domingo, 3 de maio de 2009

Revista Espírita - Jornal de Estudos Psicológicos - Segundo Ano – 1859

TRECHO:
Carta à Sua Alteza o Príncipe G.
Revista Espírita, janeiro de 1859
PRÍNCIPE,
Vossa Alteza honrou-me dirigindo-me várias perguntas referentes ao Espiritismo; vou tentar
respondê-las, tanto quanto o permita o estado dos conhecimentos atuais sobre a matéria,
resumindo em poucas palavras o que o estudo e a observação nos ensinaram a esse respeito.
Essas questões repousam sobre os princípios da própria ciência: para dar maior clareza à
solução, é necessário ter esses princípios presentes no pensamento; permita-me, pois, tomar
a coisa de um ponto mais alto, colocando como preliminares certas proposições fundamentais
que, de resto, elas mesmas servirão de resposta a algumas de vossas perguntas.
Há, fora do mundo corporal visível, seres invisíveis que constituem o mundo dos Espíritos.
Os Espíritos não são seres à parte, mas as próprias almas daqueles que viveram na Terra ou
em outras esferas, e que deixaram seus envoltórios materiais.
Os Espíritos apresentam todos os graus de desenvolvimento intelectual e moral. Há, por
conseqüência, bons e maus, esclarecidos e ignorantes, levianos, mentirosos, velhacos,
hipócritas, que procuram enganar e induzir ao mal, como os há muitos superiores em tudo, e
que não procuram senão fazer o bem. Essa distinção é um ponto capital.
Os Espíritos nos cercam sem cessar, com o nosso desconhecimento, dirigem os nossos
pensamentos e as nossas ações, e por aí influem sobre os acontecimentos e os destinos da
Humanidade.
Os Espíritos, freqüentemente, atestam sua presença por efeitos materiais. Esses efeitos nada
têm de sobrenatural; não nos parecem tal senão porque repousam sobre bases fora das leis
conhecidas da matéria. Uma vez conhecidas essas bases, o efeito entra na categoria dos
fenômenos naturais; é assim que os Espíritos podem agir sobre os corpos inertes e fazê-los
mover sem o concurso de nossos agentes exteriores. Negar a existência de agentes
desconhecidos, unicamente porque não são compreendidos, seria colocar limites ao poder de
Deus, e crer que a Natureza nos disse sua última palavra.
Todo efeito tem uma causa; ninguém o contesta. É, pois, ilógico negar a causa unicamente
porque seja desconhecida.
Se todo efeito tem uma causa, todo efeito inteligente deve ter uma causa inteligente. Quando
se vê o braço do telégrafo fazer sinais que respondem a um pensamento, disso se conclui,
não que esses braços sejam inteligentes, mas que uma inteligência fá-los moverem-se.
Ocorre o mesmo com os fenômenos espíritas. Se a inteligência que os produz não é a nossa,
é evidente que ela está fora de nós.
Nos fenômenos das ciências naturais, atua-se sobre a matéria inerte, que se manipula à
vontade; nos fenômenos espíritas age-se sobre inteligências que têm seu livre arbítrio, e não
estão submetidas à nossa vontade. Há, pois, entre os fenômenos usuais e os fenômenos
espíritas uma diferença radical quanto ao princípio: por isso, a ciência vulgar é incompetente
para julgá-los.
O Espírito encarnado tem dois envoltórios, um material que é o corpo, o outro semi-material
e indestrutível que é o perispírito. Deixando o primeiro, conserva o segundo que constitui
para ele uma espécie de corpo, mas cujas propriedades são essencialmente diferentes. Em
seu estado normal, é invisível para nós, mas pode tornar-se momentaneamente visível e
mesmo tangível: tal é a causa do fenômeno das aparições.
Os Espíritos não são, pois, seres abstratos, indefinidos, mas seres reais e limitados, tendo
sua própria existência, que pensam e agem em virtude de seu livre arbítrio. Estão por toda
parte, ao redor de nós; povoam os espaços e se transportam com a rapidez do pensamento.
