domingo, 17 de maio de 2009

Revista Espírita - Jornal de Estudos Psicológicos - Quinto Ano – 1862

TRECHO:
Ensaio sobre a interpretação da
doutrina dos Anjos decaídos
Revista Espírita, janeiro de 1862
A questão das origens tem sempre o privilégio de excitar a curiosidade, e, nesse ponto de
vista, o que o homem vê o estimula tanto mais quanto é impossível, a qualquer pessoa
sensata, aceitar ao pé da letra o relato bíblico, e nisso não ver uma dessas alegorias das
quais o estilo oriental é tão pródigo. A ciência, aliás, veio fornecer-lhe a prova
demonstrando, por sinais os menos contestáveis, a impossibilidade material da formação do
globo em seis dias de vinte e quatro horas. Diante da evidência dos fatos escritos em
caracteres irrecusáveis, nas camadas geológicas, a Igreja deveu se alinhar à opinião dos
sábios, e convir, com eles, que os seis dias da criação são seis períodos de uma extensão
indeterminada, como fez outrora quanto ao movimento da Terra. Se, pois, o texto bíblico é
suscetível de interpretação sobre esse ponto capital, pode sê-lo, do mesmo modo, sobre
outros pontos, notadamente sobre a época da aparecimento do homem sobre a Terra,
sobre a sua origem, e sobre o sentido que se deve dar à qualificação de anjos decaídos.
Como o princípio das coisas está nos segredos de Deus, que não no-lo revela senão
gradativamente, e à medida que julga a propósito, fica-se reduzido às conjecturas. Muitos
sistemas foram imaginados para resolver esta questão, e cada um, até o presente, não
satisfez completamente à razão. Vamos tentar, nós também, levantar um canto do véu;
seremos mais felizes do que os nossos predecessores? Nós o ignoramos; só o futuro isso
decidirá. A teoria que apresentamos é, pois, uma opinião pessoal; ela nos parece concordar
com a razão e com a lógica; é o que lhe dá, aos nossos olhos, um certo grau de
probabilidade.
Constatamos, de início, que, se é possível descobrir alguma parte da verdade, isso não
pode ser senão com a ajuda da teoria espírita; ela já resolveu uma multidão de problemas
insolúveis até então, e será com a ajuda das balizas que nos fornece que vamos tratar de
remontar à cadeia dos tempos. O sentido literal de certas passagens dos livros sagrados,
contraditados pela ciência, repelidos pela razão, fez mais incrédulos do que se pensa, pela
obstinação que se pôs em delas fazer artigos de fé; se uma interrupção racional fá-las
aceitar, evidentemente, é reaproximar da Igreja aqueles que dela se afastaram.
Antes de prosseguir, é preciso entender-se sobre as palavras. Quantas disputas deveram a
sua eternização senão à ambigüidade de certas expressões, que cada um tomava no
sentido de suas idéias pessoais! Demonstramo-lo em O Livro dos Espíritos, a propósito da
palavra alma. Dizendo, decididamente, em qual acepção a tomamos, pusemos fim a toda
controvérsia. A palavra anjo está no mesmo caso; é empregada indiferentemente no bom
ou mau costume, uma vez que se costuma dizer: os bons e os maus anjos, o anjo das luzes
e o anjo das trevas; de onde se segue que, em sua acepção geral, significa simplesmente
Espírito. Evidentemente, é neste último sentido que é preciso entendê-lo falando dos anjos
decaídos e dos anjos rebeldes. Segundo a Doutrina Espírita, de acordo nisto com vários
teólogos, os anjos não são seres privilegiados de criação, isentos, por um favor especial, do
trabalho imposto aos outros, mas Espíritos chegados à perfeição por seus esforços e seus
méritos. Se os anjos fossem seres criados perfeitos, a rebelião contra Deus sendo um sinal
de inferioridade, os que se revoltaram não podiam ser anjos. A Doutrina nos diz também
que os Espíritos progridem, mas que não retrogradam nunca, porque não podem jamais
perder as qualidades que adquiriram; ora, a rebelião, da parte de seres perfeitos, seria uma
retrogradação, ao passo que ela se concebe da parte de seres ainda atrasados.
