domingo, 23 de setembro de 2007

O Liber Scintillarum / O Livro das Cintilações / O Livro das Fagulhas, de Defensor de Ligugé

1. As antologias e o projeto pedagógico da Primeira Idade Média

A Idade Média define-se - como escreveu Hegel - como uma dualidade (bárbaros/romanos) de povos, de línguas e de culturas.

A partir do século IV, os bárbaros, triunfantes povos jovens e analfabetos, instalaram-se no espaço (geográfico e cultural) que fora ocupado pelo Império Romano no Ocidente, deparando com a cultura romana, certamente muito mais refinada, diante da qual podiam adotar diferentes atitudes, desde o desprezo e o esquecimento até a imitação e assimilação da língua, da tradição e da religião dos romanos.

Pedagogicamente, aquilo que se chamou Escolástica foi, em boa medida, o projeto bárbaro de aprendizagem do saber antigo. Dado o gap cultural, esse projeto pedagógico não teve, no início, a menor pretensão de originalidade. Tratava-se, antes (nos dois sentidos da palavra), de aprender, acriticamente, os rudimentos de uma língua nova, de um novo modo de ser e pensar.

Se essa experiência de "aprender de aprendiz" não trouxe nenhuma contribuição significativa para as ciências e disciplinas estudadas na época, pelo menos (e não é pouco!) possibilitou que elas se conservassem num estado mais ou menos precário até o surgimento, no século XII, de melhores circunstâncias para o desenvolvimento cultural e artístico, e para a criação de um pensamento original.

Assim, numa situação sócio-cultural não muito animadora, o pensamento teológico e filosófico da Primeira Idade Média conseguiu produzir os livros de Sentenças, simples compilações de frases dos Padres e escritores antigos que, no entanto, salvavam o substancial da herança da civilização greco-latina. Somente a partir do Renascimento do século XII, essas compilações foram dando lugar a interpretações globais em sínteses pessoais: as Sumas.

Curiosamente, vemos hoje reaparecer nas nossas livrarias esse antiqüíssimo Liber Sententiarum, o livro de sentenças, na forma de livros-folhinha, livros-agenda, "pílulas de otimismo", "reflexões em gotas" etc. Tal como os bárbaros de ontem, os de hoje intuem que é preciso retornar às fontes, "resgatar" o que no passado tem valor em si mesmo.

Nosso barbarismo, porém, tem suas características próprias. O mundo pós-moderno está ávido de sabedorias, mas que sejam descartáveis, adequadas a um pensamento circunstancialista e assumidamente claudicante. Muitas vezes presos à nossa mentalidade minimalista e consumista, preferimos o interessante ao invés da verdade das coisas; queremos o produto cultural da moda ao invés de reencontrar a perspectiva religiosa de quinze, de vinte séculos atrás, cuja preocupação fundamental era saber relacionar-se com Deus, com o próximo... e consigo mesmo.

É extremamente interessante voltar a ler as antologias de sentenças daquele início de Idade Média, nas quais se retratam ideais, vivências e, até mesmo, preconceitos e "cacoetes" da época, mas, sobretudo, uma contrastante lição de vida e de sabedoria que, talvez, também poderá ser útil para nós.

2. O Liber Scintillarum e seu autor nos quadros da Pedagogia medieval

Uma das primeiras e mais marcantes dessas antologias é o Liber Scintillarum, Livro das Cintilações ou, mais literalmente, Livro das Fagulhas, escrito em torno do ano 700( [1] ) por Defensor de Ligugé, monge do mosteiro de São Martinho de Ligugé( [2] ).

O Livro das Cintilações foi muito apreciado ao longo de toda a Idade Média e praticamente todas as bibliotecas da época possuíam seu exemplar (chegaram até nós mais de 350 manuscritos!).

A palavra scintilla - fagulha, chispa, cintilação, faísca - aparece na Bíblia ( [3] ), empregada literal e figurativamente, sete vezes:

- no Eclesiástico (11,34 e 42,23), significando um pequeno princípio que dá origem a algo muito maior: "De uma simples fagulha, acende-se um fogo grande..." (e assim também a língua do homem insidioso...), ou simples amostra de algo imenso: "Quão desejáveis são as Suas obras! O que delas se vê é como uma centelha!";

- em Isaías (1,31): "O homem forte virá a ser como a estopa, e a sua obra como uma centelha; ambos arderão juntos e não haverá ninguém que os possa apagar";

- em II Sam 14,7 como metáfora de descendência, o filho que passa adiante o nome do pai;

- no livro da Sabedoria (2,2 ; 3,7 e 11,19), aparece no sentido literal e, figurativamente, como algo insignificante, mas também como o resplendor da ressurreição dos justos: "No tempo em que Deus os visitar, resplandecerão e correrão como fagulhas no meio da palha" (3,7).

É natural, portanto, que scintilla, evocando o fogo vivo da vida do espírito, seja a metáfora usada por Defensor para as breves sentenças de sabedoria que recolhe da Sagrada Escritura e dos Padres da Igreja. Diz Defensor em seu Prólogo:

"Assim como do fogo procedem centelhas, assim também fulgem, extraídas das Escrituras, estas breves sentenças neste livro de cintilações".