Os homens podem entrar em relação com os Espíritos e deles receberem comunicações
diretas pela escrita, pela palavra e por outros meios. Os Espíritos, estando ao nosso lado e
podendo virem ao nosso chamado, pode-se, por certos intermediários, estabelecer com eles
comunicações seguidas, como um cego pode fazê-lo com as pessoas que ele não vê.
Certas pessoas são dotadas, mais do que outras, de uma aptidão especial para transmitirem
as comunicações dos Espíritos: são os médiuns. O papel do médium é o de um intérprete; é
um instrumento do qual se servem os Espíritos: esse instrumento pode ser mais ou menos
perfeito, e daí as comunicações mais ou menos fáceis.
Os fenômenos espíritas são de duas ordens: as manifestações físicas e materiais, e as
comunicações inteligentes. Os efeitos físicos são produzidos por Espíritos inferiores; os
Espíritos elevados não se ocupam mais dessas coisas quanto nossos sábios não se ocupam
em fazerem grandes esforços: seu papel é de instruir pelo raciocínio.
As comunicações podem emanar de Espíritos inferiores, como de Espíritos superiores.
Reconhecem-se os Espíritos, como os homens, pela sua linguagem: a dos Espíritos superiores
é sempre séria, digna, nobre e marcada de benevolência; toda expressão trivial ou
inconveniente, todo pensamento que choque a razão ou o bom senso, que denote orgulho,
acrimônia ou malevolência, necessariamente, emana de um Espírito inferior.
Os Espíritos elevados não ensinam senão coisas boas; sua moral é a do Evangelho, não
pregam senão a união e a caridade, e jamais enganam. Os Espíritos inferiores dizem
absurdos, mentiras, e, freqüentemente, grosserias mesmo.
A bondade de um médium não consiste somente na facilidade das comunicações, mas,
sobretudo, na natureza das comunicações que recebe. Um bom médium é aquele que
simpatiza com os bons Espíritos e não recebe senão boas comunicações.
Todos temos um Espírito familiar que se liga a nós desde o nosso nascimento, nos guia, nos
aconselha e nos protege; esse Espírito é sempre bom.
Além do Espírito familiar, há Espíritos que são atraídos para nós por sua simpatia por nossas
qualidades e nossos defeitos, ou por antigas afeições terrestres. Donde se segue que, em
toda reunião, há uma multidão de Espíritos mais ou menos bons, segundo a natureza do
meio.
Podem os Espíritos revelar o futuro?
Os Espíritos não conhecem o futuro senão em razão de sua elevação. Os que são inferiores
não conhecem mesmo o seu, por mais forte razão o dos outros. Os Espíritos superiores o
conhecem, mas não lhes é sempre permitido revelá-lo. Em princípio, e por um desígnio muito
sábio da Providência, o futuro deve nos ser ocultado; se o conhecêssemos, nosso livre
arbítrio seria por isso entravado. A certeza do sucesso nos tiraria o desejo de nada fazer,
porque não veríamos a necessidade de nos dar ao trabalho; a certeza de uma infelicidade nos
desencorajaria. Todavia, há casos em que o conhecimento do futuro pode ser útil, mas deles
jamais podemos ser juizes: os Espíritos no-los revelam quando crêem útil e têm a permissão
de Deus; fazem-no espontaneamente e não ao nosso pedido. E preciso esperar, com
confiança a oportunidade, e sobretudo não insistir em caso de recusa, de outro modo se
arrisca a relacionar-se com Espíritos levianos que se divertem às nossas custas.
Podem os Espíritos nos guiar, por conselhos diretos, nas coisas da vida?
Sim, eles o podem e o fazem voluntariamente. Esses conselhos nos chegam diariamente
pelos pensamentos que nos sugerem. Freqüentemente, fazemos coisas das quais nos
atribuímos o mérito, e que não são, na realidade, senão o resultado de uma inspiração que
nos foi transmitida. Ora, como estamos cercados de Espíritos que nos solicitam, uns num
sentido, os outros no outro, temos sempre o nosso livre arbítrio para nos guiar na escolha,
feliz para nós quando damos a preferência ao nosso bom gênio.