Para evitar todo equívoco, conviria reservar a qualificação de anjos para os puros Espíritos,
e chamar os outros simplesmente Espíritos bons ou Espíritos maus; mas tendo prevalecido
o uso do emprego dessa palavra para os anjos decaídos, dizemos que a tomamos na
acepção geral, e ver-se-á que, neste sentido, a idéia de queda e de revolta é perfeitamente
admissível.
Não conhecemos, e provavelmente não conheceremos jamais, o ponto de partida da alma
humana; tudo o que sabemos é que os Espíritos são criados simples e ignorantes; que
progridem intelectual e moralmente; que, em virtude de seu livre arbítrio, uns tomaram o
bom caminho e os outros o mau; que, uma vez colocado o pé no lamaçal, nele afundaram
mais e mais; que, depois de uma sucessão ilimitada de existências corporais cumpridas
sobre a Terra ou em outros mundos, se depuram e chegam à perfeição, que os aproxima de
Deus.
Um ponto que também é difícil de compreender é a formação dos primeiros seres vivos
sobre a Terra, cada um em sua espécie, desde a planta até o homem; a teoria contida
sobre este assunto, em O Livro dos Espíritos, nos parece a mais racional, embora não
resolva, senão incompletamente e de maneira hipotética, o problema, que cremos insolúvel
para nós quanto para a maioria dos Espíritos, a quem não é dado penetrar o mistério das
origens. Se interrogados sobre esse ponto, os mais sábios dizem que não o sabem; mas
outros, menos modestos, tomam a iniciativa por si mesmos e se colocam como reveladores,
ditando sistemas, produtos de suas idéias pessoais, que dão como verdade absoluta. É
contra a mania dos sistemas de certos Espíritos, com respeito ao princípio das coisas, que é
preciso se pôr em guarda, e o que, aos nossos olhos, prova a sabedoria daqueles que
ditaram O Livro dos Espíritos, é a reserva que observaram sobre as questões dessa
natureza. Na nossa opinião, não é uma prova de sabedoria decidir essas questões de
maneira absoluta, assim como alguns o fazem, sem inquietar-se com as impossibilidades
materiais resultantes dos dados fornecidos pela ciência e pela observação. O que dizemos
do aparecimento dos primeiros homens sobre a Terra se entende quanto à formação dos
corpos; porque, uma vez formado o corpo, é mais fácil conceber que o Espírito vem tomarlhe
posse. Estando dado o corpo, o que nos propomos examinar aqui é o estado dos
Espíritos que os animaram, a fim de chegar, se possível, a definir, de maneira mais racional
do que não se fez até este dia, a doutrina da queda dos anjos e do paraíso perdido.
Se não se admite a pluralidade das existências corpóreas, é preciso admitir que a alma é
criada ao mesmo tempo que o corpo se forma; porque, de duas coisas uma, ou a alma que
anima o corpo em seu nascimento já viveu, ou ela ainda não viveu; entre essas duas
hipóteses, não há meio termo; ora, da segunda hipótese, aquela em que a alma não viveu
surge uma multidão de problemas insolúveis, tais como a diversidade de aptidões e de
instintos, incompatíveis com a justiça de Deus, a sorte das crianças que morrem em tenra
idade, a dos cretinos e dos idiotas, etc.; ao passo que tudo se explica naturalmente
admitindo-se que a alma já viveu e que traz, encarnando em um novo corpo, o que
adquirira anteriormente. Assim é que as sociedades progridem gradualmente; sem isso,
como explicar a diferença que existe entre o estado social atual e o dos tempos de
barbárie? Se as almas são criadas ao mesmo tempo que o corpo, as que nascem hoje são
tão novas, tão primitivas quanto aquelas que viviam há mil anos; acrescentemos que não
há, entre elas, nenhuma conexão, nenhuma relação necessária; elas são completamente
independentes umas das outras; por que, pois, as almas hoje seriam melhor dotadas por
Deus do que suas predecessoras? Porque compreendem melhor? Porque têm instintos mais
depurados, costumes mais brandos? Porque têm a intuição de certas coisas sem tê-las
aprendido? Desafiamos a sair daí, a menos que se admita que Deus criou almas de diversas
qualidades, segundo os tempos e os lugares, proposição inconciliável com a idéia de uma
soberana justiça. Dizei, ao contrário, que as almas de hoje já viveram em tempos recuados;
que elas puderam ser bárbaras como seu século, mas que progrediram; que, a cada nova
existência, elas \rr 'em a aquisição das existências anteriores; que, por conseguinte, as
almas dos tempos civilizados são as almas não criadas mais perfeitas, mas que se
aperfeiçoaram, elas mesmas, com o tempo, e tereis a única explicação plausível do
progresso social.
