terça-feira, 28 de agosto de 2007

A sabedoria dos antigos, de Francis Bacon

Prefácio
Os tem pos mais re cu a dos (ex ce to os fa tos que le -
mos nas escrituras sagradas) estão envoltos em silêncio
e esquecimento. Ao silêncio da Antigüidade segui -
ram-se as fá bu las dos po e tas; é às fá bu las, os es cri tos
que possuímos. Assim, entre os recessos da Antigüida -
de e a me mó ria e evi dên cia dos sé cu los que se se gui ram,
des ceu como que um véu de len das, o qual se in ter pôs
en tre o que pe re ceu e o que sub sis tiu. Temo que, na
opinião de muitos, esteja me divertindo com um jogo,
usan do, para usur par as fá bu las, da mes ma li cen ça a
que os po e tas re cor re ram para in ven tá-las. E é bem ver -
da de que, se pu des se ali vi ar a ari dez de meus es tu dos
com a prática de semelhantes amenidades, para gáudio
pró prio ou alhe io, eu o fa ria. Não ig no ro quão fle xí vel é
a matéria da fá bu la, quão ma leá vel – e que, com um pou -
co de en ge nho e gar ru li ce, se lhe pode atribuir plausivel -
men te o que nun ca pre ten de ram di zer. Não me es que ço
também de que mu i to se abu sou des sas co i sas; com efe i -
to, para dar foros de venerável antigüidade a suas pró -
prias invenções e doutrinas, homens houve que distor -
ce ram as fá bu las dos po e tas em seu fa vor. Essa va i da de
não é nova nem rara, mas an ti ga e fre qüen te. Cri si po
outrora, interpretando os velhos poetas como se inter -
pretasse sonhos, fê-los filósofos estóicos. Mais absurda -
mente ainda, os alquimistas transferiram para suas ex -
periências de fornalha os passatempos e brincadeiras
dos poetas sobre as transmutações dos corpos. Tudo
isso argüí e ponderei, considerando ainda a leviandade e
a presteza com que as pessoas embalam sua imaginação
nas ale go ri as. Mas, ain da as sim, não pos so mu dar de
idéia. É que, para co me çar, não con vém per mi tir à li cen ça
e à insanidade de uns poucos conspurcarem a honra das
pa rá bo las em ge ral, já que isso se ria co i sa pro fa na e pe -
tu lan te. Uma vez que a re li gião se de le i ta nes ses véus e
sombras, removê-los impediria todo comércio entre o
humano e o divino. Mas falemos apenas da sabedoria
dos ho mens. Sem dú vi da – con fes so-o com can du ra –,
par ti lho da se guin te opi nião: por sob nú me ro não pe -
queno de fábulas dos poetas antigos jazem, desde o co -
me ço, um mis té rio e uma ale go ria. Bem pode dar-se que
meu gosto reverente pelos tempos recuados me haja le -
va do lon ge de ma is. A ver da de, po rém, é que em al gu -
mas des sas fá bu las, tan to na for ma e tex tu ra do re la to
quan to na ade qua ção dos no mes pe los qua is se dis tin -
guem os seus personagens, encontro uma conformidade
e uma conexão com a coisa significada, tão próximas e
tão notórias que a ninguém ocorreria negar-lhes inten -
cionalidade e reflexão: elas foram, desde o início, conce -
bi das de pro pó si to. Pois quem se ria tão in cré du lo e cego
à obviedade das coisas para, ouvindo que depois da
que da dos Gigantes a Fama sur giu como sua fi lha pós tu -
ma, não per ce ber de pron to que isso se re fe re à mur mu -
ração dos partidos e aos boatos sediciosos que sempre
circulam durante algum tempo depois da su pres são de
um mo tim? Quem, in te i ra do de que o gi gan te Tifão cor -
tou e le vou con si go os ten dões de Jú pi ter (os qua is Mer -
cúrio lhe rou bou para de vol vê-los ao pai), não ve ria logo
que o fato se re la ci o na a re be liões bem-sucedidas, pe las
qua is os reis têm cor ta dos, ao mes mo tem po, os “ten -
dões” do dinheiro e da autoridade? Pois não é sa bi do
que, mediante palavras sábias e éditos justos, os ânimos
dos súditos podem ser reconciliados, e por assim dizer
“roubados e devolvidos”, de sorte a recuperarem os reis
sua for ça? Ha ve rá quem, in for ma do de que na me mo rá -
vel cam pa nha dos de u ses con tra os gi gan tes o zur rar do
burro de Sileno pôs a es tes em fuga, não no ta rá que se me -
lhante episódio foi inventado em alusão às ambiciosas
tentativas dos rebeldes, dissipadas como geralmente o
são por fal sos bo a tos e vãos ter ro res? Ora, exis tem tam -
bém conformidade e significação nos próprios nomes,
evidentes a todos. Métis, consorte de Júpiter, significa
claramente prudência; Tifão, arrogância; Pã, o universo;
Nê me se, vin gan ça, e por aí além. Mas não encontramos,
aqui e ali, inserções de fragmentos de histórias reais, por -
meno res acrescentados à gui sa de or na men to, épo cas
confundidas, pedaços de uma fábula enxertados em outra
e uma nova alegoria introduzida? Tais coisas não pode -
riam deixar de produzir-se em histórias inventadas
(como es tas) por ho mens que vi ve ram em di fe ren tes épo -
cas e que tinham diferentes objetivos – sendo alguns mais
modernos, ou tros mais an ti gos, uns pro pen sos à fi lo so -
fia, ou tros à po lí ti ca. Assim, que isso não nos per tur be.
Há, po rém, ou tro in dí cio, e não dos mais des pre zí ve is,
de que tais fá bu las con têm um significado oculto e implí -
ci to: é que al gu mas de las são tão ab sur das e tão nés ci as,
