam juntos por causa da grande devoção que sentiam nas palavras que diziam. Depois disto, o diácono entrava na horta, trabalhava um pouco e Blanquerna saía da igreja e distraía sua alma do trabalho que tinha suportado, e dirigia seu olhar para as montanhas e as planícies para daí tirar alguma recreação.

Logo que Blanquerna se sentia reconfortado, entrava em oração e contemplação ou lia os livros da Divina Escritura ou o "Livro de Contemplação", e permancia assim até a hora de terça. Depois, rezavam a terça, a sexta e nona; e depois da terça, o diácono retornava e preparava algumas verduras ou legumes para Blanquerna. Na horta, ou em outras coisas, Blanquerna trabalhava para não ficar ocioso e ter melhor saúde. Entre o meio-dia e a hora de nôa, depois de ter comido, voltava sozinho à igreja para dar graças a Deus.

Terminada a sua oração, costumava passear uma hora pela horta até a fonte, ou por todos aqueles lugares onde melhor pudesse alegrar sua alma. A seguir, dormia para melhor aguentar o trabalho da noite. Terminado o sono, lavava suas mãos e o seu rosto e esperava até que tocassem as vésperas, para as quais voltava o diácono. Acabadas as vésperas, diziam as completas, e o diácono ia embora. Blanquerna considerava tudo aquilo que mais lhe agradasse e melhor o preparasse para entrar em oração.

Após o pôr-do-sol, Blanquerna costumava subir ao terraço que estava sobre a sua cela e permanecia em oração até o primeiro sono, olhando o céu e as estrelas com os olhos chorosos e o coração devoto, absorvido nas honras de Deus e nas faltas que os homens cometem contra Ele neste mundo. Blanquerna, contemplando do pôr-do-sol ao primeiro sono, ficava em tão grande recolhimento e fervor, que, já uma vez na cama e dormindo, às vezes lhe parecia que continuava com Deus, tão forte era a sua oração.

Blanquerna permaneceu nessa vida e nessa felicidade até conseguir que todas as pessoas daquelas redondezas tomassem grande devoção às virtudes do altar da Santa Trindade que havia naquela capela. E, movidos pela devoção, vinham à capela muitos homens e mulheres que perturbavam Blanquerna em sua oração e contemplação. E para que as pessoas não perdessem a devoção que tinham àquele lugar, hesitava em dizer-lhes que não viessem mais, e por isto Blanquerna mudou sua cela para um monte que distava uma milha da igreja e outro tanto do local onde ficava o diácono. Permaneceu nesse lugar e não queria à igreja nas horas em que aí houvesse gente, nem queria que algum homem ou alguma mulher viesse para aquela cela para onde se tinha mudado.

Assim viveu o ermitão Blanquerna, considerando que nunca estivera em tão prazerosa vida nem tão bem disposto para levantar sua alma a Deus. Tão santa vida era aquela em que Blanquerna estava que Deus o abençoava e encaminhava para lá todos os que tinham devoção pelas virtudes daquele lugar onde estava a capela; e assim o Papa, os cardeais e seus oficiais cresciam na graça de Deus pela santa vida de Blanquerna.

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