TRECHO:
AS MULHERES TEM UMA ALMA?
As mulheres têm uma alma? Sabe-se que a coisa não foi sempre tida por certa, uma
vez que foi, diz-se, posta em deliberação num concilio. A negação é ainda um princípio de
fé em certos povos. Sabe-se a que grau de aviltamento essa crença as reduziu na maioria
dos países do Oriente. Se bem que hoje, entre os povos civilizados, a questão esteja
resolvida em seu favor, o preconceito de sua inferioridade moral se perpetuou no ponto
que um escritor do último século, cujo nome não nos vem à memória, definiu assim a
mulher: "Instrumento dos prazeres do homem," definição mais muçulmana do que cristã.
Desse preconceito nasceu sua inferioridade legal, que não foi ainda apagada de nossos
códigos. Por muito tempo elas aceitaram essa escravização como uma coisa natural,
tanto é poderoso o império do hábito. Ocorre assim com aqueles que, devotados à
escravização de pai a filhos, acabam por se crer de uma outra natureza que seus
senhores.
No entanto, o progresso das luzes ergueu a mulher na opinião; ela é muitas vezes
afirmada pela inteligência e pelo gênio, e a lei, embora considerando-a ainda como
menor, pouco a pouco afrouxa os laços da tutela. Pode-se considerá-la como emancipada
moralmente, se ela não o é legalmente; é a este último resultado ao qual ela chegará um
dia, pela força das coisas.
Leu-se recentemente nos jornais que uma senhorita de vinte anos vinha de
sustentar com pleno sucesso o exame do bacharelado, diante da faculdade de
Montpellier. É, diz-se, o quarto diploma de bacharel concedido a uma mulher. Não faz
ainda muito tempo a questão foi agitada para saber se o grau de bacharel podia ser
conferido a uma mulher. Se bem que isso parecesse a alguns uma monstruosa anomalia,
reconheceu-se que os regulamentos sobre a matéria não faziam menção das mulheres,
não se achando excluídas legalmente. Depois de ter reconhecido que elas têm uma alma,
se lhes reconheceu o direito de conquistar os graus da ciência, é já alguma coisa. Mas a
sua libertação parcial não é senão o resultado do desenvolvimento da urbanidade, do
abrandamento dos costumes, ou, querendo-se, de um sentimento mais exato da justiça; é
uma espécie de concessão que se lhe faz, e, é preciso bendizê-la, se lhes regateando o
mais possível.
A colocação em dúvida da alma da mulher seria hoje ridícula, mas uma questão
muito de outro modo séria se apresenta aqui, e cuja solução pode unicamente
estabelecer se a igualdade de posição social entre o homem e a mulher é de direito
natural, ou se é uma concessão feita pelo homem. Notamos de passagem que se essa
igualdade não é senão uma outorga do homem por condescendência, o que lhe dá hoje
pode lhe retirar amanhã, e que tendo para ele a força material, salvo algumas exceções
individuais, no conjunto ele será sempre o superior; ao passo que se essa igualdade está
na Natureza, seu reconhecimento é o resultado do progresso, e uma vez reconhecida, ela
é imprescritível.
Deus criou almas machos e almas fêmeas, e fez estas inferiores às outras? Aí está
toda a questão. Se ocorre assim, a inferioridade da mulher está nos decretos divinos, e
nenhuma lei humana poderia transgredi-los. Ao contrário, criou-as iguais e semelhantes,
as desigualdades fundadas pela ignorância e pela força bruta, desaparecerão com o
progresso e o reino da justiça.
O homem entregue a si mesmo não podia estabelecer a esse respeito senão
hipóteses mais ou menos racionais, mas sempre controvertidas; nada, no mundo visível,
podia lhe dar a prova material do erro ou da verdade de suas opiniões. Para se
esclarecer, seria preciso remontar à fonte, folhear nos arcanos do mundo extra-corpóreo
que ele não conhece. Estava reservado ao Espiritismo resolver a questão, não mais pelo
raciocínio mas pelos fatos, seja pelas revelações de além-túmulo, seja pelo estudo que
ele é capaz de fazer diariamente sobre o estado das almas depois da morte. E,
coisa capital, esses estudos não são o fato nem de um único homem, nem das
revelações de um único Espírito, mas o produto de inumeráveis observações idênticas
feitas diariamente por milhares de indivíduos, em todos os países, e que receberam a
sanção poderosa do controle universal, sobre o qual se apoiam todas as doutrinas da
ciência espírita. Ora, eis o que resulta dessas observações.
As almas ou Espíritos não têm sexo. As afeições que as une nada têm de carnal, e,
por isto mesmo, são mais duráveis, porque são fundadas sobre uma simpatia real, e não
são subordinadas às vicissitudes da matéria.
As almas se encarnam, quer dizer, revestem temporariamente um envoltório carnal
semelhante para elas a um pesado invólucro do qual a morte as desembaraça. Esse
envoltório material, pondo-as em relação com o mundo material, neste estado, elas
concorrem para o progresso material do mundo que habitam; a atividade que são
obrigadas a desdobrar, seja para a conservação da vida, seja para se proporcionarem o
bem-estar, ajuda seu adiantamento intelectual e moral. A cada encarnação a alma chega
mais desenvolvida; traz novas idéias e os conhecimentos adquiridos nas existências
anteriores; assim se efetua o progresso dos povos; os homens civilizados de hoje são os
mesmos que viveram na Idade Média e nos tempos de barbárie, e que progrediram;
aqueles que viverão nos séculos futuros serão os de hoje, mas ainda mais avançados
intelectualmente e moralmente.
