domingo, 30 de setembro de 2007

Vida de Pi (A) - Yann Martel

Em Julho de 1977 um navio de carga japonês chamado Tsimtsum afundou-se em pleno Oceano Pacífico sem que, até hoje, se conheça as razões para tal naufrágio. Nesse navio, uma tripulação de vários homens, uma família de 4 pessoas e dezenas de animais selvagens perderam a vida sem que alguma vez qualquer corpo, ou parte ele, aparecesse. No entanto, houve alguém que sobreviveu para contar uma história tão surrealista que é difícil perceber onde acaba a realidade e começa a ficção, esta é a sua história.
Piscine Molitor Patel é um miúdo indiano que vive com os seus pais e irmão numa aldeia indiana chamada Pondicherry. O seu pai é director e dono do Jardim Zoológico local e isso dá azo a considerações muito interessantes de Patel sobre vários animais e, achei especialmente interessante a tese dele sobre o facto de os animais serem mais felizes a viver em cativeiro do que aqueles que vivem em estado selvagem. Não só tece as considerações, como dá exemplos históricos para provar a sua tese. E estas considerações não só são muito interessantes e didácticas, como também são muito importantes para o desenrolar da história, pois é através delas que percebemos o comportamento de certos animais.

Patel é um miúdo de 16 anos iguais a tantos outros. Adora a sua vida e adora igualmente o jardim e os animais que nele habitam. No entanto Patel tem um pequeno problema: não acha piada ao seu nome. Esse estranho nome foi-lhe dado em honra da Piscine Molitor, piscina que fazia a glória aquática de Paris por alturas dos Jogos Olímpicos de 1924. Imaginem alguém com nome de piscina. E vai daí, o seu nome era alvo de constante gozo por parte dos colegas e mesmo os diminutivos não ajudavam muito à festa... Pissinha Patel era um deles... imaginem o diálogo: "Ó Pissinha, está a mijar pra parede?". Até que um dia ele se lembrou e escreveu no quadro da escola "O meu nome é Piscine Molitor Patel, conhecido por todos como Pi Patel. Pi=3,14". Nasceu Pi Patel, também chamado O 3,14 Patel, aquele que se escondia debaixo de um telhado assente em dois postes. Curioso!

Patel é muito curioso e tal curiosidade leva-o a adoptar três religiões completamente distintas: Cristã. Hindu e Islâmica. Aqui Patel tece considerações muito curiosas e pertinentes sobre as três religiões, compara-as, professa-as e chega à conclusão que o étimo das três é o mesmo, existindo apenas um só Deus comum a todas elas.

Posteriormente e devido a problemas políticos, a família resolve emigrar para o Canadá. Vendem grande parte dos animais e resolvem levar os restantes consigo a fim de os vender nos Estados Unidos.

No dia 21 de Junho embarcam, a 2 de Julho, o navio naufraga.

A partir desse fatídico dia inicia-se a segunda parte do livro e aquela onde os acontecimentos são mais marcantes, onde o sentido do livro vem ao de cimo.

Sem saber muito bem como, vê-se num bote salva-vidas com uma zebra ferida, uma orangotango fêmea, uma hiena malhada e um poderoso tigre de Bengala. Surrealista são os acontecimentos que sucedem. Durante 227 dias, os mecanismos da cadeia alimentar sobressaem de uma forma natural e cruel. Quase a raiar a loucura, Pi Patel narra uma aventura onde a convivência entre as espécies é estranha, onde por vezes somos assaltados pela dúvida da veracidade do relato, pois os acontecimentos são tão surreais, violentos e fantásticos que, não só é difícil acreditar como também é impossível imaginarmos tal horror.

Mas Patel explana uma espantosa história de coragem e de resistência perante circunstância extraordinárias e tragicamente difíceis, uma verdadeira odisseia hipnotizadora onde, quase como um impacto, uma questão primordial se levanta: Existe Deus? Se existe, de certo protegeu e acompanhou Pi Patel.

Yann Martel, escritor espanhol residente no Canadá, descobriu esta história um pouco por acaso. Desde logo contactou Piscine e após algumas conversações, acabou por convencer Patel a contar a sua aventura. Em formato de diário, dividido em 100 capítulos, Martel constrói um livro fabuloso, de um humanismo tão profundo quanto animalesco.

Um humanismo tão profundo quanto animalesco...

Esta expressão é devido à fase final do livro. É que esse final é simplesmente desconcertante. Nesse final ficamos com uma séria dúvida, a mim pareceu-me que a história de Patel é real mas, o relato dos acontecimentos, ou pelo menos a forma como ele os conta, não passam de uma metáfora de acontecimentos ainda mais horríveis, trágicos e cruéis do que os narrados por Patel. Fiquei na dúvida e duvido que alguma vez as esclareça. Desconcertante!

Acreditem, este é um livro portentoso, uma obra prima que aconselho a todos aqueles que apreciem uma boa história e que apreciem também a possibilidade de pensar com o livro. Ele é didáctico, construtivo, verídico e faz-nos pensar da primeira à última página.

Um comentário: