sábado, 12 de janeiro de 2008

Relíquia (A) - Eça de Queirós



Para quem já teve a oportunidade de apreciar um romance do mestre Eça de Queirós, deve saber que uma das suas características era o de efectuar, e isso está presente em todos os seus romances, uma crítica social mordaz, irónica mas, no fundo, uma crítica que tentava ser construtiva.
Neste romance que me proponho a opinar, romance esse considerado por muitos como a sua "obra-prima" ou aquela onde ele conseguiu explanar toda a sua corrosiva veia crítica e irónica, o mestre Eça, que publica este romance em 1887, época em que vive em Londres, dominado por pensamentos e teorias agnósticas que faziam então furor entre os intelectuais ingleses, mas, o mestre Eça constrói todo um trama assente sobretudo na observação dos costumes, nomeadamente uma observação que se propõe a narrar os costumes das gentes beatas e a hipocrisia que daí surgia.
Narrado sempre na primeira pessoa, o escritor começa por nos apresentar o seu principal protagonista: Teodorico Raposo, ele próprio o narrador da história.
Toda a narrativa aborda a própria vida de Teodorico. Homem que órfão aos 7 anos, foi deixado aos cuidados da sua tia, D. Maria do Patrocínio, mulher devota, púdica, que se guiava pelos padrões de uma antiga burguesia dominada pela religião. Beata e tremendamente receosa de Deus, a Titi envia Teodorico, aos nove anos, para um colégio interno e, após estadia em Coimbra, Teodorico acaba por regressar a Lisboa anos depois e já doutor. Toda essa fase é já dominada por um carácter devasso de Teodorico que, para além de ser um calão, encontra em tudo formas de diversão.
Feliz de ter um sobrinho doutor e muito crente e cumpridor dos seus deveres para com Deus (Teodorico passa a vida a simular idas à igreja e mostra-se sempre muito devoto em frente da Titi), a tia começa-lhe a dar uma rica mesada, começando assim Teodorico uma vida "farta e regalada".
Bom, mas um problema surge. A tia estava velha, era rica e, pelo que Teodorico se apercebe, ela prepara-se para deixar grande parte da sua fortuna à igreja e, é numa conversa com um amigo do pai que se convence que a única forma de ficar com a fortuna toda da velha é precisamente, ele, Teodorico Raposo, ser mais santo que o próprio Jesus Cristo.
Imaginem!
Assim e também porque passava por uma fase de profunda desilusão amorosa, ele resolve "cravar" uma viagem à sua tia, uma viagem que o irá levar à Terra Santa.
Essa viagem, alegadamente uma peregrinação em nome da Titi, irá transformar-se numa viagem louca, metendo uma amante inglesa em pleno Egipto que lhe faz a vez das idas à igreja..., uma estadia em Jerusalém onde, para além de ele achar tudo horrível, acaba por sair do Santo Sepulcro a praguejar, até a uma carga de porrada que ele leva de um escocês por ser apanhado a espreitar a filha deste enquanto tomava banho.
Hilariante!
Mas, antes desta viagem "santa", onde Teodorico se propunha a ser mais santo do que J.C., ele promete à Titi que lhe irá trazer uma relíquia que é nada mais, nada menos do que um bocado da própria coroa de espinhos. No entanto é um simples galho que irá fazer a vez da coroa, sendo então embrulhado em simples papel pardo, papel semelhante que embrulhava uma garrida e erótica camisa de dormir da sua amante inglesa que, em memória da sua última fogosa noite de amor juntos, oferece-lha de modo a recordar-se sempre dela.
Farto daquela miséria toda, ele resolve empreender a viagem de regresso, sendo então recebido em apoteose pela tia que já o vê como um santo, um modelo de ser humano, pois havia estado nos mesmos lugares que Jesus Cristo.
Agora imaginem o momento em que ele vai dar a tão prometida santa relíquia à sua tia...
Essa entrega irá processar-se de uma forma cerimoniosa. Todos os padres e todas as beatas são convidadas para a ocasião. Tal presente iria fazer furor e criar invejas junto da beatitude da sociedade lisboeta. E quando a Titi abre o embrulho, em vez de um galho da coroa de espinhos, eis que surge uma camisa de dormir de cores garridas, provocante e cheia de rendinhas... imaginem o desenrolar da cena. É deveras hilariante!
Pessoalmente gosto muito deste romance, aliás, eu gosto de todos os romances e contos de Eça. Neste caso ele constrói uma personagem extremamente religiosa e, em contraponto, uma outra mas extremamente liberal. O choque é inevitável. A hipocrisia assola todo o romance, chega a ser incomodativo e irritante tanta sobranceria e hipocrisia. À semelhança do que Eça fez noutros romances, ele descreve uma sociedade completamente dividida: os mais jovens, liberais e não crentes. Os mais velhos, ainda com aquela ideologia da alta burguesia do início do Sec. XVIII, completamente sob o domínio da igreja e dos seus representantes.
Sabe-se que Eça não era um grande simpatizante do catolicismo. Já em "O Crime do Padre Amaro", ele traçava um cenário profundamente crítico, caótico mesmo em relação à igreja e ao seu comportamento, no entanto em a "Relíquia", ele aborda a questão doutra forma, aliás, ele dispara as suas críticas sob outra perspectiva: a do fanatismo religioso. Quanto a mim, este romance complementa "O Crime do Padre Amaro", pois neste caso ele crítica, e é impiedosa a forma como o faz, toda uma sociedade que vivia de aparências... isto é tudo tão familiar nos dias de hoje!!!
Eça de Queirós é, pois, o melhor escritor português de todos os tempos e, não tenho a melhor dúvida, um dos melhores a nível mundial. Se ele fosse norte-americano, francês, inglês ou alemão, penso que seria considerado o grande mestre da literatura universal. Senhor de um estilo único, enquanto narrador conseguiu "pintar" cenários reais da sociedade portuguesa, efectuando também descrições e análises psicológicas dos seus personagens de uma forma intensa.
Embora este não seja o romance que mais aprecio do mestre, penso que a "Relíquia" é aquele onde ele consegue, de facto, expressar todo o seu génio, para além das sublimes descrições que efectua do Egipto (onde esteve para a inauguração do canal do Suez) e Palestina, ele consegue descrever de uma forma minuciosa os costumes da época, os hábitos da sociedade, o modo de pensar e o latente conflito de gerações que se dava na altura.

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