Estas considerações, tiradas da teoria da reencarnação, são essenciais para a inteligência
do fato do que falaremos dentro em pouco.
Se bem que os Espíritos possam se reencarnar em diferentes mundos, parece que, em
geral, eles cumprem um certo número de migrações corpóreas sobre o mesmo globo e no
mesmo meio, a fim de poderem melhor aproveitar da experiência adquirida; não saem
desse meio senão para entrar num pior por punição, ou num melhor por recompensa. Disso
resulta que, durante um certo período, a população do globo é quase composta dos
mesmos Espíritos, que nele reaparecem em diversas épocas, até que tenham alcançado tim
grau de depuração suficiente para irem habitar mundos mais avançados.
Segundo o ensinamento dado pelos Espíritos superiores, essas emigrações e essas
imigrações dos Espíritos encarnados sobre a Terra ocorrem de tempos em tempos
individualmente; mas, em certas épocas, elas se operam em massa, em conseqüência das
grandes revoluções que dela fazem desaparecer quantidades inumeráveis, e são
substituídos por outros Espíritos que constituem, de alguma sorte, sobre a Terra ou sobre
uma parte da Terra, uma nova geração.
O Cristo disse uma palavra notável que não foi compreendida, como muitas outras que se
tomaram ao pé da letra, sem pensar que, quase sempre, ele falou por figuras e parábolas.
Anunciando grandes mudanças no mundo físico e no mundo moral, disse ele: Eu vos digo,
em verdade, que esta geração não passará antes que estas coisas tenham se cumprido;
ora, a geração do tempo do Cristo passou há dezoito séculos sem que estas coisas tenham
chegado; é preciso disso concluir, ou que o Cristo se enganou, o que não é admissível, ou
que suas palavras tinham um sentido oculto, que se interpretou mal.
Se nos reportarmos agora ao que dizem os Espíritos, não somente a nós, mas pelos
médiuns de todos os países, atingimos o cumprimento dos tempos preditos, uma época de
renovação social, quer dizer, a uma época de uma dessas grandes emigrações dos Espíritos
que habitam a Terra. Deus, que para ela os enviara para se melhorarem, nela deixou-os o
tempo necessário para progredirem', fê-los conhecer as suas leis, primeiro por Moisés, em
seguida pelo Cristo; fê-los advertir pelos profetas; em suas reencarnações sucessivas,
puderam tirar proveito desses ensinamentos; agora é chegado o tempo em que aqueles que
não aproveitaram da luz, aqueles que violaram as leis de Deus e desconheceram seu poder,
vão deixar a Terra onde estariam, doravante, deslocados no meio do progresso moral que
se cumpriu, e ao qual não poderiam senão trazer entraves, seja como homens, seja como
Espíritos. A geração da qual o Cristo falou, não podendo se reportar aos homens vivendo
em seu tempo, corporalmente falando, deve se entender da geração dos Espíritos que
percorreram, sobre a Terra, os diversos períodos de suas encarnações e que vão deixá-la.
Vão ser substituídos por uma nova geração de Espíritos que, mais avançados moralmente,
farão reinar, entre eles, a lei de amor e de caridade ensinada pelo Cristo, e cuja felicidade
não será perturbada pelo contato dos maus, dos orgulhosos, dos egoístas, dos ambiciosos e
dos ímpios. Parece mesmo, no dizer dos Espíritos, que já entre as crianças que nascem
agora, muitas são a encarnação de Espíritos dessa nova geração. Quanto àqueles da antiga
geração que tiverem bem merecido, mas que, no entanto, não atingiram ainda um grau de
depuração suficiente para chegar aos mundos mais avançados, eles poderão continuar a
habitar a Terra e nela cumprir ainda algumas encarnações, mas, então, no lugar de ser uma
punição, isto será uma recompensa, uma vez que nela serão mais felizes por progredirem.
O tempo em que uma geração de Espíritos desaparece, para dar lugar a uma outra, pode
ser considerado como o fim do mundo, quer dizer, do mundo moral.
