Ssschep, Eugénio Roda (texto), Gémeo Luís (ilustração), Edições Eterogémeas, livro recomendado para o 5º ano do 2º ciclo, leitura autónoma
Ssschlep quando a boca sorve a sopa da colher.
Este é o momento glorioso em que o esforço é recompensado: quando a criança come finalmente a sopa. O álbum tenta, página a página, alcançar o sucesso de realizar a onomatopeia. O que efectivamente acontece, e não é mesmo no final. A criança leva a colher ao prato, e do prato à boca várias vezes, tentando constatar a veracidade da história que a mãe lhe revela: os legumes falam. A criança não os ouve… A mãe explica: falavam, antes de serem passados pela bruxa da varinha mágica. O verde do puré de legumes (e da capa do livro) é desconstruído na tentativa de se encontrarem os ingredientes originais que o fizeram puré, e assim restituir à sopa a liberdade dos legumes. A plurissignificação do léxico aproxima o quadro familiar da refeição da própria invenção, traçando uma ambiguidade referencial no discurso da mãe. Assim se introduz o elemento lúdico que enriquece o texto. Mas o efeito de estranheza comunicacional não se fica pelo léxico. Expressões como: “O que te diz a sopa de alho francês” ganha um novo sentido, fora do reconhecimento comum que significa se gostas ou não de sopa de alho francês. O verbo dizer tem também um sentido denotativo obrigatório, já que o alho francês também fala, agora. Logo, o que disser, será em língua francesa… O jogo semântico inverte o jogo entre o óbvio e o idiomático, obrigando o leitor a reflectir sobre o uso das expressões que utiliza diariamente.
As ilustrações ampliam esta relação comunicação-invenção. A criança, a sua mão, a colher e o prato estão ligados pelas linhas e espaços da mesa. Através desta ligação original, a ilustração ganha uma dinâmica quase animada de alteração das formas e deslocação das linhas no espaço. É uma espécie de ilustração em devir, porque a Ada nova imagem há um vestígio da imagem anterior e um indício de mudança na que se seguirá. Inicialmente esta umbilicalidade acontece apenas no espaço físico que a criança, sentada, ocupa, e o tampo da mesa onde estão o prato e a colher. À medida que os legumes ganham vida numa memória inventada pela mãe, também o prato liberta o seu conteúdo que voa em movimentos circulares. Quando a criança começa a empatizar com a ideia de que a voz dos legumes foram silenciados pela bruxa da varinha mágica que os passou (passar é uma das palavras usadas com dois sentidos) as linhas emaranhadas que emergem do prato enlaçam-se com a mesa, a cadeira e a criança, ocupando por fim um lugar debaixo da mesa. Um esconderijo, uma inversão?
A dupla Eugénio Roda (texto) - Gémeo Luís (ilustração) funciona como poucas no panorama nacional, tal é a sua identidade, a sua voz própria. Busca e encontra matéria para desconstruir, mostrando as suas partes em interacção. Palavra e imagem não se tornam impossíveis de alcançar. Pelo contrário, é muitas vezes o (re)encontro com o mais simples que torna palavras, frases, figuras, movimentos, autênticos momentos poéticos.
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