domingo, 28 de junho de 2009

História do Futuro, de Padre Antônio Vieira

TRECHO:
Plano da História do Futuro
História do Futuro (Volume I, Capítulo I: Declara-se a primeira parte do titulo desta História, e quão própria é
da curiosidade humana a sua matéria.)
por Padre Antônio Vieira
Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seu maior apetite,
nem mais superior a toda a sua capacidade, que a notícia dos tempos e sucessos futuros; e
isto é o que oferece a Portugal, à Europa e ao Mundo esta nova e nunca vista história. As
outras histórias contam as cousas passadas, esta promete dizer as que estão por vir; as
outras trazem à memória aqueles sucessos públicos que viu o Mundo; esta intenta
manifestar ao Mundo aqueles segredos ocultos e escuríssimos que não chega a penetrar o
entendimento. Levanta-se este assunto sobre toda a esfera da capacidade humana, porque
Deus, que é a fonte de toda a sabedoria, posto que repartiu os tesouros dela tão
liberalmente com os homens, e muito mais com o primeiro, sempre reservou para si a
ciência dos futuros, como regalia própria da divindade. Como Deus por natureza seja
eterno, é excelência gloriosa, não tanto de sua sabedoria, quanto de sua eternidade, que
todos os futuros lhe sejam presentes; o homem, filho do tempo, reparte com o mesmo a sua
ciência ou a sua ignorância; do presente sabe pouco, do passado menos e do futuro nada.
A ciência dos futuros — disse Platão — é a que distingue os deuses dos homens, e daqui
lhes veio sem dúvida aquele antiquíssimo apetite de serem como deuses. Aos primeiros
homens, a quem Deus tinha infundido todas as ciências, nenhuma lhes faltava senão a dos
futuros, e esta lhes prometeu o Demônio com a divindade, quando lhes disse: Eritis sicut
Dii, scientes bonum et malum. Mas ainda que experimentaram o engano, não perderam o
apetite. Esta foi a herança que nos ficou do Paraíso, este o fruto daquela árvore fatal, bem
vedado e mal apetecido, mas por isso mais apetecido, porque vedado.
Como é inclinação natural no homem apetecer o proibido e anelar ao negado, sempre o
apetite e curiosidade humana está batendo às portas deste segredo, ignorando sem
moléstia muitas cousas das que são, e afetando impaciente a ciência das que hão de ser.
Por este meio veio o Demônio a conseguir que o homem lhe desse falsamente a divindade,
que o mesmo demônio com igual falsidade lhe tinha prometido. E senão, pergunto: Quem
foi o que introduziu no Mundo, sem algum medo, mas antes com aplauso, a adoração do
Demônio? Quem fez que fosse tão freqüentado e consultado o ídolo de Apolo em Delfos? O
de Júpiter em Babilônia? O de Juno em Cartago? O de Vênus no Egito? O de Dafne em
Antioquia? O de Orfeu em Lesbo? O de Fauno em Itália? O de Hércules em Espanha, e
infinitos outros em muitas partes? Não há dúvida que o desejo insaciável que os homens
sempre tiveram de saber os futuros, e a falsa opinião dos oráculos com que o Demônio
respondia naquelas estátuas, foram os que todo este culto lhe granjearam, sendo certo que,
se Deus, vindo ao Mundo, não emudecera (como emudeceu) os oráculos da Gentilidade,
grande parte do que hoje é fé, fora ainda idolatria. Tão mal sofreram os homens que Deus
reservasse para si a ciência dos futuros, que chegaram a dar às pedras a divindade própria
de Deus, só porque Deus fizera própria da divindade esta ciência: antes queriam uma
estátua que lhes dissesse os futuros, que um Deus que lhos encobria.
Mas que direi das ciências ou ignorâncias das artes ou superstições que os homens
inventaram desde a terra até o céu, levados deste apetite? Sobre os quatro elementos
assentaram quatro artes de adivinhar os futuros, que tomaram os nomes dos seus próprios
sujeitos: agromancia, que ensina a adivinhar pelas cousas da terra; a hidromancia, pelas da
água; a aeromancia, pelas do ar, e a piromancia, pelas do fogo. Tão cegos seus autores no
apetite vão daquela curiosidade, que, tendo-se perdido na terra os vestígios de tantas
cousas passadas, cuidaram que na água, no ar e no fogo os podiam achar das futuras.
No mesmo homem descobriram os homens dois livros sempre abertos e patentes, em que
lessem ou soletrassem esta ciência. A fisionomia, nas feições do rosto; a quiromancia, nas
raias da mão. Em um mapa tão pequeno, tão plano e tão liso como a palma da mão de um
homem, inventaram os quiromantes não só linhas e caracteres distintos, senão montes
levantados e divididos, e ali descrita a ordem e sucessão da vida e casos dela, os anos, as
doenças e os perigos, os casamentos, as guerras, as dignidades, e todos os outros futuros
prósperos ou adversos; arte certamente merecedora de ser verdadeira pois punha a nossa
fortuna nas nossas mãos.