Os sexos não existem senão no organismo; são necessários à reprodução dos seres
materiais; mas os Espíritos, sendo a criação de Deus, não se reproduzem uns pelos
outros, é por isto que os sexos seriam inúteis no mundo espiritual.
Os Espíritos progridem pelo trabalho que realizam e as provas que têm que suportar,
como o operário em sua arte pelo trabalho que faz. Essas provas e esses trabalhos
variam segundo a sua posição social. Os Espíritos devendo progredir em tudo e adquirir
todos os conhecimentos, cada um é chamado a concorrer aos diversos trabalhos e a
suportar os diferentes gêneros de provas; é por isto que renascem alternativamente como
ricos ou pobres, senhores ou servidores, operários do pensamento ou da matéria.
Assim se encontra fundado, sobre as próprias leis da Natureza, o princípio da
igualdade, uma vez que o grande da véspera pode ser o pequeno do dia de amanhã, e
reciprocamente. Deste princípio decorre o da fraternidade, uma vez que, nas relações
sociais, reencontramos antigos conhecimentos, e que no infeliz que nos estende a mão
pode se encontrar um parente ou um amigo.
É no mesmo objetivo que os Espíritos se encarnam nos diferentes sexos; tal que foi
homem poderá renascer mulher, e tal que foi mulher poderá renascer homem, afim de
cumprir os deveres de cada uma dessas posições, e delas suportar as provas.
A Natureza fez o sexo feminino mais frágil do que o outro, porque os deveres que
lhe incumbem não exigem uma igual força muscular e seriam mesmo incompatíveis com
a rudeza masculina. Nele a delicadeza das formas e a fineza das sensações são
admiravelmente apropriadas aos cuidados da maternidade. Aos homens e às mulheres
são, pois, dados deveres especiais, igualmente importantes na ordem das coisas; são
dois elementos que se completam um pelo outro.
O Espírito encarnado sofrendo a influência do organismo, seu caráter se modifica
segundo as circunstâncias e se dobra às necessidades e aos cuidados que lhe impõem
esse mesmo organismo. Essa influência não se apaga imediatamente depois da
destruição do envoltório material, do mesmo modo que não se perdem instantaneamente
os gostos e os hábitos terrestres; depois, pode ocorrer que o Espírito percorra uma série
de existências num mesmo sexo, o que faz que, durante muito tempo, ele possa
conservar, no estado de Espírito, o caráter de homem ou de mulher do qual a marca
permaneceu nele. Não é senão o que ocorre a um certo grau de adiantamento e de
desmaterialização que a influência da matéria se apaga completamente, e com ela o
caráter dos sexos. Aqueles que se apresentam a nós como homens ou como mulheres, é
para lembrar a existência na qual nós os conhecemos.
Se essa influência repercute da vida corpórea à vida espiritual, ocorre o mesmo
quando o Espírito passa da vida espiritual à vida corpórea. Numa nova encarnação, ele
trará o caráter e as inclinações que tinha como Espírito; se for avançado, fará um homem
avançado; se for atrasado, fará um homem atrasado. Mudando desexo, poderá, pois, sob
essa impressão e em sua nova encarnação, conservar os gostos, as tendências e o
caráter inerentes ao sexo que acaba de deixar. Assim se explicam certas anomalias
aparentes que se notam no caráter de certos homens e de certas mulheres.
Não existe, pois, diferença entre o homem e a mulher senão no organismo material
que se aniquila na morte do corpo; mas quanto ao Espírito, à alma, ao ser essencial,
imperecível, ela não existe uma vez que não há duas espécies de alma; assim o quis
Deus, em sua justiça, para todas as suas criaturas; dando a todas um mesmo princípio,
fundou a verdadeira igualdade; a desigualdade não existe senão temporariamente no
grau de adiantamento; mas todas têm o direito ao mesmo destino, ao qual cada um chega
pelo seu trabalho, porque Deus nisso não favoreceu ninguém às expensas dos outros.
A doutrina materialista coloca a mulher numa inferioridade natural da qual ela não é
erguida senão pela boa vontade do homem. Com efeito, segundo essa doutrina, a alma
não existe, ou, se existe, ela se extingue com a vida ou se perde no todo universal, o que
vem a ser o mesmo. Não resta, pois, à mulher senão sua fraqueza corpórea que a coloca
sob a dependência do mais forte. A superioridade de algumas não é senão uma exceção,
uma bizarrice da Natureza, um funcionamento dos órgãos, e não poderia fazer bem, a
doutrina espiritualista vulgar reconhece muito a existência da alma individual e imortal,
mas é impotente para provar que não existe uma diferença entre a do homem e a da
mulher, e portanto uma superioridade natural de uma sobre a outra.
Com a Doutrina Espírita, a igualdade da mulher não é mais uma simples teoria
especulativa; não é mais uma concessão da força à fraqueza, é um direito fundado sobre
as próprias leis da Natureza. Fazendo reconhecer estas leis, o Espiritismo abre a era da
emancipação legal da mulher, como abre a da igualdade e da fraternidade.
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