Defensor sabe que seus contemporâneos não têm condições (acesso psicológico e mesmo físico) de estudar em profundidade as obras dos antigos; todo seu esforço pedagógico se concentra, pois, em apresentar, resumida e fragmentariamente, uma seleção desses autores. E este é o ponto em que a problemática pedagógica medieval revela-se atualíssima, no mundo e no Brasil. Quem lê e compreende hoje Platão, Virgílio, Dante, Agostinho, Jerônimo?

Se o problema pedagógico de hoje aproxima-se do da Idade Média, a solução daquela época também não é descabida para nosso tempo: já que é impossível propor para grande número de alunos o estudo aprofundado dos clássicos, demos-lhes - tal como na Primeira Idade Média - traduções de trechos selecionados, demos-lhes fagulhas (e sempre há a possibilidade de uma humilde fagulha provocar um grande incêndio...).

Defensor, realista, assume completamente essa Pedagogia e diz no Prólogo do Liber Scintillarum:

"Quem quiser ler este livro, poupar-se-á trabalho; que não se canse pelo caminho das outras páginas: aqui encontrará o que deseja."

Defensor não nos diz explicitamente o objetivo de seu livro (para quê o leitor "deseja encontrar" essas cintilações?), mas podemos supor que seria utilizado por pregadores, em busca de argumentos para seus sermões; por mestres espirituais, em busca de inspiração para a direção de almas, e por pessoas desejosas de encontrar orientação para o crescimento no cultivo da ascética cristã.

3. Estrutura e conteúdo do Liber Scintillarum

O livro compõe-se de 2.494 cintilações, breves sentenças, divididas em 81 capítulos. Há, em média, portanto, 30 sentenças para cada tema da vida espiritual (há alguns capítulos, como "A ligação com Deus", com apenas 5 sentenças e outros, como "A sabedoria", com 111). O tom de cada capítulo é já anunciado pela primeira sentença selecionada, sempre com a forma: "Disse o Senhor no Evangelho..."

Dessas sentenças, em geral, cerca da metade procede da Sagrada Escritura, sobretudo do Antigo Testamento, e particularmente do Eclesiástico ( [4] ) e dos Provérbios ( [5] ). A outra metade é escolhida das obras de (ou, na época, atribuídas a) S. Isidoro de Sevilha ( [6] ), S. Gregório Magno ( [7] ), S. Jerônimo ( [8] ) e de S. Agostinho ( [9] ). Menos freqüentes são as citações de: Ambrósio, Anastásio, Basílio, Cassiano, Cesário de Arles, Clemente, Cipriano, Efrém o Sírio, Eusébio, Hilário, Josefo, Orígenes e da Vidas dos Padres.

Os 81 temas selecionados por Defensor para capítulos de seu livro são, por exemplo: o amor, a paciência, o amor a Deus e ao próximo, a humildade, o perdão, a avareza, as virtudes, os vícios, as palavras ociosas, a brevidade da vida presente etc.

Muitos destes temas são cumulativos e se interpenetram, como, por exemplo, os capítulos I e III ("O amor" e "O amor a Deus e ao próximo", respectivamente). E, algumas vezes, Defensor chega a repetir a mesma sentença em capítulos distintos, como é o caso, por exemplo, da seguinte cintilação: "Disse Jerônimo: <>", que integra o capítulo I ("O amor") e reaparece no capítulo LXIV ("A amizade e a inimizade").

Se a composição de um livro de sentenças não tem (nem pretende ter) originalidade, Defensor, no entanto, não deixa de imprimir sua marca pessoal ao selecionar e distribuir por capítulos as cintilações. Assim, por vezes, o leitor surpreende-se com inesperadas colocações, algumas extremamente sugestivas.

Tomemos, por exemplo, a sentença: "Disse o Senhor no Evangelho: 'A quem muito foi dado, muito ser-lhe-á pedido' (Lc 12,48)". Defensor a situa não em temas como "O exemplo", "Os que governam", ou "Os ricos", mas, sim, como abertura do último capítulo: "As leituras"! E a exortação a não temermos ameaças e a não nos alterarmos por elogios vem no capítulo sobre os juízes e os governantes (capítulo LXXII)...

Do mesmo modo, a fala do Senhor "O homem bom, do bom tesouro de seu coração, tira o que é bom; o homem mau, o que é mau" (Mt 12,35) é, genialmente, posta como abertura do capítulo "O silêncio"!

4. Algumas dificuldades para o leitor de hoje

Destaco três dificuldades especiais que o leitor poderá enfrentar ante uma obra como o Livro das Cintilações:

1. A pouca familiaridade (intelectual e vivencial) que o homem de hoje tem com a temática ascética e espiritual cristã, faz com que se tornem simplesmente incompreensíveis certos pressupostos e afirmações que, para os antigos, eram evidentes. Como quando, por exemplo, no capítulo X ("O jejum") Defensor recolhe a sentença: "Disse Isidoro: <>".

