terça-feira, 30 de junho de 2009

A Tragedia De Guanabara Ou Historia Dos Protomartyres Do Christianismo No Brasil, de Jean Crespin

TRECHO:
Prefácio
Traduzindo do francez o capitulo em que Jean Crespin, na sua obra, Histoire des Martyres,
tomo II, pags. 448-465 e 506-519, se occupa da perseguição dos Calvinistas no Brasil,
fazemol-o por desejarmos concorrer, de algum modo, á commemoração que, aos 31 de
outubro do corrente anno, o Catholicismo Evangelico fará do 4° centenario da Reforma,
bem assim por ser geralmente desconhecida a historia dos primeiros fieis que, a 9 de
fevereiro de 1558, soffreram o baptismo de sangue em Coligny, hoje fortaleza de
Villegaignon, na bahia de Guanabara - Rio de Janeiro.
Das annotações feitas a esse capitulo por Matthieu Lelièvre, na edição de 1887, vertêmos
as que nos pareceram de real valor e addicionámos outras sobre pontos que cumpria
elucidar.
O dr. Erasmo Braga, membro da Academia de Letras de S. Paulo e deão do Seminário
Theologico Presbyteriano em Campinas, havendo, em 1907, traduzido a Confissão de Fé
que determinou a execução dos martyres Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil e Pierre
Bourdon, para que constasse do Relatório da Egreja Presbyteriana, desta Capital,
apresentado pelo dr. Alvaro Reis, seu pastor collado, e relativo ao mesmo anno, precedeu-a
de alguns conceitos que, com a devida vênia, passamos a transcrever, por constituírem
excellente Prefacio ao nosso trabalho:
"Vae-se alargando o martyrologio da Egreja de Christo no Brasil:
Ainda rubra corre a torrente, quando o céo chora sobre o sangue do ultimo martyr, e a
memória dos primeiros não tem um monumento, no coração siquer de seus confrades.
E' tempo de se levantarem as campas. Tirem-se as relíquias, e alcemol-as! São os
nossos trophéos.
Não ha no mundo quem tenha mais vivo monumento dos seus martyres que nós. Nem
o Colyseu com as suas arcarias soturnas: o rugido das feras ha muito que emmudeceu.
Ali, porém, naquella bellissima bahia de Guanabara, está a ilha, onde primeiro, em
terras da America, os fíeis commemoraram a morte do Salvador.
Ao cimo da collina, uma fortaleza, como então.
Seu nome perpetúa a memória execranda do carrasco.
Lá, a rebentar dos arrecifes, as mesmas ondas que sorveram os corpos dos martyres,
vêm cobrir de branca espuma a rocha que servio de cadafalso.
E o mar ainda ruge como no dia do martyrio.
Templo, cadafalso e jazigo.
Jean de Lery, o historiador da expedição de Villegaignon, por que no dia das
retribuições não se lhe leve em conta o olvido, emprehendeu narrar os martyrios de
seus irmãos na terra do Brasil.
Quebraram-se uma por uma as promessas do ambicioso almirante; Richier é injuriado
em plena congregação; os sermões são criticados com vehemencia pelo intimo do
chefe da expedição; por fim, violenta, estoura a apostasia.
Disputava-se sobre a doutrina dos Sacramentos, e Chartier, o outro pastor que Calvino
enviára, voltou á Europa, levando appello ás egrejas-mães.
Sósinho, a luctar contra a violencia, Richier e os fieis foram obrigados a deixar o forte
e ir para o continente.
Depois de muito soffrer, puderam, um dia, ver-se à bordo de um navio que os devia
repatriar. No alto mar, porém, o velho barco fazia água, e tão desgraçadamente , que o
deposito de viveres inundara. Era necessário diminuir os de bordo; e tocou a cinco
delles voltarem numa . chalupa para a terra, onde tanto soffreram.
Villegaignon os recebeu com toda a bondade. Os remorsos, porém, que lhe torturavam
a alma, levantavam a cada canto um phantasma, e como Caim, o apostata e assassino,
temia que um braço vingador viesse, de um golpe, cercear-lhe a ambição. E os pobres
homens, tornaram-se suspeitos de traição e espionagem.
Resolvido a eliminal-os, buscava ainda o vil perseguidor um véo para encobrir o crime.
Sabia bem o mesquinho que a mesma fé ardente no coração dos confessores reduzidos
a cinzas lá na pátria, mais ardente que as brazas das fogueiras, também inflammava o
coração das suas victimas: lembrou-se que era ali o representante de Henrique II.
Era direito dos governadores, em nome do rei, exigir dos subditos uma confissão de
sua fé. O almirante ordenou, portanto, que em doze horas respondessem aos artigos de
fé que lhes enviára.
O mais velho, distinto entre elles, porque velava pela piedade de seus irmãos e porque
em letras possuía conhecimentos da língua latina, foi eleito para redigir a resposta.
Sem livros, só possuíam a Bíblia, simples crentes que talvez não tivessem aos pés de
Calvino um , curso de divindades, afflictos, cansados, em um dia, foram obrigados a
responder a difficeis questões.
Jean du Bourdel escreveu; os outros assignaram a sua Confissão de Fé.
Recebido o documento, o tyranno o fez vir à sua presença.
Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil e André la Fon vieram; Pierre Bourdon, afflicto por
moléstia, ficara no continente.
Estavam promptos, disseram, a sustentar a Confissão. Enraivecido, ordenou
Villegaignon que os mettessem no carcere a ferros.
Durante a noite, todas as horas ia revistar as algemas, a porta do cárcere, rondar as
sentinellas.
Os servos de Deus, entretanto, oravam, cantavam psalmos e se consolavam
mutuamente.
Na manhã de sexta-feira 9 de fevereiro de 1558, desceu Villegaignon, bem armado,
com um pagem, a uma sala. Mandou apresentar du Bourdel, e mandou-lhe explicar o
5.° artigo da sua confissão. Ao responder du Bourdel, uma bofetada, do apostata
fez-lhe jorrar sangue da face, e Villegaignon mofára das suas lagrimas de dôr.
Conduzido ao supplicio, ao passar pela prisão, bradava aos seus cornpanheiros que
tivessem bom animo, pois breve seriam livres desta triste vida.
Cantando psalmos, subiu á rocha; orou, e, atado de pés e mãos, o algoz o arrojou ás
ondas.
Seguiu-o Matthieu Verneuil.
A's suas supplicas que o poupasse, tivesse-o como escravo, respondia o verdugo,
menos valor tinha qui o lixo do caminho: Tendo orado, exclamando: - 'Senhor Jesus,
tem piedade de 'mim' - desappareceu no mar.
Pierre Bourdon, fraco, debilitado pela molestia foi obrigado a levantar-se, e levado
para a ilha.
Lá percebeu o que o esperava, Ao presentir o logar onde soffreram seus irmãos não se
entristeceu, pois tinham ali obtido a victoria. Cruzou os braços, elevou os olhos ao céo;
orou.
Antes de morrer, quiz saber a causa de sua morte. Respondeu-se-lhe que era a sua
assignatura de uma Confissão heretica e escandalosa.
O rugido do mar não permittiu mais ouvir a sua voz clamar pelo soccorro e favor de
Deus, e o seu corpo desappareceu no abysmo das aguas.
E foi assim naquelles tempos que os nossos irmãos pagaram com a vida a audacia de
confessar a sua fé ; e, hoje, muita gente balbucia, hesita, ante o sorriso mofador, de
qualquer insolente."
Mas o Protestantismo no Brasil, em especial, grande e relevantissimo serviço deve ao dr.
Pedro Souto Maior: referimo-nos á traducção pelo mesmo feita das Actas dos Synodos e
Classes do Brasil, no século XVII, durante o dominio hollandez, as quaes, em Appendice,
juntamos a este trabalho, autorizados pelo conspicuo traductor e insigne mestre, a quem
hypothecamos eviterna gratidão.
E, por certo, injusto fôra que deixassemos tambem de render, aqui, homenagem á maior
autoridade, no Catholicismo Protestante Brasileiro, em materia de historia geral e
ecclesiastica - o notavel tribuno e emérito publicista dr. Alvaro Reis, autor de obras de
reconhecido valor, das quaes, dada a sua intima relação com o "martyrio dos huguenotes",
recommendamos aos estudiosos a que tem por titulo - O Martyr le Balleur.
Não encerraremos, todavia, este Proemio sem assignalar a alta conveniencia, ou antes, á
imperiosa necessidade da creação de uma Biblioteca do Protestantismo Brasileiro, como as
que existem em outros paizes. As vantagens de um tal Departamento seriam incalculáveis.
Attente-se, por exemplo, ao enorme auxilio que a Bibliotheca do Protestantismo Francez
prestou a Matthieu Leliévre, annotador da obra de Crespin, como se vê destas suas
palavras : L'accès aux grandes Bibliothèques de Paris nous a permis de remonter aux
sources de plusieurs chapitres du Martyrologe. Nous avons notamment trouvé à la
Bibliothèque Nationale les ouvrages qui ont foumi à Crespin et à ses continuateurs les
notices sur Ange Le Merle, l'lnquisition d'Espagne et la grande persécution de l'Eglise de
Paris, et à la Bibliothéque. De l'Arsenal, le livre sur l'expédition de Villegaignon, qui a passé
tout entier dans l'Histoire des Martyres. Nous ne devons pas oublier de mentionner la
Biblíothèque dii Protestantisme Français, qui occupe une place déjà distinguée parmi les
grands dépòts des richesses liitéraires de la France. Son bibliothécaire, M. N. Weiss, nous a
foumi, à diversej reprises, des indications utiles, et nous n'avons jamais fait appel en vain à
son obligeante érudition. Quem, pois, se disporá a estudar este magno assumpto? Quem
tomará a iniciativa de tão utilitario emprehendimento? Endereçamos, em particular, taes
questões aos ministros e professores de maior prestigio do Catholicismo Protestante no
Brasil.
Oxalá que as presentes traduções, a par de outros benefícios, produzam, em nosso meio
religioso, um maior interesse pelos assumptos históricos, notadamente pelos que se
prendem á Egreja Evangélica - esse ramo orthodoxo do Christianismo, embora assim não
seja reconhecido pelos Papistas obcecados!
Rio, Agosto - 1917, Domingos Ribeiro

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