domingo, 26 de agosto de 2007

O Manuscrito de Ibn Fadlan

O manuscrito Ibn Fadlan representa o primeiro relato conhecido de uma testemunha ocular da vida e sociedade dos Vikings. É um documento extraordinário, que descreve em pormenores intensos acontecimentos que ocorreram há mais de mil anos. É óbvio que o manuscrito não sobreviveu intacto ao longo desse extenso período de tempo.

Tem uma história peculiar, não é menos notável do que o próprio texto. Proveniência do manuscrito. Em Junho de 921 d. C., o califa de Bagdá enviou um membro da sua corte, Ahma Ibn Fadlan, como embaixador para o rei dos Búlgaros. Ibn Fadlan esteve ausente em viagem durante três anos e nunca conseguiu cumprir a sua missão, pois no caminho encontrou um grupo de homens do Norte e teve muitas aventuras entre eles.

Quando, por fim, regressou a Bagdá, Ibn Fadlan registou as suas experiências sob a forma de um relatório oficial para a corte. Esse manuscrito original já desapareceu há muito tempo, e para o reconstituir temos de nos basear em fragmentos parciais preservados em fontes mais recentes. O mais conhecido de todos é um léxico geográfico árabe escrito por Yakutibn-Abdallah algures no século treze. Yakut inclui uma dúzia de trechos literais do relato de Ibn Fadlan, que já tinha na altura trezentos anos.Temos de presumir que Yakut trabalhou a partir de uma cópia do original. No entanto, estes poucos parágrafos foram mais tarde traduzidos e retraduzidos vezes sem conta por estudiosos.

Foi descoberto outro fragmento na Rússia, em 1817, e foi publicado em alemão pela Academia de São Petersburgo em 1823. Este material inclui determinados trechos anteriormente publicados por J. L. Rasmussen em 1814. Rasmussen trabalhou a partir de um manuscrito que encontrou em Copenhagen, posteriormente perdido, e de origem duvidosa. Nessa época existiram igualmente traduções suecas, francesas e inglesas, mas são todas notoriamente incorretas e, aparentemente, não incluem nenhum material novo.

Em 1878, foram descobertos dois manuscritos novos na coleção particular de antiguidades de Sir John Emerson, o embaixador britânico em Constantinopla. Aparentemente, Sir John era um daqueles colecionadores ávidos cujo zelo pela aquisição excedia o interesse pelo artigo adquirido. Os manuscritos foram encontrados após a sua morte; ninguém sabe onde é que os obteve, nem quando.

Um é uma geografia em árabe escrita por Ahma Tusi, datada com segurança de 1047 d.C. Cronologicamente, isto torna o manuscrito Tusi mais próximo do que qualquer outro do original de Ibn Fadlan, que tinha sido presumivelmente escrito cerca de 924-926 d.C. Porém, os estudiosos consideram que o manuscrito Tusi é a menos fiável de todas as fontes; o texto está cheio de erros óbvios e inconsistências internas, e embora contenha muitas citações de um “Ibn Fadlan” que visitou o país do Norte, muitos especialistas hesitam em aceitar este material.

O segundo manuscrito é o de Amin Razi, e foi datado aproximadamente de 1585-1595 d.C. Está escrito em latim e segundo o seu autor é traduzido diretamente do texto árabe de Ibn Fadlan. O manuscrito Razi contém algum material sobre os turcos Oguz, e diversos trechos relativos a batalhas com os monstros do nevoeiro, não encontradas noutras fontes.

Em 1934, o texto final em latim medieval foi encontrado no mosteiro de Xymos, perto de Tessalônica, no noroeste da Grécia. O manuscrito Xymos contém mais comentários acerca das relações de Fadlan com o Califa, e acerca das suas experiências com as criaturas do país do Norte. Tanto o autor como a data do manuscrito Xymos são incertos.

