segunda-feira, 3 de março de 2008

Livros do Plano - Graças e desgraças na corte de El-Rei Tadinho

Graças e desgraças na corte de El-Rei Tadinho, Alice Vieira, Caminho, livro recomendado para o 3º ano do 1º ciclo, leitura orientada em sala de aula, grau de dificuldade III

Graças e desgraças na corte de El-Rei Tadinho descobre-se pelo humor. É a partir deste recurso que se tece a obra, copiando invertidamente os principais elementos dos contos tradicionais que todas as crianças ouvem contar repetidamente ao longo dos seus primeiros anos de vida. A possibilidade de ler autonomamente ou de ouvir contar esta história, dá aos pequenos leitores uma experiência de cumplicidade.
Este é um dos objectivos do humor enquanto figura. O humor só funciona, tal como a ironia, a hipérbole, ou a antítese (por exemplo), se o interlocutor do discurso (neste caso o leitor/ ouvinte) puder relacionar os dois termos da relação: a informação original e aquela que foi transformada, e que consta do texto. O pacto retórico apenas se cumpre neste caso. Se as crianças não conhecessem os Contos Tradicionais não saberiam que as bruxas são más, as fadas boas e competentes, os reis ricos, e que as bruxas não casam com dragões nem os reis com fadas. Já os conselheiros podem não ser de grande ajuda, porque nem sempre são adjuvantes, contribuindo eventualmente para a desgraça da protagonista, uma delicada e sensível menina…
Quando nesta história o Rei paga a electricidade ao dragão; ou sofre com a crise, que quando chega “é para todos”; quando os conselheiros prometem dar a filha do Rei em casamento àquele que matar o dragão, embora o rei não tenha filhos; quando o rei deixa de ter ideias luminosas até a fada, disfarçada de bruxa, lhe abrir a cabeça e reparar um fusível; os leitores percebem que este é um reino diferente e relacionam-no com todos os outros, aqueles de que tão bem se lembram. O humor nasce da improbabilidade de poder existir um reino assim, e da surpresa que cada acontecimento suscita. A páginas tantas, a diegese é um mistério e todos podem imaginar a sua própria continuação. A leitura de um livro como este proporciona relações mentais e a descoberta da intertextualidade. De uma história nascem outras, e uma fórmula pode ser infinitamente explorada e contrariada.
Para além deste primeiro nível de leitura, há outros, desta feita característicos da escrita de Alice Vieira. A contextualização social e a inerente crítica a oportunismos, fraudes e incompetência política estão bem patentes no livro, sem se tornarem panfletárias ou demasiado sérias. As suas doses qb permitem que as crianças as intuam ou não, sem que haja qualquer estrago na sua apreensão da história. A referência ao contrato de trabalho da fada, aos decretos que enchiam os bolsos dos ministros, à inutilidade da governação do rei são aspectos que inevitavelmente situam este livro no tempo, como aliás acontece com a maior parte da obra da escritora (são diversos os pormenores que remetem Rosa, minha irmã Rosa ou Lote 12, 2º Fte, por exemplo, para a década de oitenta, com os telejornais ou o crescimento de urbanizações em zonas baldias). Apesar disso, o livro não se arrisca a perder qualidade, já que o eventual estranhamento que os leitores hoje podem sentir não invalida que melhor teçam o cenário de há vinte anos, tal como acontece com tantas outras obras, hoje consideradas clássicos da literatura (por exemplo, Oliver Twist foi escrito com uma obra do presente e hoje é lida como uma narrativa do passado, especificamente da época vitoriana).
O outro nível de leitura remete novamente para o princípio da intertextualidade. Há no livro duas histórias: a primeira, a principal, narra as desventuras na Corte de El-Rei Tadinho até ao casamento com a fada. Aqui, Alice Vieira respeita a estrutura diegética das narrativas tradicionais que acabam com um casamento e um futuro feliz; já a segunda história, mais curta, é uma continuação da primeira, e conta um episódio passado com uma das princesas, e o seu amor não correspondido. À fórmula do final fechado, a autora responde com uma espécie de sequela, que apela à curiosidade dos leitores, porque vai responder à questão: e depois? Assim, inverte a impossibilidade que o final “e foram felizes para sempre” acarreta, a de continuar a história. Estamos agora numa fase diferente da vida daquela família, em que o próprio rei tem um trabalho e horários a cumprir. No mesmo registo de aproximação das personagens à vida quotidiana, o humor resulta dos limites do jogo e da surpresa. Até onde podemos levar o afastamento da lógica tradicional sem que o absurdo se torne gratuito? A contextualização do problema da jovem princesa ajuda a que tudo seja verosímil e a que as personagens ganhem a densidade própria de figuras particulares e não meros paradigmas. Mas a maior relevância da segunda narrativa está na forma como aborda um tema sensível e didáctico como o interesse pela aprendizagem, sem se tornar programático ou forçado. A princesa vence o seu desinteresse pelos estudos na esperança de poder ajudar aquele por quem se apaixonou e, ao contrário dos contos tradicionais, o amado não corresponde ao seu amor e no final parte, de regresso a casa e à sua família. No entanto, a motivação da princesa alterou o seu comportamento para o futuro.
O diálogo funciona assim em diversos sentidos: o da relação entre os dois períodos e respectivos comportamentos; o da relação entre os finais; o da correspondência entre elementos dos contos tradicionais e das narrativas de autor. Apesar de ser um dos livros mais simples da autora, a sua construção demonstra uma riqueza interpretativa que faz deste livro um excelente recurso para a leitura, especialmente a orientada.

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