Além desses conselhos ocultos, pode-se tê-los diretos por um médium; mas é aqui o caso de
se lembrar dos princípios fundamentais que emitimos a toda hora. A primeira coisa a
considerar é a qualidade do médium, senão o for por si mesmo. Médium que não tem senão
boas comunicações, que, pelas suas qualidades pessoais não simpatiza senão com os bons
Espíritos, é um ser precioso do qual podem-se esperar grandes coisas, se todavia for
secundado pela pureza de suas próprias instruções e se tomadas convenientemente: digo
mais, é um instrumento providencial.
O segundo ponto, que não é menos importante, consiste na natureza dos Espíritos aos quais
se dirigem, e não é preciso crer que o primeiro que chegue possa nos guiar utilmente. Quem
não visse nas comunicações espíritas senão um meio de adivinhação, e em um médium uma
espécie de ledor de sorte, se enganaria estranhamente. É preciso considerar que temos, no
mundo dos Espíritos, amigos que se interessam por nós, mais sinceros e mais devotados do
que aqueles que tomam esse título na Terra, e que não têm nenhum interesse em nos bajular
e em nos enganar. Além do nosso Espírito protetor, são parentes ou pessoas que se nos
afeiçoaram em sua vida, ou Espíritos que nos querem o bem por simpatia. Aqueles vêm
voluntariamente quando são chamados, e vêm mesmo sem que sejam chamados; temo-los,
freqüentemente, ao nosso lado sem disso desconfiar. São aqueles aos quais pode-se pedir
conselhos pela via direta dos médiuns, e que os dão mesmo espontaneamente sem que lhes
peça. Fazem-no sobretudo na intimidade, no silêncio, e então quando nenhuma influência
venha perturbá-los: aliás, são muito prudentes, e não se tem a temer da sua parte uma
indiscrição imprópria: eles se calam quando há ouvidos demais. Fazem-no, ainda com mais
bom grado, quando estão em comunicação freqüente conosco; como eles não dizem as coisas
senão com o propósito e segundo a oportunidade, é preciso esperar a sua boa vontade e não
crer que, à primeira vista, vão satisfazer a todos os nossos pedidos; querem nos provar com
isso que não estão às nossas ordens.
A natureza das respostas depende muito do modo como se colocam as perguntas; é preciso
aprender a conversar com os Espíritos como se aprende a conversar com os homens: em
todas as coisas é preciso a experiência. Por outro lado, o hábito faz com que os Espíritos se
identifiquem conosco e com o médium, os fluidos se combinam e as comunicações são mais
fáceis; então se estabelece, entre eles e nós, verdadeiras conversações familiares; o que não
dizem num dia, dizem-no em outro; eles se habituam à nossa maneira de ser, como nós à
sua: fica-se, reciprocamente, mais cômodo. Quanto à ingerência de maus Espíritos e de
Espíritos enganadores, o que é o grande escolho, a experiência ensina a combatê-los, e podese
sempre evitá-los. Se não se lhes expuser, não vêm mais onde sabem perder seu tempo.
Qual pode ser a utilidade da propagação das idéias espíritas?
O Espiritismo, sendo a prova palpável, evidente da existência, da individualidade e da
imortalidade da alma, é a destruição do Materialismo. Essa negação de toda religião, essa
praga de toda sociedade. O número dos materialistas que foram conduzidos a idéias mais
sadias é considerável e aumenta todos os dias: só isso seria um benefício social. Ele não
prova somente a existência da alma e sua imortalidade; mostra o estado feliz ou infeliz delas
segundo os méritos desta vida. As penas e as recompensas futuras não são mais uma teoria,
são um fato patente que se tem sob os olhos. Ora, como não há religião possível sem a
crença em Deus, na imortalidade da alma, nas penas e nas recompensas futuras, se o
Espiritismo conduz a essas crenças aqueles em que estavam apagadas, disso resulta que é o
mais poderoso auxiliar das idéias religiosas: dá a religião àqueles que não a têm; fortifica-a
naqueles em que ela é vacilante; consola pela certeza do futuro, faz aceitar com paciência e
resignação as tribulações desta vida, e afasta do pensamento do suicídio, pensamento que se
repele naturalmente quando se lhe vê as conseqüências: eis porque aqueles que penetraram
esses mistérios estão felizes com isso; é para eles uma luz que dissipa as trevas e as
angústias da dúvida.