Em que vão se tornar os Espíritos expulsos da Terra? Os próprios Espíritos nos dizem que
irão habitar mundos novos, onde se encontram seres ainda mais atrasados do que neste
mundo, e estarão encarregados de fazê-los progredir, levando-lhes o produto de seus
conhecimentos adquiridos. O contato do meio bárbaro, onde se encontrarão, será, para
eles, uma cruel expiação, e uma fonte incessante de sofrimentos físicos e morais, dos quais
terão tanto mais consciência quanto sua inteligência estiver mais desenvolvida; mas essa
expiação será, ao mesmo tempo, uma missão que lhes oferecerá um meio de resgatar seu
passado, segundo o modo como a cumprirem. Ali, sofrerão ainda uma série de
encarnações, durante um período de tempo mais ou menos longo, no fim do qual, aqueles
que tiverem merecido, serão dele retirados para irem para mundos melhores, talvez sobre a
Terra que, então, será uma morada de felicidade e de paz, ao passo que os da Terra, a seu
turno, subirão, e, assim, alternativamente, até o estado de anjos ou de puros Espíritos.
É muito demorado, dir-se-á, não seria mais agradável ir de uma vez da Terra ao céu? Sem
dúvida, mas, com esse sistema, tendes a alternativa de ir também direto da Terra para o
inferno, pela eternidade das eternidades; ora, convir-se-á que a soma das virtudes
necessárias para ir direto ao céu é bastante rara neste mundo, e há muito poucos homens
que possam se dizer certos de possuí-las; de onde resulta que há mais chance de ir para o
inferno do que de ir para o paraíso. Não vale mais fazer uma caminhada mais longa e estar
seguro de atingir o objetivo? No estado atual da Terra, ninguém se preocupa de a ela
voltar, mas nada o obriga, porque depende de cada um avançar de tal modo, enquanto nela
está, que possa merecer subir. Nenhum prisioneiro que sai da prisão se impacienta para
nela reentrar; o meio, para ele, é muito simples, é não recair em falta. O soldado, ele
também, acharia muito cômodo tornar-se general de repente; mas embora tenha o bastão
na sua cartucheira, não lhe é preciso menos ganhar suas esporas.
Remontemos agora à escala dos tempos; e, do presente, como ponto conhecido, tratemos
de deduzir o desconhecido, pelo menos por analogia, se não o for com a certeza de uma
demonstração matemática.
A questão de Adão, como fonte única da espécie humana sobre a Terra, é muito
controvertida, como se sabe, porque as leis antropológicas demonstram-lhe a
impossibilidade, sem falar dos documentos autênticos da história chinesa que provam que a
população do globo remonta a uma época bem anterior à que a cronologia bíblica assinala a
Adão. A história de Adão foi inventada? Isso não é provável; é uma figura que, como todas
as alegorias, deve encerrar uma grande verdade da qual só o Espiritismo pode nos dar a
chave. A questão principal, na nossa opinião, não é saber se o personagem Adão realmente
existiu, nem em qual época ele viveu, mas se a raça humana, que se designa como sua
posteridade, é uma raça decaída. A solução desta questão não está mesmo sem
moralidade, porque, esclarecendo-nos sobre o nosso passado, pode nos guiar na nossa
conduta para o futuro.
Notemos, de início, que a idéia de queda aplicada ao homem é um contra-senso, sem a
reencarnação, do mesmo modo que a da responsabilidade que levaríamos pela falta de
nosso primeiro pai. Se a alma de cada homem é criada em seu nascimento, portanto, ela
não existia antes; não deve ter nenhuma relação, nem direta nem indireta, com a que
cometeu a primeira falta, e, desde então, pergunta-se como dela pode ser responsável. A
dúvida, sobre esse ponto, conduz naturalmente à dúvida, ou mesmo à incredulidade, sobre
muitos outros, porque, se o ponto de partida é falso, as conseqüências devem também ser
falsas. Tal é o raciocínio de muitas pessoas. Pois bem! esse raciocínio cai tomando-se o
espírito, e não a letra, do relato bíblico, e se se reporta aos próprios princípios da Doutrina
Espírita, destinada, como foi dito, a reanimar a fé que se extingue.
