domingo, 30 de dezembro de 2007

Grifos Do Passado, de Fernando M. Guimarães

NOTA DO AUTOR



Resolvi escrever um livro sobre a minha religião, a Umbanda. Mas para quem o dirijo? Para os entendidos, aos neófitos, ou aos iniciantes? Aos membros da minha corrente da Sociedade Espiritualista Edmundo Rodrigues Ferro – o Terreiro do Pai Maneco ou aos espiritualistas? A quem? Como é difícil escrever um livro, considerando que no prefácio já estou em dúvida. Resolvi: vou escrever para mim e para quem quiser ler, seja ele quem for. O tema já escolhi, só falta o estilo. Devo falar dos orixás, das linhas, das correspondências, dos números de espíritos existentes, do bem e do mal, do grande engano do exu sórdido, ou do exu bom e correto que conheço? Vou descrever a imaginária e complicada Umbanda esotérica, ou a Umbanda que pratico e amo? O que devo escrever sobre as correspondências entre as várias falanges, das linhas da Umbanda pregadas pelos autores, a do orixá maior e orixá menor, falanges superiores e sub-falanges? Ou devo me limitar aos fundamentos da Umbanda simples praticada pelo povo? Vou me dirigir à elite ou à massa? Não posso me contradizer, se vou escrever para mim, tenho que me dirigir a quem pertenço e gosto: às massas.

Sentado no computador, criei uma tecla imaginária: "deletar o que os outros dizem". Não hesitei, acionando este adequado recurso. Só vou depender de mim, e da minha cumplicidade com os espíritos.

Conto minha vida espiritual, do meu jeito, as coisas tristes e as alegres, falo muito das entidades com quem trabalho e por isso as conheço. Suas histórias, comportamentos e atuações são iguais às de todas as outras entidades. Quando eu mencionar o nome do Caboclo Akuan, entendam qualquer caboclo dirigente de trabalho, e quando mencionar o do Pai Maneco, falo de todos os pretos-velho que trabalham na Umbanda. Cada espírito que mencionar, troque o nome pelo de sua entidade, e tenha certeza, ele será igual.

Estou contando, desde minha infância, a passagem na linha kardecista, até ser feito pai-de-santo na Umbanda. E conto com fidelidade os meus sentimentos e o que os espíritos me ensinaram.


Que Oxalá nos Abeçoe

Fernando M. Guimarães



PREFÁCIO


Redigir o prefácio de um livro gera imenso
prazer ao mesmo tempo em que exige uma grande dose de
responsabilidade. Quando o assunto em pauta nos é
familiar, esta tarefa é ainda mais árdua, pois não
temos um olhar suficientemente neutro para uma
abordagem objetiva. Nada , porém, é tão gratificante
quanto compartilhar uma paixão e, lisonjeada, tento me
colocar à altura de tal empreendimento.
Este livro nasceu de um grande amor pela
religião escolhida; é um depoimento genuíno de
Fernando Guimarães, cuja familiaridade com o mundo das
letras vem da infância, e cujo apreço pela
espiritualidade é amplamente reconhecido.
Grifos do Passado vem suprir uma lacuna,
organizando os princípios seguidos no Terreiro do Pai
Maneco de modo claro e inequívoco. Escrito numa
linguagem coloquial e sem os excessos de didática que
poderiam tornar a leitura enfadonha, o livro é formado
por pequenos contos, numa seqüência dinâmica de
experiências que envolvem, ensinam e, muitas vezes,
divertem.
Devemos pontuar, entretanto, que a intencional
facilidade da leitura, conduzida com sabedoria pelo
autor, comporta conceitos filosóficos de uma
profundidade ímpar.
Ao leitor atento, que sonhou com um livro
simples, porém profundo, que fale da necessidade da
ousadia sem perder de vista a importância da
disciplina, aqui está, finalmente, uma lição de vida:
as histórias de Pai Fernando de Ogum, nosso querido
Babalaô.


Cristina Mendes














QUEM SOU EU?

Como sempre faço, fiquei parado na frente do congá em busca de uma inspiração para dar início a mais uma gira de Umbanda. É o momento da minha reflexão, em que limpo todas as minhas mazelas materiais. Comecei pedindo perdão pelos meus erros do dia, quando me lembrei das palavras do Pai Maneco: "perdão não se pede, conquista-se..." Meu pensamento foi longe. Tenho tantos pecados. Será que um dia poderei merecer a alegria de ver conquistado o perdão de todos os meus erros?

O Terreiro de Umbanda Pai Maneco abriga mais de trezentos médiuns, além de reunir, em suas giras quatrocentas pessoas na assistência. Tem sede própria, arrojada construção e ótima localização. Eu sou o pai-de-santo, o dirigente, aquele que está sempre com a última palavra. A música é refinada, atraindo alguns músicos profissionais, o que torna nossas giras um encontro cultural. Vários pontos cantados nasceram dentro do terreiro. É grande, com bom conceito, e muitas pessoas vêm de longe só para serem atendidas com uma consulta. A casa tem rígidos princípios morais e filosóficos. Considero-me um pai-de-santo polêmico, com teorias inovadoras, às vezes contrárias à prática comum da Umbanda, mas, paradoxalmente, sou preso à história. Não fujo da tradição da Umbanda no Brasil. É a nossa religião, a única brasileira, oficializada por Zélio de Moraes em 1908 no Rio de Janeiro.

Não quero incorrer no erro de enterrar comigo a experiência de uma vida. Quando os jovens me pedem a indicação de livros que ensinam a Umbanda, não sei o que dizer. As obras não são claras, e estão além da compreensão popular, talvez por não serem psicografadas, mas escritas dentro dos conceitos de cada autor, quase sempre divergentes. Não vou fugir à regra, mas estou convicto que meus conhecimentos foram transmitidos pelas entidades. Ouso me fantasiar de escritor, mas quando me for, terei deixado impressa minha história, aquela que norteia minha vida, com a ressalva de que hoje o que creio e ensino poderá amanhã ser modificado perante o surgimento de verdades mais verdadeiras.
Às vezes me pergunto: quem sou eu? Sou ainda aquele menino medroso, talvez o entusiasmado kardecista contra rituais, ou o já velho pai-de-santo, cheio de fé e experiência? Serei uma mistura de tudo? Joguei fora minha inocência, meus medos, minha arrogância, minha humildade, meu ódio ou meu amor? Gosto de modificar, por ser inovador, ou gosto de ser polêmico, para ser incomum? Sou bom, ou sou ruim? Afinal, quem sou eu? Ninguém pode saber, apenas eu mesmo: sou um velho cheio de juventude, uma pessoa alegre cheia de tristezas, uma mistura do bom e do ruim. Filtro o que ouço, para não me confundir, e olho tudo para aprender. Não julgo ninguém, e não ligo se me julgarem. A crítica ou o elogio não me afetam. Gosto de amar, mas não ligo se não me amarem. Eu sou um homem humilde e um vaidoso pai-de-santo, em busca da liberdade, a única coisa que ainda não conheço...

Rememoro minha infância, começo desta história.


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