A tarefa de comparar estas muitas versões e traduções, que se estendem por mais de mil anos, e aparecem em árabe, latim, alemão, francês, dinamarquês, sueco e inglês, é um empreendimento de proporções formidáveis. Apenas uma pessoa de grande erudição e energia poderia tentá-lo, e em 1951 uma pessoa fê-lo. Per Fraus-Dolus, professor emeritus de Literatura Comparada na Universidade de Oslo, Noruega, compilou todas as fontes conhecidas e iniciou a tarefa árdua de tradução que o ocupou até à sua morte, em 1957.

Partes da sua nova tradução foram publicadas em The Proceedings of the National Museum of Oslo: 1959-1960, mas não suscitaram muito interesse entre os acadêmicos, talvez por o jornal ter uma circulação limitada. A tradução de Fraus-Dolus era absolutamente literal; na sua própria introdução ao material, Fraus-Dolus referiu que “faz parte da natureza das línguas que uma tradução bonita não é exata, e uma tradução exata encontra a sua própria beleza sem ajuda”.

Ao preparar esta versão completa e anotada da tradução Fraus-Dolus, fiz poucas alterações. Omiti algumas partes repetitivas; estas estão indicadas no texto. Alterei a estrutura de parágrafos, iniciando cada orador diretamente citado com um parágrafo novo, de acordo com a convenção moderna. Omiti as marcas diacríticas nos nomes árabes. Por fim, alterei ocasionalmente a sintaxe original, transpondo normalmente orações subordinadas para que o significado seja apreendido com mais rapidez.



OS VIKINGS

O retrato que Ibn Fadlan faz dos Vikings difere profundamente da opinião tradicional dos Europeus em relação a este povo. As primeiras descrições europeias dos Vikings foram registradas pelo clero; na época, eles eram os únicos observadores que sabiam escrever, e viam os homens do Norte pagãos com um horror muito especial. Segue-se um trecho tipicamente hiperbólico, citado por D. M. Wilson, de um escritor irlandês do século doze:

Numa palavra, embora houvesse cem cabeças de aço duro num pescoço, e cem línguas de bronze em cada cabeça, aguçadas, prontas, frias, que nunca enferrujavam, e cem vozes gárrulas, altas, incessantes de cada língua, não podiam relatar ou narrar, enumerar ou contar, o que todos os Irlandeses sofreram em comum, tanto homens como mulheres, laicos e clero, velhos e jovens, nobres e ignóbeis, as privações e injúrias e opressão, em cada casa, daquele povo corajoso, colérico e puramente pagão.

Estudiosos modernos reconhecem que relatos tão aterradores de ataques Vikings são bastante exagerados. Todavia, os escritores europeus ainda têm tendência para considerar os Escandinavos como bárbaros sanguinários, irrelevantes para a corrente principal da cultura e das idéias ocidentais. Isto foi feito muitas vezes à custa de uma certa lógica. Por exemplo, Davi Talbot Rice escreve: Desde o século oito até ao século onze, o papel dos Vikings foi talvez mais influente do que o de outro grupo étnico individual na Europa Ocidental...

Os Vikings eram, por conseguinte, grandes viajantes e executaram façanhas de navegação extraordinárias; as suas cidades eram grandes centros de comércio; a arte deles era original, criativa e influente; tinham uma boa literatura e uma cultura refinada. Era verdadeiramente de uma civilização?

Penso que é preciso admitir que não foi... O toque de humanismo, que é o contraste da civilização, estava ausente. Esta mesma atitude está refletida na opinião de Lorde Clark: Quando consideramos as sagas islandesas, que se encontram entre os grandes livros do mundo, temos de admitir que os homens do Norte produziram uma cultura. Mas teria sido civilização?...

Civilização significa algo mais do que energia e vontade e poder criativo: algo que os primeiros homens do Norte não tinham, mas que, mesmo no tempo deles, estava a começar a reaparecer na Europa Ocidental. Como poderei defini-lo?

Bem, muito resumidamente, como um sentido de permanência. Os forasteiros e invasores mantinham-se em constante estado de fluxo. Não sentiam a necessidade de ficar ansiosamente à espera do próximo Março ou da próxima viagem ou da próxima batalha. E, por essa razão, não lhes ocorreu construir casas de pedra ou escrever livros.