Notemos, ainda, que a idéia dos anjos rebeldes, dos anjos decaídos, do paraíso perdido, se
encontra em quase todas as religiões, e, no estado de tradição, em quase todos os povos;
ela deve, pois, repousar sobre uma verdade. Para compreender o verdadeiro sentido que se
deve dar à qualificação de anjos rebeldes, não é necessário supor uma luta real entre Deus
e os anjos, ou Espíritos, uma vez que a palavra anjo está aqui tomada em uma acepção
geral. Admitindo-se que os homens são Espíritos encarnados, que são os materialistas e os
ateus senão anjos ou Espíritos em revolta contra a Divindade, uma vez que negam a sua
existência e não reconhecem nem seu poder, nem suas leis? Não é por orgulho que
pretendem que, de tudo o que são capazes, vem deles mesmos e não de Deus? Não é o
cúmulo da rebelião o de pregar o nada depois da morte? Não são muito culpáveis aqueles
que se servem da inteligência de que se glorificam, para arrastarem seus semelhantes aos
precipícios da incredulidade? Não fazem igualmente ato de revolta, até um certo ponto,
aqueles que, sem negarem a Divindade, desconhecem os verdadeiros atributos de sua
essência? Aqueles que se cobrem com uma máscara de piedade para cometerem más
ações? Aqueles que a fé no futuro não desliga dos bens deste mundo? Aqueles que, em
nome de um Deus de paz, violam a primeira de suas leis: a lei de caridade? Aqueles que
semeiam a perturbação e o ódio pela calúnia e pela maledicência? Aqueles, enfim, cuja
vida, voluntariamente inútil se escoa na ociosidade, sem proveito para eles mesmos e para
os seus semelhantes? A todos será pedida a conta não só do mal que fizeram, mas do bem
que não terão feito. Pois bem! todos esses Espíritos que empregaram tão mal suas
encarnações, uma vez expulsos da Terra enviados para mundos inferiores, entre os povos
ainda na infância e na barbárie, que serão senão anjos decaídos enviados em expiação? A
Terra que deixam, não é para eles um paraíso perdido em comparação com o meio ingrato
onde vão se achar relegados durante milhares de séculos, até que tenham um dia merecido
a sua libertação?
Se, agora, remontarmos à origem da raça atual, simbolizada na pessoa de Adão,
encontramos todos os caracteres de uma geração de Espíritos expulsos de um outro
mundo, e exilados, por causas semelhantes, sobre a Terra já povoada, mas de homens
primitivos, mergulhados na ignorância e na barbárie, e que eles tinham a missão de fazêlos
progredir, trazendo entre eles as luzes de uma inteligências já desenvolvida. Não é, com
efeito, o papel que cumpre até este dia a raça adâmica? Relegando-a sobre esta Terra, de
trabalho e de sofrimento, Deus não teve razão em dizer-lhe: "dela tirarás o teu sustento
com o suor de teu rosto"? Se ela mereceu esse castigo por causas semelhantes às que
temos hoje, não é justo dizer que ela está perdida pelo orgulho? Em sua mansuetude, não
poderia lhe prometer que lhe enviaria um Salvador, quer dizer, aquele que deveria
esclarecê-la sobre o caminho a seguir para chegar à felicidade dos eleitos? Este salvador
enviou-lhe na pessoa do Cristo, que ensinou a lei de amor e de caridade, como a verdadeira
âncora de salvação.
Aqui se apresenta uma importante consideração. A missão do Cristo é facilmente
compreendida admitindo-se que foram os mesmos Espíritos que viveram antes e depois de
sua vinda, e que, assim, deveram aproveitar seja de seu ensinamento, seja do mérito de
seu sacrifício; mas compreende-se mais dificilmente, sem a reencarnação, a utilidade desse
mesmo sacrifício para Espíritos criados posteriormente à sua vinda, e que Deus, assim, teria
criado manchados com faltas daqueles com os quais não tiveram nenhuma relação.
Essa raça de Espíritos parece, pois, ter feito seu tempo sobre a Terra; entre eles, uns
aproveitaram esse tempo o seu adiantamento e mereceram ser recompensados; outros,
pela sua obstinação em fechar os olhos à luz, esgotaram a mansuetude do Criador e
mereceram um castigo. Assim cumprir-se-á esta palavra do Cristo: "Os bons ficarão à
minha direita e os maus à minha esquerda."
