Os romenos estão mesmo à mão de semear, nos dias que correm. É difícil avaliar o fascínio que exercem nos seus pares europeus, mas parece que é pouco. Ou pelo contrário, até, considerando uma ou outra romena que alimenta eflúvios de Leste em bares das capitais europeias.
Mas há mitos e obsessões, ideias paradas no tempo, que uma ou outra vez dão à costa, ou seja, à caixa de entrada do correio electrónico. Assim, uma blusa romena desperta no autor velhos planos, “um eco longínquo”, o repicar de “um sino há muito imobilizado”.
A inscrição matricial na memória do autor tinha-lhe chegado há muito, uns quinze anos, no encontro afectivo de uma capa de livro. E, assim, durante todo esse tempo arrastara essa ideia à volta do quadro de Matisse intitulado A Blusa Romena, datado pelo pintor de 1940.
E é este autor que vai encontrar-se com um sujeito que aceitara tornar-se “caixeiro-viajante de almas”, com a atribuída missão de “semear a esperança e a desilusão entre a espécie”, actividade em que se sentia “como peixe na água”. A qual actividade, em suma, fazia do caixeiro-viajante em questão “um acelerador de vocações, um dinamizador de sonhos e um potenciador de anseios e esperanças”. Não se entenderá muito bem, mas é assim, e afinal de contas chega.
São estes os dois pólos de uma história que escapa a todo o modelo do que há-de ser um best-seller, um daquele grandes enigmas, de violentas lutas entre o bem e o mal. O autor não está aí para isso, e é isso que faz. O que perfaz uma intensidade própria, um discurso recheado de referências intelectuais, de autores, de saberes, de ideias, de escritos. Afinal, há quem leia, pense, preze a cultura.
Mas, naturalmente, o autor, o de carne e osso, que por isso não vive só de poesia e pintura, lembra-se na página 28 de que ainda não telefonara, nesse dia, a Lumena – que o tinha a ele como namorado, entre outros, ela que cosia uma longa caminhada, iniciada como adolescente em Timisoara, no difícil pós-fuzilamento de Ceausescu. Difícil porque, afinal, nascera em berço comunista, ou seja, o pai estava feito com o fuzilado.
E ela veio por aí, pela Europa, que alternativas lhe restariam, a mais num país que vai sendo descrito pelo “caixeiro-viajante”, que conheceu o país na pista do Matisse. Quanto a Lumena, veio à cata do sonho ocidental e esteve por conta em Sevilha, mas acabou por aqui, Lisboa, numa pose de sabedoria: “Não era das que metiam conversa com os clientes”.
Era esta a blusa romena que o autor tinha à mão até que aparece o caixeiro-viajante. Não iria longe certamente... na busca de um quadro de Matisse que não se sabia exactamente onde estaria – nem qual versão seria a verdadeira. O caixeiro-viajante, sim, está em condições – até programáticas, porque ele presta contas do seu “trabalho” – de desbravar ao escritor o que ele encontrou na investigação que de Paris o levou a Bucareste, e aos corredores do comunismo romeno, às suas emanações culturais, às exalações do quotidiano.
A blusa de Matisse conduz a esta Roménia, aos romenos que temos por aí, na Europa que também nos acolhe. A história que a ela nos leva, passem as referências literárias e artísticas por vezes fastidiosas – a literatura não escapa às regras do consumo –, é um pouco confusa? Será. Mas não basta para justificar a quase indiferença que tem merecido. Porque o autor sabe o que faz, escreve bem, e acabou por produzir um livro muito superior a outros tresloucadamente incensados.
__________
António Mega Ferreira
A blusa romena
Sextante Editora, 16€
Mas há mitos e obsessões, ideias paradas no tempo, que uma ou outra vez dão à costa, ou seja, à caixa de entrada do correio electrónico. Assim, uma blusa romena desperta no autor velhos planos, “um eco longínquo”, o repicar de “um sino há muito imobilizado”.
A inscrição matricial na memória do autor tinha-lhe chegado há muito, uns quinze anos, no encontro afectivo de uma capa de livro. E, assim, durante todo esse tempo arrastara essa ideia à volta do quadro de Matisse intitulado A Blusa Romena, datado pelo pintor de 1940.
E é este autor que vai encontrar-se com um sujeito que aceitara tornar-se “caixeiro-viajante de almas”, com a atribuída missão de “semear a esperança e a desilusão entre a espécie”, actividade em que se sentia “como peixe na água”. A qual actividade, em suma, fazia do caixeiro-viajante em questão “um acelerador de vocações, um dinamizador de sonhos e um potenciador de anseios e esperanças”. Não se entenderá muito bem, mas é assim, e afinal de contas chega.
São estes os dois pólos de uma história que escapa a todo o modelo do que há-de ser um best-seller, um daquele grandes enigmas, de violentas lutas entre o bem e o mal. O autor não está aí para isso, e é isso que faz. O que perfaz uma intensidade própria, um discurso recheado de referências intelectuais, de autores, de saberes, de ideias, de escritos. Afinal, há quem leia, pense, preze a cultura.
Mas, naturalmente, o autor, o de carne e osso, que por isso não vive só de poesia e pintura, lembra-se na página 28 de que ainda não telefonara, nesse dia, a Lumena – que o tinha a ele como namorado, entre outros, ela que cosia uma longa caminhada, iniciada como adolescente em Timisoara, no difícil pós-fuzilamento de Ceausescu. Difícil porque, afinal, nascera em berço comunista, ou seja, o pai estava feito com o fuzilado.
E ela veio por aí, pela Europa, que alternativas lhe restariam, a mais num país que vai sendo descrito pelo “caixeiro-viajante”, que conheceu o país na pista do Matisse. Quanto a Lumena, veio à cata do sonho ocidental e esteve por conta em Sevilha, mas acabou por aqui, Lisboa, numa pose de sabedoria: “Não era das que metiam conversa com os clientes”.
Era esta a blusa romena que o autor tinha à mão até que aparece o caixeiro-viajante. Não iria longe certamente... na busca de um quadro de Matisse que não se sabia exactamente onde estaria – nem qual versão seria a verdadeira. O caixeiro-viajante, sim, está em condições – até programáticas, porque ele presta contas do seu “trabalho” – de desbravar ao escritor o que ele encontrou na investigação que de Paris o levou a Bucareste, e aos corredores do comunismo romeno, às suas emanações culturais, às exalações do quotidiano.
A blusa de Matisse conduz a esta Roménia, aos romenos que temos por aí, na Europa que também nos acolhe. A história que a ela nos leva, passem as referências literárias e artísticas por vezes fastidiosas – a literatura não escapa às regras do consumo –, é um pouco confusa? Será. Mas não basta para justificar a quase indiferença que tem merecido. Porque o autor sabe o que faz, escreve bem, e acabou por produzir um livro muito superior a outros tresloucadamente incensados.
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António Mega Ferreira
A blusa romena
Sextante Editora, 16€
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