terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Balanço: porquê lêr os Clássicos Juvenis?

Ler os ditos clássicos juvenis começou a ganhar uma força de necessidade no ano passado, quando percebi que neles estava a origem possível do ‘género’. Ao contrário do que acontece com a Literatura Universal, é fácil chegar às fontes, no que concerne o juvenil, porque elas estão a um, dois séculos de distância apenas.
O primeiro desafio que se propõe ao leitor é o de descobrir o que têm estes livros em comum para terem alcançado um estatuto de cânone. A resposta não é linear nem consensual, mas é certo que por um lado, na sua maioria, os ditos clássicos têm como personagens principais crianças ou jovens. É igualmente de notar que todos, ou quase todos, não foram intencionalmente dirigidos ao público infantil, apesar de o ter como referente narrativo. Finalmente, o fenómeno ganhou proporções teóricas depois da apropriação espontânea dos livros, por parte dos mais novos.

Primeiras descobertas

Assim, depois de me ter iniciado com A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson pela Suécia (Selma Lagerlof, Relógio d’Água) cuja memória apenas me conduzia à série de desenhos animados que via religiosamente todos os sábados ou domingos de manhã, quando era pequena, continuei com As aventuras de Pinóquio (Carlo Colodi, Caminho). Aí deu-se a minha primeira revelação: ao contrário do que acontecera com Nils, cujas recordações se confirmaram integralmente, comprovando a fidelidade da animação à obra, com Pinóquio percebi que a apropriação da Disney desvirtua grandemente a personagem, retirando-lhe a densidade que se reconhece no livro. Pinóquio não é um mentiroso compulsivo, nem tão pouco se mantém inconsciente e insensível ao longo de toda a história. Tendo em conta que Pinóquio empreende uma viagem iniciática, aliás como acontece com Nils, (embora com contornos e aprendizagens diferentes), os seus erros servem o seu crescimento, e estão intimamente ligados à curiosidade pelo mundo. Por outro lado, os laços afectivos vão-se tornando cada vez mais importantes até ao momento catártico da transformação definitiva num menino responsável.

Peter Pan

Este ano a dupla de clássicos escolhida foi Peter Pan (J.M.Barrie, Cavalo de Ferro) e O Vento nos Salgueiros (Kenneth Grahame,Tinta-da-China). Confesso que Peter Pan nunca fez parte do meu imaginário, era até uma figura com que embirrava um bocadito. Talvez por nunca ter visto o filme da Disney, não podia partilhar juízos com as outras crianças a respeito. Não sei porquê, mas o facto é que não gostava da personagem. O que me fez desejar ler o livro foi precisamente não conhecer a história. Depois de ter visto a exposição da Susanne Janssen na Ilustrate e perante as ilustrações da Paula Rego que acompanham a narrativa na edição da Cavalo de Ferro, decidi-me pela leitura.
Pude então ter acesso a um mundo surpreendentemente cáustico, pleno de manipulações, jogos de poder, insegurança, egocentrismo e medo, em que as crianças são os seus actores. Peter Pan é uma personagem extraordinariamente complexa, inspirando, mesmo a um adulto, sentimentos antagónicos de carinho e revolta. A teia de relações e o nível de implicações que esta teia representa no quotidiano na Terra do Nunca leva o leitor a ver aquelas crianças como seres autónomos, capazes e auto-suficientes, numa direcção oposta àquela que os nossos olhos comummente vêem. O estilo é tão vívido, detalhado, imagético, que visualisamos Wendy a cozer as roupas de todos os meninos, ou a preparar as refeições, dominando com perícia e naturalidade quer as tarefas, quer as emoções e relações do grupo. O que Barrie faz é inverter as regras do jogo e mostrar ao mundo as crianças a fingirem-se de adultos e a poderem fazê-lo, porque o sabem. A angústia do adulto ao ler Peter Pan é essa: a da sua total irrelevância. Mas a complexidade da obra não se esgota nesta tensão infância – idade adulta. Há a tensão entre géneros e a temática do abandono: a figura da mãe, que mima, protege, pune… e está enfim só. A leitura de Peter Pan é um jogo de espelhos.

O Vento nos Salgueiros

O Vento nos Salgueiros é uma bucólica narrativa oitocentista (apesar da edição datar de 1908), naturalista, detalhada, sinestética, paradigmática da sociedade inglesa. Os simpáticos animais do bosque (Toupeira, Rato, Texugo e Sapo) representam figuras distintas: a Toupeira, um indivíduo simples, pacato, humilde, com curiosidade pelo mundo mas ponderado na maioria dos seus actos; o Rato, uma figura sociável e solidária, que domina o espaço onde se move e se orgulha disso; o Texugo, um ser anti-sociável mas inteligente, culto, conhecedor, pouco expansivo mas de carácter nobre; finalmente o Sapo, um estroina mimado que gasta a fortuna do pai, inconsequente, mentiroso e extraordinariamente vaidoso. A partir desta galeria de personagens, desenvolvem-se peripécias decorrentes das suas relações. A narrativa tem um equilíbrio suave, intercalando episódios respeitantes a personagens diferentes, e integrando descrições degustativas, de vestuário ou mobiliário, de botânica ou climatéricas.
Mais uma vez, a referência à obra tinha-me chegado via animação. Bem me lembro da toupeira, da sua casinha, a sugestão de tempo frio e a luz pela janela. Poderei estar enganada, mas na série creio que a Toupeira vivia mais tempo em sua casa do que no livro. Mas o efeito geral foi o mesmo, pelo que não levo tão a peito a possível inverdade.

Vale a pena porque…

O percurso pelos Clássicos está ainda no início, mas começa a tornar-se mais claro relacionar temáticas e abordagens como a antropomorfização, a viagem, a criança e a sua perspectiva como condutores da narrativa.
Estes clássicos são livros de formação e de aventura. Os acontecimentos colhem entusiasmo do leitor, que imagina e deseja conhecer o desenlace de cada incidente. Mas tais momentos não são gratuitos, implicam consequências para as personagens implicadas, aquelas com quem o leitor se identifica, em quem se projecta ou reconhece (seja no presente, seja no passado). Nessas consequências reside a aprendizagem, a ética de cada um dos livros. Para além da emoção que cada ritmo impõe (Peter Pan e Pinóquio destacam-se pela intensidade, um, e sucessão, outro, de aventuras), são os juízos de valor que envolvem naturalmente aquele que lê com a narrativa. Serão livros comprometidos, engajados? Talvez seja uma categoria demasiado forte, definitiva e redutora. Não são, seguramente, livros pensados para moralizar ou ensinar. São livros problematizadores, que observam de dentro para fora o comportamento estrutural e conjuntural do humano, escolhendo crianças ou animais para o pensarem literariamente. Vale a pena os adultos lerem estes clássicos porque são boa literatura. Quanto aos jovens, vale igualmente a pena, se quiserem. Provavelmente todos eles podem ser lidos até aos 12 anos, por bons leitores. A sua leitura não será a nossa, mas a nossa não é uma só. Um clássico é um livro que perdura e se presta a novas releituras, reciclando-se e reafirmando a sua intemporalidade. Isso é tão certo para a sucessão de gerações como para o crescimento individual. Cada um de nós o pode ler e reler as vezes que desejar. Vai ser sempre um reencontro e uma novidade. Estes livros são para todos e não são para ninguém. Como toda a Boa Literatura.

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