Desde o século XVI, isto é, desde a época em que o tipógrafo se encarregou dos signos, das marcas e dos títulos, títulos de capítulos ou títulos comuns, que, na época dos incunábulos, eram acrescentados à mão na página impressa, pelo corrector ou pelo dono do livro, o leitor apenas pode escrever nos espaços virgens do livro. O objecto impresso impõe-lhe a sua estrutura, as suas disposições, e não pressupõe de modo algum a sua participação. Se o leitor pretende, porém, inscrever a sua presença no objecto, só pode fazê-lo ocupando, sub-repticiamente, clandestinamente, os lugares do livro abandonados pela escrita: interiores da encadernação, folhas deixadas em branco, margens do texto, etc.
Com o texto electrónico, o mesmo não acontece. O leitor pode não só submeter o texto a múltiplas operações (pode fazer-lhe um índice, anotá-lo, copiá-lo, dividi-lo, recompô-lo, deslocá-lo, etc.), mas, mais ainda, pode tornar-se no seu co-autor. A distinção, fortemente marcada no livro impresso, entre a escrita e a leitura, entre o autor do texto e o leitor do livro, desaparece para dar lugar a uma outra realidade: aquela em que o leitor se torna num dos actores de uma escrita com várias vozes ou, pelo menos, se encontra em posição de criar um texto novo a partir de fragmentos livremente recortados e reunidos. Como o leitor do manuscrito que podia reunir num único livro obras de natureza muito diferentes, juntas na mesma compilação, no mesmo libro-zibaldone, por sua vontade própria, o leitor da idade electrónica pode construir à vontade conjuntos textuais originais, cuja existência e organização dependem apenas de si. Mas pode ainda em qualquer momento intervir nos textos, modificá-los, reescrevê-los, torná-los seus. Torna-se assim compreensível que uma possibilidade destas ponha em dúvida e em perigo as categorias que nos pertencem para descrever as obras, ligadas desde o século XVIII a um acto criador individual, singular e original, e para criar o direito em matéria de propriedade literária.
Roger Chartier, A Ordem dos Livros, Vega, pp. 146-148
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