A compreensão (e não me refiro só à compreensão intelectual) dessa advertência pressupõe um saber (também ele não apenas racional) sobre o que é jejuar e as relações do jejum com as disposições do coração. Pressupõe, inicialmente, experiências ascéticas - a anos-luz de distância da consciência pós-moderna - como a descrita pelo salmo: "Eu me humilhava com jejum e minha oração voltava a meu peito" (Sl 35,13). E a revelação de Deus: "Não continueis a jejuar deste modo (jejum com injustiça), se quereis que vossa voz seja ouvida nas alturas" (Is 58,4). Além do mais, pressupõe a oposição homo exterior/homo interior, familiar aos leitores do século VII mas que atualmente poderá soar incompreensível. Trata-se da distinção feita pelo Apóstolo: "Por isto não nos deixamos abater. Pelo contrário, embora em nós, o homem exterior vá caminhando para a sua ruína, o homem interior se renova dia a dia" (II Cor 4,16).

2. Os 1.300 anos que nos separam da obra impuseram dificuldades semânticas, sobretudo no que se refere ao léxico da ascética e da espiritualidade. Muitas palavras originais desse vocabulário - na época cheias de vida, vigor e sentido - hoje nada significam ou tiveram seu sentido restringido, distorcido, ou confinado à linguagem erudita. É o caso, por exemplo, de caritas, caridade: o amor (em todas as suas dimensões) a Deus e ao próximo por Deus. A "caridade" está hoje reduzida ao âmbito da compaixão assistencialista. Por esta razão, traduzimos já o título do capítulo I, De Caritate, por "O amor".

3. Como se sabe, uma constante da época medieval é a especial atenção ao caráter alegórico. Não só a Escritura, mas também as realidades do mundo encerram, muito freqüentemente, um sentido espiritual, para quem souber lê-las. Assim, por exemplo, quando se recolhe no capítulo "Os médicos" a sentença de Cipriano sobre o tratamento de feridas, na verdade é à cura da alma que ele se refere: "Disse Cipriano: <<É necessário abrir a ferida, cortá-la, expelir o pus e aplicar-lhe remédio forte. O doente, que mal suporta a dor, grita e vocifera; mas, depois, ao recobrar a saúde, agradecerá>> (De lapsis, 14; PL 4, 447-448)". Do mesmo modo, não é a práticas medicinais que Jerônimo se refere, quando diz: "Podridão da carne se trata a ferro e fogo", cintilação que pertence ao capítulo "A penitência".

5. Algumas características da presente antologia

A apresentação ao leitor brasileiro desta seleção de 265 sentenças do Livro das Cintilações traz uma pequena amostra dos ideais propostos na época.

Os critérios que guiaram a seleção dessas sentenças foram diversos. Em alguns casos, prevaleceu a agudeza da formulação. É o caso desta inquietante intuição, incluída em "O perdão": "Disse Anastásio: <>". O mesmo ocorre com a aguda advertência psicológica de que tendemos a projetar nos outros os nossos próprios defeitos: "Disse Jerônimo: <>" ("A vida alheia"). Nesta mesma linha, situa-se a seca ironia ante quem professa estar desprendido de qualquer busca de glória mas, na verdade, reclama elogios: "Disse Jerônimo: <>" ("A vanglória").

Em outros casos, o critério guiou-se pela busca da caracterização da visão-de-mundo da época; em outros ainda, pela tentativa de apresentar um resumo do espectro semântico abrangido por determinado conceito. No início de diversos capítulos, sobretudo nos que contêm maior quantidade de sentenças, mantive a cintilação inicial, procedente do Evangelho ( [10] ). De resto, salvo ocasionais amostras exemplificatórias, preferi selecionar maior proporção de sentenças dos Padres da Igreja, por ser a Bíblia muito menos ignorada pelo leitor contemporâneo do que os escritos patrísticos.

O capítulo XV, "A inveja", é intencionalmente mais completo, aproximando-se da versão integral. No capítulo XXIV, "A tolice", recolhem-se 7 sentenças do livro dos Provérbios, reproduzindo o extraordinário destaque que, por vezes, o autor dá aos livros sapienciais vetero-testamentários: deles procedem, por exemplo, 33 das 48 sentenças do capítulo XVI.

O texto latino utilizado para a presente tradução é o estabelecido por H-M. Rochais, O.S.B. ( [11] ) (ele próprio um monge do mesmo mosteiro de Ligugé!), sem dúvida o maior conhecedor contemporâneo do Liber Scintillarum. Após cada sentença patrística selecionada, vem a indicação do original ( [12] ), que o leitor familiarizado com as fontes medievais reconhecerá facilmente ( [13] ).

As 265 sentenças aqui selecionadas distribuem-se do seguinte modo: Evangelhos (36), Epístolas de Paulo (14), outros livros neo-testamentários (7), Eclesiático (15), Provérbios (13), outros livros vetero-testamentários (2), Agostinho (28), Gregório (39), Isidoro (51), Jerônimo (46), Orígenes (1), Anástasio (1), Cipriano (6), Ambrósio (3), Basílio (3).

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