terça-feira, 28 de agosto de 2007

Ascese Mística, de Pietro Ubaldi

Primeira Parte
O FENÔMENO
I
SITUAÇÃO DO PROBLEMA
Analisarei neste volume o fenômeno da ascese mística. Dispenso-me de novamente situá-lo
no campo cultural e no momento psicológico moderno, visto como o apresento em seu duplo
aspecto de fenômeno científico e de fenômeno espiritual, como seqüência lógica e vivida do
fenômeno inspirativo, já amplamente analisado no precedente volume1. Quem o tiver lido, nele
terá encontrado o duplo pretexto desta continuação, seja no campo científico, seja no campo
espiritual. E para responder objetivamente, ou por outra, quase fotograficamente, à realidade do
fenômeno, tal qual foi por mim vivido, aqui o analisarei e aprofundarei, sob dois aspectos
decorrentes de duas psicologias diversas, que, embora hoje consideradas opostas, são para mim
equivalentes: a ciência e a fé.
Servirá isto para demonstrar sua identidade substancial em todos os campos e,
principalmente, em face deste tão discutido e controverso fenômeno místico; servirá igualmente
para evidenciar que já devem ser tidos por superados certos antagonismos ultimamente tão
agudos e transformados em sementes de dolorosas cisões da unidade do pensamento e da fé. E,
quando eu tiver feito convergir para as mesmas conclusões as extremas e opostas atitudes do
pensamento humano, minha concepção interpretativa, baseada na realidade por mim muito
intensamente sentida, terá solidez de verdade universal e poderá ser considerada novo
fundamento que, no meu permanente anseio de realizar o bem, terei conseguido lançar para a
construção do edifício do conhecimento. Ouso esperar isso, não somente como fruto do imenso
trabalho interior em que me tenho amadurecido, por fatalidade da lei de evolução, superior aos
méritos meus e à minha própria vontade, senão também porque este mesmo estudo constitui,
para mim, tão alto coroamento de minhas precedentes sínteses, que as posso resumir e levantar
todas para aquilo que eu poderia chamar minha mais alta síntese conceptual, de paixão e de vida.
O fenômeno místico é, de fato, animado por um dinamismo tão potente e profundo, feito de
maturações e superamentos interiores tão substanciais e anelante de ímpetos tão excelsos, que
deve ser necessariamente considerado no vértice das aspirações da inteligência e do coração.
O precedente estudo, a que já me reportei, conquanto seja aparentemente exaustivo e
definitivo, mais não é do que a preparação deste, assim como o fenômeno da mediunidade
inspirativa, nele descrito, não foi, para mim, mais do que uma fase de vida. Nesta nova fase,
parecem levantar-se, como num turbilhão, todas as potências da alma humana, e eu, através de
minha exposição, guiarei o leitor, que me seguiu até aqui, ainda além da sensação viva da vertigem
arrebatadora que me tem golpeado nos meus estados supranormais de visão e de êxtase.
Afirmei que isso é continuação de precedentes fases do fenômeno, razão pela qual neste escrito
devo referir-me necessariamente ao volume em que estas são descritas. Declarei que se trata de
fenômenos por mim vividos, pelo que sou compelido a falar ainda de mim. Se isso é deselegante,
é todavia garantia de objetividade, porque minha análise toca, também aqui, assim como nas
fases já examinadas, uma realidade que, embora interior, me é perfeitamente acessível.
Conquanto pessoal e objetiva, dela pude abstrair-me nitidamente, submetendo-a a estudo
metódico, analítico e científico.
Somente numa segunda parte o fenômeno místico é apresentado em seu aspecto espiritual,
religioso e ideal, tal qual o foi, de modo quase sempre exclusivo2. Ele se distingue, pois, dessa
comum nomenclatura, vaga e imprecisa, e é definido em suas linhas fundamentais de fenômeno
de evolução biológica, levada até o campo do mais alto psiquismo. Encarado assim, sob a forma
de caso vivido, o fenômeno, conquanto pareça circunscrito ao subjetivismo de minha consciência
individual, apresenta-se, sem dúvida, não somente na solidez de uma realidade experimental,
senão também nos limites de uma verdade universal, porquanto eu o concebo e encaro, em
concordância com minha orientação filosófica e científica, constantemente seguida, como fase da
humana e normal evolução biológica, embora seja aqui continuada e projetada até os superiores
níveis da ascensão espiritual. Verdades, pois, universais estas de que trataremos, linhas
fundamentais do desenvolvimento fenomênico, que é lei das coisas, realidade objetiva situada
além do relativo, no absoluto, realidade profundamente humana, tecida de lutas, de dores e de
conquistas.
Grande vantagem esta de poder operar sobre uma realidade psicológica, para mim
experimental, e sobre uma verdade que é universal: são estas duas bases de nosso estudo,
bastante sólidas, que compensam quanto poderiam opor-me como defeito, isto é1 a contínua
necessidade de falar de mim, assim como de minha precedente produção literária. A esta devo,
contudo, indispensavelmente reportar-me, porquanto dela resultam as primeiras fases da
maturação do fenômeno espiritual por mim vivido. É imprescindível, para compreendê-lo no
caso concreto em que o analiso e apresento, recorrer, como preparação e explicação, ao meu
passado, que o contém, em germe, e do qual ele se desenvolveu. Não saberia estabelecer
diversamente os termos deste estudo, até porque somente quem tem experimentado determinadas
sensações e emoções possui a palavra suficientemente vibrante para exprimir o inefável.
Perdoem-me semelhante ostentação, forçoso como é reconhecer quanto é ela inevitável.
Perdoem-me se ela parece chegar até uma confissão desapiedada de todo o meu ser, até a
intimidade mais recôndita, confissão que proporcionará ao leitor aquela mesma sensação que
provo, feita de sacrifício e de holocausto, ao invés de vão exibicionismo. Doação de mim
mesmo, para o conhecimento e solução dos mais árduos problemas da ciência e da fé, implícitos
no espírito, problemas do mundo, não somente em sentido evolutivo, mas também histórico,
porque místicos sempre os houve, em todos os tempos e em todos os países. A ressonância que
minha alma encontra na de tantos místicos e aquela que a deles encontra na minha, a comunhão
de fé, de experiências e de metas espirituais, a universalidade histórica de fatos e fenômenos
vividos ampliam meu pobre caso para além dos limites de um subjetivismo que, evidentemente,
já não se acha circunscrito em mim, mas transborda para além das fronteiras de minha personalidade
Espero haver, assim, justificado a posição em que situo o problema místico, que aqui se
compensa com dois sólidos pontos de apoio e, todavia dois pontos de relativa debilidade.

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