Um fato parece vir em apoio da teoria que atribui uma preexistência aos primeiros
habitantes dessa raça sobre a Terra, é que Adão, que é indicado como a sua origem, é
representado com um desenvolvimento intelectual imediato, muito superior ao das raças
selvagens atuais; que esses primeiros descendentes, em pouco tempo, puderam mostrar
aptidão para trabalhos de arte muito avançados. Ora, o que sabemos do estado dos
Espíritos em sua origem nos indica o que teria sido Adão, do ponto de vista intelectual, se
sua alma houvesse sido criada ao mesmo tempo que o seu corpo. Admitindo-se que, por
exceção, Deus lhe haja dado uma mais perfeita, restaria a explicar porque os selvagens da
Nova-Holanda, por exemplo, se saem da mesma fonte, são infinitamente mais atrasados do
que o pai comum. Tudo prova, ao contrário, tão bem pelo físico como pelo moral, que
pertencem a uma outra raça de Espíritos mais próximos de sua origem, e que lhes é preciso
ainda um grande número de migrações corpóreas antes de alcançarem mesmo o grau
menos avançado da raça adâmica. A nova raça que vai surgir, fazendo reinar por toda a
parte a lei do Cristo, que é a lei de justiça, de amor e de caridade, apressará o seu
adiantamento. Aqueles que escreveram a história da antropologia terrestre, sobretudo, se
apegaram aos caracteres físicos; o elemento espiritual, quase sempre, foi negligenciado, e
o foi, necessariamente, pelos escritores que não admitem nada fora da matéria. Quando ele
for levado em conta no estudo das ciências, lançará uma luz toda nova sobre uma multidão
de questões ainda obscuras, porque o elemento espiritual é uma das forças vivas da
Natureza, que desempenha um papel preponderante nos fenômenos físicos, tão bem quanto
nos fenômenos morais.
Eis, em pequeno, um exemplo surpreendente da analogia com o que se passa em grande
no mundo dos Espíritos, e que nos ajudará a compreendê-lo.
No dia 24 de maio de 1861, a fragata Iphigénie trouxe à Nova Caledônia uma companhia
disciplinar composta de 291 homens: o comandante da colônia dirigiu-lhes, à sua chegada,
uma ordem do dia, assim concebida:
"Pondo o pé sobre esta terra longínqua, já cumpris o papel que vos está reservado.
"A exemplo de nossos bravos soldados da marinha, servindo sob os vossos olhos, nos
ajudareis a levar com brilho, no meio das tribos selvagens da Nova Caledônia, a bandeira
da civilização. Não é uma bela e nobre missão? Eu vos peço, vós a cumprireis dignamente.
"Escutai a voz e os conselhos de vossos chefes. Eu estou no seu comando; que as minhas
palavras sejam bem entendidas.
"A escolha de vosso comandante, de vossos oficiais, de vossos suboficiais e cabos é uma
garantia segura de todos os esforços que serão tentados para fazer, de vós, excelentes
soldados, digo mais, para vos elevar à altura de bons cidadãos e vos transformar em
colonos honrados, se o desejais.
"Vossa disciplina é severa; deve sê-lo. Colocada em nossas mãos, será firme e inflexível,
sabei-o bem; como também, justa e paternal, ela saberá distinguir o erro do vício e da
degradação..."
Eis, pois, homens expulsos, por sua má conduta, de um país civilizado, e enviados, para
punição, entre um povo bárbaro.
Que lhes disse o chefe? "Infringistes as leis de vosso país; fostes ali uma causa de
perturbação e de escândalo, e dele fostes expulsos; enviaram-vos para aqui, mas podeis
com isso resgatar o vosso passado; podeis, pelo trabalho, aqui vos criar uma posição
honrosa, e vos tornar cidadãos honestos. Tendes aqui uma bela missão a cumprir, a de
levar a civilização entre essas tribos selvagens. A disciplina será severa, mas justa, e
saberemos distinguir aqueles que se conduzirem bem."
Para esses homens, relegados ao seio da selvageria, a mãe-pátria não é um Paraíso perdido
pela sua falta e pela sua rebeldia à lei? Sobre essa terra longínqua, não sois anjos decaídos?
A linguagem do chefe não é a que Deus devera fazer ouvir os Espíritos exilados sobre a
Terra? "Desobedecestes às minhas leis, e é por isso que vos expulsei do país em que
poderíeis viver feliz e em paz; aqui sereis condenados ao trabalho, mas podereis, pela
vossa boa conduta, merecer vosso perdão e reconquistar a pátria que perdestes pela vossa
falta, quer dizer, o céu."
