segunda-feira, 4 de maio de 2009

Reviver o Vivido, de Jorge Adoum

TRECHO:
PRÓLOGO

Se quiséssemos colocar a obra do Dr. Jorge Adoum no velho e costumeiro fichário literário, teríamos que dispor cada um dos seus livros numa seção à parte. E não se trata do escritor que começa e procura encontrar seu lugar adequado; trata-se, isto sim, do desejo de chegar a todos os indivíduos do público leitor, heterogêneo e amorfo. Ele escreveu o ensaio lírico-filosófico Poderes, a obra profunda As chaves do reino, A sarça de Horeb, e depois o apaixonado romance Adonai, além de estudos histórico-sociológicos em O povo de mil e uma noites. Sempre aparecem, porém, duas características inconfundíveis, aquilo que forma o denominador comum da sua personalidade: a finalidade traçada de antemão, o desejo de que a obra não seja apenas uma fuga da realidade ou um ensaio de “a arte pela arte”, mas que tenha uma projeção para o real, um objetivo a cumprir, uma utilidade – pragmatismo que raras vezes tem resultado – ao mesmo tempo que um prazer. Desta maneira, vemos o aspecto apostólico em todos os personagens de suas obras e a voz evangélica, meio Bíblia e meio Breviário em partes iguais, ressoando como um eco em cada uma das grutas que o autor intencionalmente construiu. A segunda característica de sua produção reside no fato de que ela se amolda à realidade, ao mundo em que ele viveu, ao ambiente que o cercava e exercia influência sobre ele. Sua obra sempre nos deu a sensação de autobiografia. Sempre recordou o passado. Com ele sempre tivemos que voltar o olhar, e alguns encontraram as próprias pegadas no caminho que ele descrevia. E agora, com uma nova obra, Reviver o vivido, sob a forma de contos, as duas características constantes não desaparecem, mas confirmam sua posição de homem vivido, cujos projetos conhecem a terra de todas as margens de rios; e sua posição de homem que, após uma experiência vivida pessoalmente, coloca-a em palavras para ser assimilada por outro. Desta vez ele procurou o relato curto e variado. Esta variação obedece também ao desejo de satisfazer a todos que o lerem. Não é senão a aplicação, em um só volume, daquilo que demonstrou através de toda a sua obra. São contos que, às vezes, numa referência ao autor Ricardo Ariel, encontram sua explicação na poderosa imaginação oriental. É um relato intricado como uma selva ainda não explorada, emaranhada pela imaginação, mesmo quando se nos apresenta com todos os caracteres da história individual do que aconteceu “faz tempo e muito remotamente”. Mesmo quando alguns deles têm os nomes dos seus verdadeiros protagonistas, mesmo quando – não podemos negá-lo – haja algo de autobiografia, todos têm um mesmo sabor de lenda, todos contêm a mesma expectativa do extraordinário que a expressão “Era uma vez...” fazia ressoar no cérebro infantil. Todavia, apesar da variedade dos temas e da técnica do relato, perpassando a gama infinita da tradição histórica até a fábula, do inverossímil ao bíblico, de ensino tendente à superação ética do indivíduo. Mormente nos fragmentos de uma obra inédita de sua autoria, intitulada O livro sem título de um autor sem nome, que aparecem intercalados no relato.
Nesta obra, encontramos a mais serena e profunda meditação sobre o homem, vista sob diversos ângulos. Essa compreensão do destino humano, da obra que é chamado a realizar, esse conhecimento que já havia evidenciado em todas as suas obras, nada é esquecido por Jorge E. Adoum, nem mesmo no relato que, às vezes, e muito equivocadamente, dá-nos a sensação de descanso ou de abandono. E este sinal sempre evangélico, que evidentemente age em demérito do valor puramente artístico, quando se encara a arte como luxo do diletante ou do esnobe, faz-nos supor, pelo menos, que dará seus frutos, enquanto houver ouvidos que ouçam e olhos que vejam. Quando todos estamos empenhados na transformação humana, quando queremos, por diferentes meios, que se reparem os danos causados por interpretações distorcidas da civilização, quando lamentamos na própria carne os desvios individuais ou coletivos, que importa uma descensão ou declive no exclusivamente estético, no extraordinariamente original, se o que o mundo necessita não é propriamente uma diversão a mais, um meio a mais de distração e esquecimento, um veículo de evasão ou de fuga do mundo, mas uma seta que assinale os erros e uma mão que providencie remédio para os doentes? Que importa que não haja ourives da imaginação, fantásticos construtores de paraísos, nem paisagistas da realidade humana, quando surgem em seu lugar o observador analítico de um laboratório humano e o transformador – político, religioso ou médico – que faz de toda idéia e palavra arma e instrumento para realizar aquilo que constitui a missão de todo ser que pensa, que poucos, pouquíssimos, souberam compreender que esse era seu destino e sua missão?
Ao concluir a leitura de Reviver o vivido, fica-nos um sabor amargo na alma. É todo o sal humano acumulado, o mesmo que sentimos todos os dias em nossos lábios, e era preciso que o encontrássemos em algumas linhas impressas para podemos meditar, ainda que por um momento, na forma e dimensão do mundo que gira sob nossos pés. Porém, fica também – e esse é o valor das obras construtivas – a esperança de que algum dia a condição humana possa mudar, e mudará. Fica a certeza de que a única coisa que fazia falta era a vontade. Não a vontade de sofrer dos decadentistas nem a dos mártires envoltos em cilícios. Não mais a vontade de dominar e acorrentar cervizes e consciências. É somente a vontade de sanar, de destruir para construir, de construir sobre o construído, de cortar e mutilar o que está estragado ... Nada mais que a vontade, que é tão difícil de ser encontrada, como a solução de um enigma.
Esta nova obra, que segue o mesmo caminho rumo à luz, tem o valor de nos ensinar o conteúdo da humanidade que não descobrimos nos Evangelhos. Talvez seja porque vimos mais de perto a utilização que se fazia deles. Talvez porque aqueles que deviam nos ensinar negassem com as mãos o que diziam com os lábios. Ou talvez porque nos parecesse afetado. Ou porque o fosse demasiado divino...
Sem nenhuma pretensão, e quem sabe ignorando-os, esta obra os tornou humanos. Tão humanos que o compreendemos e sentimos.

J. E. Adoum (h )

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