Deixo a astrologia judiciária, tão celebrada no nascimento dos príncipes, em que os
genetlíacos, sobre o fundamento de uma só hora ou instante da vida, levantam ou figura ou
testemunhos a todos os Sucessos dela. Nem quero falar na triste e funesta nicromancia,
que, freqüentando os cemitérios e sepulturas no mais escuro e secreto da noite, invoca com
deprecações e conjuros as almas dos mortos para saber os futuros dos vivos.
A este fim excogitaram tantos gêneros de sortilégios, como se na contingência da sorte se
houvesse de achar a certeza; a este fim observaram os sonhos como se soubesse mais um
homem dormindo do que sabia acordado; a este sentido consultavam as entranhas
palpitantes dos animais, como se um bruto morto pudesse ensinar a tantos homens vivos.
Com o mesmo apetite pediam respostas às fontes, aos rios, aos bosques e às penhas; com o
mesmo inquiriam os cantos e vôos das aves, os mugidos dos animais, as folhas e
movimentos das árvores, com o mesmo interpretavam os números, os nomes e as letras, os
dias e os fumos, as sombras e as cores e não havia cousa tão baixa e tão miúda por onde os
homens não imaginassem que podiam alcançar aquele segredo que Deus não quis que eles
soubessem. O ranger da porta, o estalar do vidro, o cintilar da candeia, o topar do pé, o
sacudir dos sapatos, tudo notavam como avisos da Providencia e temiam como presságios
do futuro. Falo da cegueira e desatino dos tempos passados, por não envergonhar a
nobreza da nossa Fé com a superstição dos presentes.
Finalmente, a investigação deste tão apetecido segredo foi o estudo e disputa dos maiores e
mais sinalados filósofos, de Sócrates, de Pitágoras, de Platão, de Aristóteles e do eloqüente
Túlio, nos livros mais sublimes e doutos de todas suas obras. Esta era a teologia famosa dos
Caldeus; este o grande mistério dos Egípcios; esta em Roma a religião dos áugures; esta em
Judéia a seita dos Pitões e Aríolos; esta em Pérsia a ciência e profissão dos Magos; esta
enfim do Céu até o Inferno, o maior desvelo dos sábios e maior ânsia e tropeço dos
ignorantes; uns injuriando o Céu, e dando trato às estrelas para que digam o que não
podem; outros inquietando o Inferno (como dizia Samuel), e tentando os mesmos demônios,
para que revelem o que não sabem. Tanto foi em todas as idades do Mundo, e tanto é hoje,
na curiosidade humana, o apetite de conhecer o futuro!
Mas o que mais que tudo encarece a tenacidade deste desejo, é considerar que, enganados
tão profundamente os homens pela falsidade e mentira de todas estas artes e seus
ministros, não tenha bastado nenhuma experiência, nem haja de bastar já para mais os
desenganar e apartar dele: Genus hominum potentibus infidum, sperantibus fallax, quod in
civitate nostra, et vetabitur semper et retinebitur, disse Tácito. O mesmo Saul, que
desterrou a Pitonisa, a foi buscar e se serviu de sua má arte; e os mesmos que mais
severamente negam o crédito às cousas prognosticadas, folgam de ouvir e saber que se
prognosticam, sinal certo que não buscam os homens os futuros, porque os achem, senão
que vão sempre após eles, porque os amam.
Para satisfazer, pois, à maior ânsia deste apetite e para correr a cortina aos maiores e mais
ocultos segredos deste mistério, pomos hoje no teatro do Mundo esta nossa História, por
isso chamada do Futuro. Não escrevemos com Beroso as antiguidades dos Assírios, nem
com Xenofonte a dos Persas, nem com Heródoto as dos Egípcios, nem com Josofo a dos
Hebreus, nem com Cúrcio a dos Macedônios, nem com Tucídides a dos Gregos, nem com
Lívio a dos Romanos, nem com os escritores portugueses as nossas; mas escrevemos sem
autor o que nenhum deles escreveu nem pôde escrever. Eles escreveram histórias do
passado para os futuros, nós escrevamos a do futuro para os presentes. Impossível pintura
parece antes dos originais retratar as cópias, mas isto é o que fará o pincel da nossa
História.
Assim foram retratos de Cristo Abel, Isaac, José, David, antes do Verbo ser homem. O que
ignorou o mundo antigo, o que não conheceu o moderno e o que não alcança o presente, é o
que se verá com admiração neste prodigioso mapa descrito: cousas e casos que ainda lhes
falta muito para terem ser quanto mais Antigüidade.
A história mais antiga começa no princípio do Mundo; a mais estendida e continuada acaba
nos tempos em que foi escrita. Esta nossa começa no tempo em que se escreve, continua
por toda a duração do Mundo e acaba com o fim dele. Mede os tempos vindouros antes de
virem, conta os sucessos futuros antes de sucederem, e descreve feitos heróicos e famosos,
antes de a fama os publicar e de serem feitos.
O tempo, como o Mundo, tem dois hemisférios: um superior e visível, que é o passado,
outro inferior e invisível, que é o futuro. No meio de um e outro hemisfério ficam os
horizontes do tempo, que são estes instantes do presente que imos vivendo, onde o passado
se termina e o futuro começa. Desde este ponto toma seu princípio a nossa História, a qual
nos irá descobrindo as novas regiões e os novos habitadores deste segundo hemisfério do
tempo, que são os antípodas do passado. Oh que de cousas grandes e raras haverá que ver
neste novo descobrimento!
