quarta-feira, 12 de março de 2008

Histórias pra gente grande.

A arena improvisada no Átrio dos Vitrais da Caixa Econômica Federal em está lotada. Acredito que umas 70 pessoas estão ali. São 19h do domingo, 09 de março. Depois dos avisos de praxe (desliguem seus telefones, etc) uma música instrumental, delicada, embala as expectativas de todos. Warley Goulart entra em cena e começa a tecer no tabuleiro. Os olhares diversos do público percorrem cada movimento dos fios. Tecem juntos com o balé das mãos de Warley. Pausa na música. Um silêncio delicioso se apodera da sala. É a terceira vez que assisto a este espetáculo e ainda me emociono. O contador de histórias convida-nos a uma pausa. Pausa para fiar. A música Debaixo D’ Água, de Arnaldo Antunes, chega na voz suave e encantada de Maria Bethânia. O olhar do público continua seu ir e vir no tabuleiro. Ainda sem palavras a história ganha em beleza. Somos reféns do agora e do que há por vir. Chegam mais pessoas. É o último dia. Já teve sessão extra para o público infantil. Este espetáculo é só para maiores de 12 anos. Cabe todo mundo. Finda a música no poema Agora dos velhos Titãs. Volta o silêncio. Warley tece o sol e lança as primeiras palavras do conto A Moça Tecelã que Marina Colasanti publicou no livro Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento (global). Lança os fios de algodão no ritmo ditado pela autora. Respeita o texto (eu o conheço bem). Entre gestos suaves e olhares certeiros ele surpreende e conquista o público que sentou ali curioso. Alguém tosse. Pede desculpas. Mas não incomoda. Os ouvidos estão surdos para tudo que não seja a voz de Warley que, enfim, tece a lua. Fim da história. Olhares atônitos ante tanta beleza que envolveu aquele início de noite, fim de domingo, fim de temporada. É hora de recolher as lãs coloridas. Bethânia volta a cantar. Uma moça passa a mão no cabelo. Outra tenta manter a boca fechada mas o queixo pesa e precisa ser apoiado com as duas mãos. Eu escrevo. Ainda não é hora para aplausos, diria o manual de etiqueta. É apenas o primeiro movimento. O concerto continua. Mas o aplauso é espontâneo. A emoção falou mais alto. E isso é ótimo!
De repente outra música instrumental surge entre as palmas. Pouco a pouco domina a cena. É a deixa para que Helena Contente comece a contar A Princesa de Bambuluá, história que Ricardo Azevedo adaptou e publicou no livro Contos de Espanto e Alumbramento (Scipione). O silêncio da arena ganha o som de passos que se aproximam. São os guardas do Átrio que chegam para assistir a performance. Helena está coberta por uma roupa negra da cabeça aos pés e os funcionários parecem saber o que virá a seguir. Buscam um lugar para manter a guarda. A Princesa de Bambuluá está viva nos olhos da contadora. Todos estamos focados na aventura de João em busca do seu amor. Desajuizados assim como o pobre rapaz, aceitaríamos os suplício e provações de João só para conhecer o fim da história. Mas não temos pressa. Helena é Iara, embora a personagem não faça parte desta história. Mas a sua voz traz um encanto que não conquista apenas os guardas. O público está entregue ao talento e à beleza da moça diante da história. Sensualidade. Mais bocas abertas. Olhos colados no corpo, ferramenta que movimenta a engrenagem do conto. Enquanto a narrativa segue, Helena joga com as caixas do cenário. Troca de roupa, brinca com peças de vestuário e aguça a curiosidade da platéia. Ricardo Azevedo ficaria surpreso ao ver que seu texto encontrou uma porta-voz. Como uma torcida organizada, rimos na hora certa. Um riso rápido na medida certa para seguirmos ouvindo. João segue vencendo suas provações e chega a Bambuluá. É hora do show. Mais uma vez a música toma conta e convida Helena para dançar. Uma dança que contagia, provoca risos, provoca os guardas. Mas, assim que acaba a música, a história pede silêncio. Ainda me arrepio. Volta a música e provoca mais risos. Cadu e Warley também riem da cena. Eles trabalham se divertindo. Não é ótimo?! Enfim, a história termina. Os guardas procuram outra coisa para fazer. Nós continuamos lá. Mais aplausos e alguns Iuhús naquele começo de noite, fim de domingo, fim de temporada. O público está mais à vontade. Eu escrevo.
Uma música andina cresce no ar e o grupo apresenta o último cenário da noite. Carlos Eduardo Cinelli, o Cadu, senta-se ao lado de um painel negro e começa a contar A Terra é Redonda do livro O Homem que não Queria Saber Mais Nada e Outras Histórias (ática) de Peter Bichsel. O texto é precioso, diferente, inteligente, criativo. As soluções que Cadu encontrou para contá-lo também são. Compartilhamos os absurdos ao lado de Monalisa, Almodóvar, Björk, Egberto Gismontti, Walter Salles, Beatles, Michelangelo, Papa Léguas e Coyote. Do painel saem soluções absurdas para o personagem pôr em prática seu grande desejo: dar uma volta perfeita no planeta. Na verdade, as soluções absurdas nascem de problemas mais absurdos ainda... mas que no fundo, no fundo, têm uma lógica!!! Caramba como este texto é bom. Cadu também. Ele segue pescando soluções no painel até que chega a primeira carreta. O público se mostra cúmplice num riso coletivo. Riso que vai se descontrolando na boca enquanto o texto se desenrola. Começa um jogo de advinhas. O público acha que já sabe o que há por vir, mas há sempre uma surpresa. Os risos seguem. Cadu tem o público na mão. Há um momento em que ele dispara o verbo. Fala, fala, fala e a gente fica sem fôlego. Tem o domínio do texto, parece que foi ele quem escreveu. Com um talento para proteger mochilas, o contador segue sua sina. Hã... será que a história me dominou e passei a escrever absurdos? A história chega ao seu final. Na verdade, o texto foi dito, mas nosso contador ainda surpreende numa performance de rodopios impressionante. Sou eu quem fica tonto. Tonto com tanta criatividade e encantamento. Estou feliz, entregue aos braços imaginários das palavras de Marina, Ricardo, Peter, Warley, Helena e Cadu. Ouço os aplausos. Público em pé. Um minuto. O grupo apresenta os livros. Mais aplausos e iuhús intensos. Lágrimas nos olhos dos três. A noite de domingo já ganha o breu e algumas gotas de chuva. Na minha mente, Cadu ainda rodopia enquanto escrevo. Fim de temporada. Hora dos meninos voltarem para a Cidade Maravilhosa. Já sinto saudades. Voltem logo. That’s all, folks.
Este texto é o relato da última apresentação de O mundo de fora pertence ao mundo de dentro, espetáculo integrante da temporada 2008 dos Tapetes Contadores de Histórias em Brasília (DF). Na foto acima, Warley, Cadu e Helena.

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