se nos ativermos simplesmente ao relato, que é de crer
estejam anunciando alguma coisa de longe, proclaman do
que tra zem em si uma pa rá bo la. Por quan to uma fá bu la
verossímil talvez tenha sido composta por simples des -
fas tio, à imi ta ção da his tó ria; mas, ante uma nar ra ti va
que homem nenhum poderia ter concebido ou propalado,
podemos presumir que dissimula alguma outra inten -
ção. Que dizer desta invencionice: Júpiter toma Métis
por es po sa; logo que a vê grá vi da, de vo ra-a; ei-lo grá vi do,
ele pró prio – e a par te jar, de sua ca be ça, Palas inteira -
mente armada!? Penso que ninguém teve jamais sonho
tão monstruoso e extravagante, inteiramente alheio às
formas naturais do pensamento.
Mas a con si de ra ção que mais peso tem para mim é
que pou cas des sas fá bu las, tais qua is as en ca ro, fo ram
realmente inventadas pelos bardos que as recitaram e
celebrizaram – Homero, Hesíodo e os outros. Houves -
sem elas sido fru to da que les tem pos e da que les au to res,
por cujo in ter mé dio che ga ram até nós, eu não me da ria
o trabalho de esmiuçar grandeza ou majestade em se -
melhantes fontes. Todavia, a um escrutínio atento, per -
cebemos que foram divulgadas não como invenções
inéditas, mas como histórias cridas e consabidas. E,
uma vez que são contadas de diferentes maneiras por
escritores quase contemporâneos, percebe-se com faci -
li da de que aqui lo que to das as ver sões têm em co mum
veio de fonte antiga, enquanto as partes divergentes são
acréscimos introduzidos por vários autores com a finali -
da de de em be le zar. Essa cir cuns tân cia, a meu ver, va lo -
ri za-as ain da mais, dado que en tão não po dem ser con -
si de ra das nem in ven ções, nem fru to da épo ca dos pró -
prios poetas, mas relíquias sagradas e brisas de tempos
melhores – recolhidas das tradições de países mais anti -
gos e so pra das pe las fla u tas e trom pas dos gre gos.
Não obs tan te, se al guém per sis tir em acre di tar que o
significado alegórico das fábulas não é de forma alguma
ori gi nal e au tên ti co – ou seja, que a fá bu la veio an tes e a
alegoria depois –, não insistirei; contudo, deixando-lhe
embora a satisfação de afetar um juízo tão grave (posto
que obtuso e frouxo), combatê-lo-ei em outro terreno,
se va ler a pena. As fá bu las têm-se pres ta do a dois usos
diferentes e, o que é estranho, a propósitos contrários:
elas iludem e escamoteiam, mas ao mesmo tempo es -
clarecem e ilustram. Para sustar polêmicas, deixemos
de par te o pri me i ro des ses usos e su po nha mos que as
fábulas eram criações sem propósito definido, elabora -
das ape nas por pra zer. Mas, e o se gun do uso? Ne nhum
raciocínio engenhoso nos fará ignorá-lo. Um homem de
faculdades medianas não negará que essa é uma aquisi -
ção grave e sóbria, isenta de vaidades; utilíssima às ciên -
ci as e às ve zes in dis pen sá vel a elas. Re fi ro-me à ado ção
das parábolas como método de ensino, graças ao qual
invenções novas e abstrusas, distantes do arrazoado
vulgar, encontram passagem fácil para o entendimento.
Por isso mes mo, nos tem pos re cu a dos, quan do as cri a -
ções e so lu ções da ra zão hu ma na (in clu in do as que hoje
são banais e consabidas) ainda eram novas e intrigan -
tes, o mun do an da va re ple to de toda a sor te de fá bu las,
enigmas, parábolas e símiles. Ora, tais criações não
eram usadas para obscurecer e ocultar significados, mas
como um meio de ex pli cá-los – pois o in te lec to hu ma no
mostrava-se então tosco e avesso às sutilezas que não
iam di re ta men te ao âma go do sen ti do (para não di zer
que era in ca paz de apre en dê-las). Assim como os hi e ró -
glifos vieram antes das letras, as parábolas vieram antes
dos ar gu men tos. E ain da hoje, se al guém qui ser lan çar
nova luz so bre um as sun to na men te hu ma na, sem
ofen sa ou as pe re za, deve ado tar o mes mo sis te ma e pro -
cu rar a aju da dos sí mi les.
Do que aí fi cou dito, con cluo o se guin te: a sa be do ria
das eras an ti gas foi imen sa ou afor tu na da; imen sa se, de
indústria, excogitou um disfarce ou tropo para o signifi -
cado; afortunada se, desinteressadamente, deu matéria
e ocasião a tantas contemplações meritórias. Minhas
penas, se para alguma coisa valerem, serão de qualquer
maneira recompensadas: estarei projetando luz sobre a
Antigüidade ou sobre a própria natureza.
Que o as sun to já foi es mi u ça do por ou tros, bem o
sei; mas, se ouso dizê-lo (e digo-o sem afe ta ção), os tra -
balhos até hoje feitos nesses moldes, embora extensos e
fatigantes, quase despojaram a investigação de toda a
sua beleza e valor. Homens inexperientes na matéria,
sabedores de pouco mais que trivialidades, aplicaram o
sentido das parábolas a certas generalizações e observa -
ções corrique iras, sem captar sua verdadei ra força, sua
adequação genuína e seu alcance profundo. Aqui, no
entanto, vereis (se não nos enganamos) que, embora os
temas sejam velhos, o tratamento é novo. Afastamo-nos
das planícies abertas e avançamos rumo a alturas mais
dis tan tes e mais no bres.

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