À primeira vista, a idéia da queda parece em contradição com o princípio de que os Espíritos
não podem retrogradar; mas é preciso considerar que não se trata de um retorno para o
estado primitivo; o Espírito, embora numa posição inferior, não perde nada do que adquiriu;
seu desenvolvimento moral e intelectual é o mesmo, qualquer que seja o meio onde esteja
colocado. Ele está na posição de um homem do mundo, condenado à prisão por seus erros;
certamente, ele caiu do ponto de vista social, mas não se torna nem mais estúpido, nem
mais ignorante.
Crê-se, agora, que esses homens, enviados à Nova Caledônia, vão se transformar
subitamente em modelos de virtudes? Que vão abjurar, de repente, seus erros passados?
Seria preciso não conhecer a Humanidade para o supor. Pela mesma razão, os Espíritos que
vão ser expulsos da Terra, uma vez transplantados nos mundos de exílio, não vão se
despojar instantaneamente de seu orgulho e de seus maus instintos; por muito tempo
ainda, conservarão as tendências de sua origem, um resto do velho fermento. Deve ter
ocorrido, o mesmo com a raça adâmica exilada sobre a Terra; ora, não está aí o pecado
original? A tarefa que eles trazem, ao nascer, é a da raça de Espíritos culpados e punidos à
que eles pertencem; tarefa que podem encobrir pelo arrependimento, pela expiação, e pela
renovação de seu ser moral. O pecado original, considerado como a responsabilidade de
uma falta cometida por outrem, é um contra-senso e a negação da justiça de Deus;
considerado, ao contrário, como conseqüência e saldo de uma imperfeição primeira do
indivíduo, não só a razão a admite, mas se considera de toda justiça a responsabilidade que
dela decorre.
Esta interpretação dá uma razão de ser toda natural ao dogma da Imaculada Conceição, do
qual o ceticismo tanto tem zombado. Esse dogma estabelece que a mãe do Cristo não
estava manchada pelo pecado original; como pode ser isto? É muito simples: Deus enviou
um Espírito puro, não pertencente à raça culpada e exilada, para se encarnar sobre a Terra
e nela cumprir essa augusta missão; do mesmo modo que, de tempos em tempos, envia
Espíritos superiores para nela se encarnarem, para darem um impulso ao progresso e
apressar o seu adiantamento. Esses Espíritos são, sobre a Terra, como o venerável pastor
que vai moralizar os condenados em sua prisão, e mostrar-lhes o caminho da salvação.
Certas pessoas, sem dúvida, acharão esta interpretação pouco ortodoxa; alguns mesmo
poderão denunciá-la como heresia. Mas não está averiguado que muitos não vêem, nos
relatos da Gênese, na história da maçã e da costela de Adão senão uma figura; que, por
falta de poder dar um sentido preciso à doutrina dos anjos decaídos, dos anjos rebeldes e
do paraíso perdido, olham todas essas coisas como fábulas? Se uma explicação lógica levaos
a nisso ver uma verdade disfarçada sob a alegoria, isso não vale mais do que uma
negação absoluta? Admitamos que essa solução não esteja, em todos os pontos, conforme
a ortodoxia rigorosa, no sentido vulgar da palavra, perguntamos se é preferível não crer em
tudo, ou de crer em alguma coisa. Se a crença no texto literal afasta de Deus, e se a crença
pela interpretação dele aproxima, uma não vale mais do que a outra? Não viemos, pois,
destruir o princípio, solapá-lo em seus fundamentos, assim como o fizeram alguns filósofos;
procuramos descobrir-lhe o sentido oculto, e viemos, ao contrário, consolidá-lo, dando-lhe
uma base racional. Seja como for, a essa interpretação não se lhe recusará, em todos os
casos, um caráter de grandeza que o texto, tomado ao pé da letra, não tem. Essa teoria
abarca, ao mesmo tempo, a universalidade dos mundos, o infinito no passado e no futuro;
ela dá, a tudo, sua razão de ser pelo encadeamento que liga todas as coisas, pela
solidariedade que estabelece entre todas as partes do Universo. Não está mais conforme
com a idéia que fazemos da majestade e da bondade de Deus, do que aquela que
circunscreve a Humanidade num ponto do espaço, e a um instante na eternidade?

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