Se considerarmos agora a moral ensinada pelos Espíritos superiores, ela é toda evangélica, é
dizer tudo: prega a caridade cristã em toda a sua sublimidade; faz mais, mostra a
necessidade para a felicidade presente e futura, porque as conseqüências do bem e do mal
que fizermos estão ali diante dos nossos olhos. Conduzindo os homens aos sentimentos de
seus deveres recíprocos, o Espiritismo neutraliza o efeito das doutrinas subversivas da ordem
social.
Essas crenças não podem ser um perigo para a razão?
Todas as ciências não forneceram seu contingente às casas de alienados? É preciso condenálas
por isso? As crenças religiosas não estão ali largamente representadas? Seria justo, por
isso, proscrever a religião? Conhecem-se todos os loucos que o medo do diabo produziu?
Todas as grandes preocupações intelectuais levam à exaltação, e podem reagir
lastimavelmente sobre um cérebro fraco; teria fundamento ver-se no Espiritismo um perigo
especial a esse respeito, se ele fosse a causa única, ou mesmo preponderante, dos casos de
loucura. Faz-se grande barulho de dois ou três casos aos quais não se daria nenhuma
atenção em outra circunstância; não se levam em conta, ainda, as causas predisponentes
anteriores. Eu poderia citar outras nas quais as idéias espíritas, bem compreendidas,
detiveram o desenvolvimento da loucura. Em resumo, o Espiritismo não oferece, sob esse
aspecto, mais perigo que as mil e uma causas que a produzem diariamente; digo mais, que
ele as oferece muito menos, naquilo que ele carrega em si mesmo seu corretivo, e que pode,
pela direção que dá às idéias, pela calma que proporciona ao espírito daqueles que o
compreende, neutralizar o efeito de causas estranhas. O desespero é uma dessas causas;
ora, o Espiritismo, fazendo-nos encarar as coisas mais lamentáveis com sangue frio e
resignação, nos dá a força de suportá-las com coragem e resignação, e atenua os funestos
efeitos do desespero.
As crenças espíritas não são a consagração das idéias supersticiosas da Antigüidade e da
Idade Média, e não podem recomendá-las?
As pessoas sem religião não taxam de superstição a maioria das crenças religiosas? Uma
idéia não é supersticiosa senão porque ela é falsa; cessa de sê-lo se se torna uma verdade.
Está provado que, no fundo da maioria das superstições, há uma verdade ampliada e
desnaturada pela imaginação. Ora, tirar a essas idéias todo seu aparelho fantástico, e não
deixar senão a realidade, é destruir a superstição: tal é o efeito da ciência espírita, que coloca
a nu o que há de verdade ou de falso nas crenças populares. Por muito tempo, as aparições
foram vistas como uma crença supersticiosa; hoje, que são um fato provado, e, mais que
isso, perfeitamente explicado, elas entram no domínio dos fenômenos naturais. Seria inútil
condená-las, não as impediria de se produzirem; mas aqueles que delas tomam
conhecimento e as compreendem, não somente não se amedrontam, mas com elas ficam
satisfeitos, e é a tal ponto que aqueles que não as têm desejam tê-las. Os fenômenos
incompreendidos deixam o campo livre à imaginação, são a fonte de uma multidão de idéias
acessórias, absurdas, que degeneram em superstição. Mostrai a realidade, explicai a causa, e
a imaginação se detém no limite do possível; o maravilhoso, o absurdo e o impossível
desaparecem, e com eles a superstição; tais são, entre outras, as práticas cabalísticas, a
virtude dos sinais e das palavras mágicas, as fórmulas sacramentais, os amuletos, os dias
nefastos, as horas diabólicas, e tantas outras coisas das quais o Espiritismo, bem
compreendido, demonstra o ridículo.
Tais são, Príncipe, as respostas que acreditei dever fazer às perguntas que me haveis dado a
honra em me endereçar, feliz se elas podem corroborar as idéias que Vossa Alteza já possui
sobre essas matérias, e vos levar a aprofundar uma questão de tão alto interesse; mais feliz
ainda se meu concurso ulterior puder ser para vós de alguma utilidade.
Com o mais profundo respeito, sou,
de Vossa Alteza,
o muito humilde e muito obediente servidor,
ALLAN KARDEC.

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