Aqueles historiadores que nomeamos e foram os mais célebres do Mundo, escreveram os
impérios, as repúblicas, as leis, os conselhos, as resoluções, as conquistas, as batalhas, as
vitórias, a grandeza, a opulência e felicidade, a mudança, a declinação, a ruína ou daquelas
mesmas nações, ou de outras igualmente poderosas, que com elas contendiam. Nós
também havemos de falar de reinos e de impérios, de exércitos e de vitórias, de ruínas de
umas nações e exaltações de outras; mas de impérios não já fundados, senão que se hão-de
fundar; de vitórias não já vencidas, mas que se hão-de vencer; de nações não já domadas e
rendidas, senão que se hão-de render e domar.
Hão-se de ler nesta História, para exaltação da Fé, para triunfo da Igreja, para glória de
Cristo, para felicidade e paz universal do Mundo, altos conselhos, animosas resoluções,
religiosas empresas, heróicas façanhas, maravilhosas vitórias, portentosas conquistas,
estranhas e espantosas mudanças de estados, de tempos, de gentes, de costumes, de
governos, de leis; mas leis novas, governos novos, costumes novos, gentes novas, tempos
novos, estados novos, conselhos e resoluções novas, empresas e façanhas novas,
conquistas, vitórias, paz, triunfos e felicidades novas; e não só novas, porque são futuras,
mas porque não terão semelhança com elas nenhumas das passadas. Ouvirá o Mundo o que
nunca viu, lerá o que nunca ouviu, admirará o que nunca leu, e pasmará assombrado do que
nunca imaginou. E se as histórias daqueles escritores, sendo de cousas menores antigas e
passadas, se leram sempre com gosto, e depois de sabidas se tornaram a ler sem fastio,
confiança nos fica para esperar que não será ingrato aos leitores este nosso trabalho, e que
será tão deleitosa ao gosto e ao juízo a História do Futuro, quanto é estranho ao papel o
assunto e nome dela.
Mas porque não cuide alguma curiosidade crítica que o nome do futuro não concorda nem
se ajusta nem com o título de história, saiba que nos pareceu chamar assim à esta nossa
escritura, porque, sendo novo e inaudito o argumento dela, também lhe era devido nome
novo e não ouvido.
Escreveu Moisés a história do princípio e criação do Mundo, ignorada até aquele tempo de
quase todos os homens. E com que espírito a escreveu? Respondem todos os Padres e
Doutores que com espírito de profecia. Se já no Mundo houve um profeta do passado,
porque não haverá um historiador do futuro? Os profetas não chamaram história às suas
profecias, porque não guardam nelas estilo nem leis de histórias: não distinguem os
tempos, não assinalam os lugares, não individuam as pessoas, não seguem a ordem dos
casos e dos sucessos, e quando tudo isto viram e tudo disseram, é envolto em metáforas,
disfarçado em figuras, escurecido com enigmas e contado ou cantado em frases próprias do
espírito e estilo profético, mais acomodadas à majestade e admiração dos mistérios, que à
notícia e inteligência deles.
Do profeta Isaías, que falou com maior ordem e maior clareza, disseram S. Jerônimo e
Santo Agostinho que mais escrevera história que profecia. A sua profecia é o Evangelho
fechado; o Evangelho é a sua profecia aberta. E porque nós, em tudo o que escrevemos,
determinamos observar religiosa e pontualmente todas as leis da história, seguindo em
estilo claro e que todos possam perceber, a ordem e sucessão das cousas, não nua e
secamente, senão vestidas e acompanhadas das suas circunstancias; e porque havemos de
distinguir tempos e anos, sinalar províncias e cidades, nomear nações e ainda pessoas,
(quando o sofrer a matéria), por isso, sem ambição nem injúria de ambos os nomes,
chamamos a esta narração História e História do Futuro.
Sós e solitariamente entramos nela (mais ainda que Noé no meio do dilúvio) sem
companheiro nem guia, sem estrela nem farol, sem exemplar nem exemplo. O mar é
imenso, as ondas confusas, as nuvens espessas, a noite escuríssima; mas esperamos no Pai
dos lumes (a cuja glória e de seu Filho servimos), tirará a salvamento a frágil barquinha: ela
com maior ventura que Argos, e nós com maior ousadia que Tífis.
Antes de abrir as velas ao vento (oh faça Deus que não seja tempestade!), em lugar da
benevolência que se costuma pedir aos leitores, só lhes quero pedir justiça. É de direito
natural que ninguém seja condenado sem ser ouvido; isto só deseja e pede a todos a nova
História do Futuro, com palavras não suas, mas de S. Jerônimo: Legant prius et postea
Anexo:Imprimir/ História do Futuro 6
despiciant: «Leiam primeiro, e depois condenem» — assim dizia aquele grande mestre da
Igreja, defendendo a sua versão dos sagrados Livros, então perseguida e impugnada, hoje
adorada e de fé.

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