Quanto mais atentamente se lêem estes pontos de vista, mais ilógicos parecem. De fato, podemos perguntar-nos por que razão acadêmicos europeus altamente educados e inteligentes concedem aos Vikings tão pouca importância. E porquê a preocupação com a questão semântica de saber se os Vikings tinham uma “civilização”?

A situação é unicamente explicável se se reconhecer uma pre disposição européia diferente dos pontos de vista da Pré-história européia. Qualquer criança ocidental aprende que o Próximo Oriente é o “berço da civilização”, e que a primeira civilização surgiu no Egito e na Mesopotâmia, alimentada pelos cursos doTigre e do Eufrates. Dali, a civilização estendeu-se para Creta e Grécia e depois para Roma, e acabou por chegar aos bárbaros do norte da Europa.

O que esses bárbaros faziam enquanto aguardavam a chegada da civilização não é conhecido; nem essa questão foi muitas vezes levantada. A importância está no processo de disseminação, que o falecido Gordon Childe resumiu como: “a irradiação da barbárie européia pela civilização oriental”. Muitos acadêmicos apoiam esta visão, tal como o fizeram outros acadêmicos romanos e gregos antes deles. Geoffrey Bibby diz: “A história da Europa do Norte e Ocidental é vista do Ocidente e do Sul, com todos os preconceitos de homens que se consideravam civilizados a observar homens que consideravam bárbaros”.

A partir deste ponto de vista, os Escandinavos são obviamente os mais afastados da fonte de civilização, e, logicamente, os últimos a adquiri-la; e, portanto, são devidamente considerados os últimos dos bárbaros, um espinho incomodativo ao lado das outras regiões européias que tentavam absorver a sabedoria e civilização do Oriente. O problema é que esta visão tradicional da pré-história européia foi grandemente destruída nos últimos quinze anos.

O desenvolvimento de técnicas precisas de datação por carbono transformou a antiga cronologia numa grande confusão, que apoiou as idéias antigas de difusão. Parece agora incontestável que os Europeus estavam a erigir enormes monumentos funerários megalíticos antes de os Egípcios construírem as pirâmides; o Stonehenge é mais antigo que a civilização da Grécia Micênica; a metalurgia na Europa pode muito bem preceder o desenvolvimento do trabalho artesanal dos metais na Grécia e em Tróia. O significado destas descobertas ainda não foi analisado, mas agora é certamente impossível ver os Europeus da mesma maneira.

O que os Europeus conheciam eram grupos espalhados e individuais de marinheiros que eram oriundos de uma vasta área geográfica, a Escandinávia é maior que Portugal, Espanha e França juntos e que navegavam dos seus Estados feudais individuais com o objetivo de comércio ou pirataria, ou ambos; os Vikings não faziam grande distinção entre estes. Mas essa é uma tendência partilhada por muitos marinheiros desde os gregos até aos isabelinos.

De fato, para um povo que não tinha civilização, que “não sentia a necessidade de olhar... para além da próxima batalha”, os Vikings demonstram um comportamento notavelmente persistente e intencional. Como prova do comércio muito espalhado, as moedas árabes aparecem na Escandinávia numa época tão remota como 692 d. C. Durante os quatrocentos anos seguintes, os mercadores-piratas Vikings expandiram-se para ocidente até à Terra Nova, e para sul até à Sicília e à Grécia (onde deixaram gravações nos leões de Delos), e para oriente até às montanhas Urais da Rússia, onde os seus mercadores se juntavam a caravanas que vinham da rota da seda para a China.

Os Vikings não eram construtores de impérios, e é popular dizer que a influência deles nesta vasta área não era permanente. Porém, era suficientemente permanente para terem dado nomes a muitas localidades em Inglaterra, enquanto à Rússia deram o próprio nome da nação, da tribo Rus do Norte. Em relação à influência mais sútil do seu vigor pagão, da energia inesgotável, e do sistema de valores, o manuscrito de Ibn Fadlan mostra-nos como muitas atitudes tipicamente do Norte foram mantidas até aos dias de hoje. Na verdade, há algo notavelmente familiar na sensibilidade moderna acerca do modo de vida Vikings, e algo profundamente atraente.


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