A menina gigante, Manuel Jorge Marmelo e Maria Miguel Marmelo (texto); Simona Traina (ilustração), Campo das Letras, livro recomendado para o 3º ano do 1º ciclo, leitura autónoma
Ana Grande é apresentada como uma menina normal. Com hábitos comuns, comportamentos identificáveis por outras crianças da sua idade, que nunca é revelada: “Ana Grande era uma menina que talvez tivesse a tua idade. Que ia à escola, como tu, que brincava no recreio quando chegava a hora…”. O seu quarto cumpre igualmente essa normalidade, com quadros na parede, a secretária, livros e brinquedos no chão. E lá está Ana, de olhos grandes, debruçada sobre a cama.
Esta é a primeira página do livro e, apesar do título e do nome da personagem, ainda nada a distingue extraordinariamente da maioria das crianças. Apenas quando viramos a página descobrimos que Ana Grande tem umas pernas enormes, que a colocam quase ao nível da estante da sala. Agora sim, depois de conhecermos Ana e de a aceitarmos, agora somos informados deste pormenor, que será o problema condutor da narrativa: Ana era muito maior que as outras crianças. Os inconvenientes que a altura lhe trazia não seriam tão duros, não fosse a reacção dos demais, que a discriminavam, não aceitavam as suas dificuldades e ainda faziam chacota.
Texto e lustração caminham de mãos dadas, ocultando e revelando juntos a mensagem. O ar infeliz da menina contrasta com a alegria dos colegas que a perseguem e lhe chamam nomes no recreio e dentro da sala de aula. A expressão facial de Ana, com destaque para a curva descendente que delineia a sua boca, permanece a mesma ao longo de várias imagens, reforçando a sua infelicidade constante, em situações várias.
O conflito interno de Ana Grande avolumava-se, questionando a sua condição. Até que um dia o drama atinge o seu clímax, quando a menina pergunta aos pais se é adoptada e recebe uma resposta positiva. Aqui se dá uma reviravolta na história: quando foge de casa, Ana encontra no parque uma menina mais velha, alta como ela, que lhe dá a conhecer o lado positivo da sua diferença. Jogar basquetebol é uma actividade em que pessoas como ela têm mais sucesso que as demais.
O final feliz encerra uma mensagem de valorização do indivíduo, não só no que concerne as diferenças explícitas, como acontece com Ana Grande, mas também no caso de pessoas que nunca se destacam em nada, até um dia descobrirem a sua verdadeira vocação. O prazer de fazer algo que nos realiza, algo em que somos bons, faz com que os outros nos vejam com respeito e orgulho. Mas não se trata de uma conquista individual, e por isso o basquetebol, que seria uma resposta adequada pela característica física da personagem, não representa apenas a sua vocação. Sendo um desporto colectivo, integra outras pessoas igualmente altas, permitindo que se sintam identificadas umas com as outras, e criando assim um ambiente de comunidade.
Os autores Manuel Jorge Marmelo e Maria Miguel Marmelo não promovem um discurso pedagógico ou moral explícito. Tudo se reporta aos acontecimentos da vida de Ana, que nos são relatados sob a sua perspectiva.
A linearidade e a objectividade da narração funcionam como sucessivos alertas para a crueldade dos outros, para a sua incompreensão. “Na verdade, Ana Grande não só não podia brincar com os amigos da escola, como também se transformou em objecto de maldade dos outros meninos, que corriam à sua volta, gozando, enquanto lhe chamavam:
- Menina de andas!
- Menina de andas!
- Menina de andas!"
O discurso directo exemplifica os comportamentos, particularizando uma situação que em abstracto não tem o mesmo efeito cruel. A importância do exemplo é reforçada num parênteses narrativo, quando o narrador compara a ‘postura trapalhona e desengonçada’ de Ana à sensação que uma criança tem ao vestir a roupa dos adultos. A ilustração acompanha o exemplo dado pelo texto, reforçando expressivamente a situação com folgas, pregas e caudas que transborda da roupa que duas crianças vestem. A cumplicidade entre palavra e imagem é evidente, e da sua relação sai reforçada a ideia de proximidade aos leitores, pela referencialidade dos elementos que constam das ilustrações espaciais (o quarto, a sala, a escola, o parque…). A definição do traço e a presença do risco dá carácter às personagens, pela imperfeição e desalinho natural à vida das crianças.
Quanto à ilustração da capa-contracapa, só quando vista na sua totalidade oferece a dimensão da menina. Se for vista parcialmente (apenas a capa ou apenas a contracapa) Ana aparenta um tamanho comum. A escolha gráfica não terá sido em vão. Para além disso, sem outro elemento de comparação, Ana não terá uma altura desmedida e, rodeada por objectos familiares, é efectivamente uma menina normal.
Em suma, a alteridade e a diferença são muito mais uma questão de perspectiva do que uma verdade objectiva. Nesse sentido, o livro ultrapassa a tese de que todas as diferenças devem ser aceites e questiona o que é a diferença.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário